29 Março 2016
Em fevereiro, executivos da empreiteira Andrade Gutierrez assinaram acordo de delação premiada com a força-tarefa da Operação Lava Jato. Em março, a Odebrecht anunciou que pretende adotar a mesma estratégia. A expectativa é de que essas delações exponham as entranhas do sistema político brasileiro e ajudem a torná-lo menos corrupto.
Para Pedro Henrique Pedreira Campos, professor de História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, as eventuais punições a partir da Lava Jato não serão suficientes para encerrar a corrupção.
A entrevista é de Ingrid Matuoka, publicada por CartaCapital, 29-03-2016.
No livro Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, Pedreira Campos nota que as empreiteiras têm estreita relação com a corrupção nos governos desde antes da ditadura, formando um organismo complexo de se dissolver. Assim, avalia, seria preciso atacar as estruturas que permitem a existência de corrupção nas interações entre as grandes empresas e o Estado.
Eis a entrevista.
Executivos da Andrade Gutierrez assinaram um acordo de delação premiada com a Procuradoria-Geral da República e a Odebrecht tem feito acenos na mesma direção. Como o senhor vê isso?
Deve inquietar muita gente, porque a principal peça da corrupção no Brasil envolve as empreiteiras. Elas têm um modo de operar combinado com uma gama bastante significativa de políticos de muitos partidos.
Essa relação se dá por interesses no processo eleitoral, em financiamento de campanhas, junto ao parlamento, tentando pressionar para aprovar projetos de obras, para indicar nomes para diretorias de empresas estatais, entre outros.
A partir das pesquisas que realizei, tenho a impressão de que, vindo à tona os financiamentos eleitorais, caixa um e caixa dois, e pagamentos de propinas, entre outros, vai se descortinar uma engrenagem muito robusta, envolvendo muita gente.
O Ministério Público Federal tem pressionado a Odebrecht por informações novas. Eles afirmam ter o esquema praticamente mapeado, mas gostariam de entender as remessas para contas que os partidos supostamente mantêm no exterior. Você pode falar um pouco sobre esse esquema?
Essas empresas surgem antes da ditadura. A Camargo Corrêa é de 1930 e a Odebrecht e a Andrade Gutierrez são [das décadas] de 1940 e 50. Ao longo da ditadura elas crescem e se fortalecem muito, porque apoiaram o golpe de estado. Em certa medida, elas pautaram as políticas públicas durante o período. Ainda hoje têm um poder impressionante na determinação da agenda pública no Brasil.
Na década de 80, elas conseguem fazer uma transição durante a mudança do regime político e mantêm-se próximas ao poder. Nesse sentido, não são apenas empreiteiras, mas grandes grupos econômicos de atuação internacional.
Nessas atividades no exterior, fazem muitas operações cambiais, que podem ser relacionar diretamente com as operações realizadas no Brasil: pagamento de intermediários, para conseguir uma obra, ou uma parte maior da obra, por exemplo.
É comum elas receberem no exterior, ficar com esse dinheiro em paraísos fiscais, e aí pagar figuras intermediárias no Brasil, que vão possibilitar uma obra ou aditivos nela. Toda a presença internacional desses grupos vai culminar em pagamentos de práticas irregulares desenvolvidos no Brasil e fora.
A Operação Lava Jato descobriu todo um setor da Odebrecht destinado a pagamentos de propinas. Isso surpreende?
Não. A prática de pagamento de propina não é uma questão excepcional no modus operandi dessas empresas, pelo contrário, verifico que é quase uma regra no setor de obras públicas. Todas as mais poderosas do cenário doméstico, ou seja, Camargo Corrêa, Gutierrez e Odebrecht, historicamente foram denunciadas e acusadas de corrupção, antes, durante e depois da ditadura. Escândalos envolvendo empreiteiras não são uma novidade. O que as investigações denotam é que há práticas comuns feitas por essas empresas, como esses pagamentos de propinas.
Em nota, a Odebrecht fala da “existência de um sistema ilegal e ilegítimo de financiamento do sistema partidário-eleitoral do país”. Qual o papel das empreiteiras na criação desse sistema?
O financiamento eleitoral por empresas no Brasil, que agora foi proibido pelo Supremo Tribunal Federal, tinha três grandes grupos principais: os bancos, as empreiteiras e o agronegócio. Porém, as empreiteiras têm um papel muito decisivo nesse processo.
Muitas vezes, ao financiar a eleição, eles já têm um acerto prévio na obra, uma cota-parte do lucro, da arrecadação da empresa ao longo do serviço, que será destinada para o financiamento eleitoral. Essa é uma forma de garantir o futuro da empresa, para que ela continue a ter participação no governo.
Ao mesmo tempo, a empreiteira não financia apenas um grupo político, ela financia vários, de modo que ela possa pautar qualquer um dos cenários políticos surgido da eleição, ampliando muito seu alcance.
O que espera das eleições sem o financiamento empresarial de campanha?
Acho que pode ser um avanço para as eleições. Estamos acompanhando uma escalada da presença do poder econômico no processo político, parlamentar, eleitoral e democrático como um todo; estão submetidos aos anseios e interesses desse poder.
O fim do financiamento empresarial pode proporcionar um cenário em que esses interesses econômicos estejam menos presentes, mas isso só pode acontecer se houver uma fiscalização intensa sobre os processos de financiamento por fora, o caixa dois, e também no financiamento de pessoas físicas, porque não é nada difícil mascarar financiamento de empresas por meio de pessoas físicas.
De que outras formas as empreiteiras podem tentar manter a relação com os políticos?
Além do financiamento, o poder desses empresários se faz presente na forma como são feitas as emendas parlamentares no Congresso, no modo como se dão as coalizões políticas e a nomeação de cargos em empresas estatais, entre outros. É toda uma engrenagem que move as estruturas entre políticos e empreiteiras, e é por meio disso que eles conseguem licitações para recursos e aditivos que tornem a obra lucrativa.
Para que essa relação se encerre, é preciso mexer nas normas, nesses mecanismos institucionais que permitem que os empresários pautem e definam, em certa medida, a agenda das políticas públicas. Há quem fale em contratar somente empresas estrangeiras para diminuir a corrupção. Tenho dúvidas, já tivemos casos de estrangeiras envolvidas em casos de corrupção.
Reportagens de Brasília já falam em "terra arrasada" após a delação dessas empreiteiras. O senhor concorda?
Uma colaboração da Odebrecht e da Andrade Gutierrez pode descortinar um esquema impressionantemente grande, mas se isso vai derivar em alguma coisa, eu não sei. Espero que as pessoas envolvidas sejam devidamente julgadas e que haja uma discussão e uma mudança significativa nos mecanismos que permitem a relação Estado-empreiteiras ser corrupta e propícia a práticas ilegais.
Eu achava que a Lava Jato era mais um escândalo envolvendo empreiteiras, como tantos outros da história brasileira, que não foram poucos. Mas ela mostra estar voltada para derrubar o governo e o PT. E não vejo a operação sendo capaz de acabar com a corrupção, porque ela não deve solucionar os mecanismos institucionais dessa relação corrupta.
E como o senhor avalia a Lava Jato até aqui?
Infelizmente, acho que a Lava Jato tem mais um sentido de punir e chegar a certos alvos políticos que parecem estar norteando os desdobramentos da operação mais do que qualquer outra coisa, com práticas ilegais, em um movimento golpista evidente.
Ela parece ter finalidades políticas e alvos políticos bastante seletivos. Eu não vou ficar defendendo PT, Dilma, Lula, acho que eles devem ser investigados, o que não pode é ter uma prioridade nos alvos da investigação. Em geral, estou bastante assustado com os desdobramentos da Lava Jato.
Surgiram notas afirmando que as delações podem se concentrar mais no PT e no PMDB por causa das eleições. Isso pode acontecer?
Tenho dúvidas se eles omitiriam ou amenizariam toda a atuação de figuras do PSDB e da oposição de direita hoje nas colaborações. Isso por diversos motivos.
Não sou especialista, mas até onde eu sei, caso esses empresários e executivos queiram de fato realizar uma "delação premiada" ou acordo de leniência, devem expor toda a engrenagem da corrupção e todas as ilegalidades cometidas no que se refere ao tema e período da investigação, sob a ameaça de perder a redução da pena em caso de omissão ou falsificação de alguma informação indicada.
Até agora, das listas e nomes expostos, agentes da oposição conservadora têm sido mencionados costumeiramente, como é o caso do senador Aécio Neves (PSDB-MG), que parece figurar em todas as listas de pagamento de caixa dois, financiamento eleitoral e propina das empreiteiras que até agora foram divulgadas, apesar de isso não receber o mesmo peso e centralidade nas manchetes do que as indicações de nomes associados ao governo nos meios de comunicação da mídia tradicional e hegemônica.
Nada indica que tucanos e outros partidos da oposição conservadora são menos corruptos do que os petistas e outros membros de partidos da base aliada. Pelo contrário, todos os partidos que aceitam doações de pessoas jurídicas são contemplados – em maior ou menor grau – pelas "doações", ou investimentos, desses grupos, sob a lógica de "quem financia, governa junto" ou "quem paga a banda, escolhe a música". As únicas e honrosas exceções parecem ser os poucos partidos que não aceitam dinheiro de empresas.
Além do mais, escândalos como a compra de votos para a emenda da reeleição, as privatizações dos anos 90, o esquema da pasta rosa, o caso Sivam são indícios do que o período tucano foi bem farto em práticas ilegais, irregulares e corruptas dos partidos que compunham a base aliada.
O lamentável é que o PT não tenha inovado muito nesse campo, mantendo uma estreita associação com empreiteiras que se nutriram da ditadura e que mantêm práticas bastante condenáveis, como o pouco cuidado com trabalhadores nos canteiros de obras, o que acarreta em sucessivos acidentes, inclusive com mortes – vide os estádios da Copa Fifa – e as práticas ilegais que eles realizam para conseguir as obras e torná-las lucrativas.
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"Propina é quase uma regra no setor de obras públicas" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU