Por: MpvM | 09 Outubro 2020
"O convite à festa é sempre dirigido a todas e todos, e intuímos nessa mensagem a imagem de cristãs e cristãos compreensivos, que devem respeitar as diferenças, a diversidade, a cultura de cada convidado. Essa festa parece alegre e divertida para alguns, mas será que estamos ajudando todas as pessoas a acessá-la? Jesus conhece as convidadas e os convidados, sabe que vêm vestidos com roupas de muitas cores. E aqueles que se dizem porteiros da festa? Será que têm a sensibilidade de perceber as costuras, muitas vezes de retalhos, porém feitas com as linhas do amor e da solidariedade?"
A reflexão é de Beatriz Gross, leiga. Ela possui mestrado em Teologia Sistemática e graduação em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (2015). Também graduada em Letras - Português e Literaturas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1979). Atualmente desenvolve projetos na área da escrita acadêmica na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Coordena a revisão da Enciclopédia Teológica Latino-americana, junto à FAJE, e coordena a equipe de revisão da revista Dignidade Re-Vista, da PUC-Rio, na área de direitos humanos. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, em revisão de textos de artigos científicos, dissertações e teses, e adequação de linguagem. Participa da Rede TeoMulher.
Leituras do dia
1ª Leitura - Is 25, 6-10a
Salmo - Sl 22,1-3a.3b-4.5-6
2ª Leitura - Fl 4,12-14.19-20
Evangelho - Mt 22,1-14
No comentário deste domingo para o Ministério da Palavra na Voz das Mulheres quero propor um pouquinho mais do que emprestarmos a nossa voz nessa interpretação das leituras bíblicas, quero propor que se faça o “ministério da palavra no pensamento e na voz das mulheres”. Talvez haja novas possibilidades de interpretar os textos sagrados e pode ser este o tempo de promovermos essa reflexão mais inclusiva. Temos sentido, em tempos de pandemia, como somos diretamente afetadas em tantos aspectos da vida cotidiana pela nossa simples condição de mulheres.
As leituras desse 28º domingo do tempo comum nos trazem a imagem do banquete. Nos falam da grande festa que é o Reino de Deus... e o banquete é o símbolo bíblico que expressa o projeto de Deus para toda a humanidade. Como normalmente somos as preparadoras das comidas nas festas, nós mulheres sabemos disso, que um banquete revela congraçamento, doação, comunhão, abundância e alegria: e o desejo de servir.
O texto da primeira leitura, (Is 25, 6-10a) nos diz que o banquete preparado por Deus será oferecido a todos os povos da terra. A imagem do banquete, aqui, mostra a vida e a salvação para todas e todos – oferecidas a qualquer uma e qualquer um. É a fraternidade universal desejada pelo Criador.
Aqui já surge uma primeira reflexão: temos sido, hoje, fiéis ao desejo de Deus? Ele preparou um banquete (isso é: o alimento, o ambiente da festa) para tudo o que vive sobre a terra, mas hoje vemos que muitos são excluídos de comer – a fome vem aumentando no mundo – e grande parte do ambiente preparado foi destruído. O cenário do banquete em Isaías era “a montanha”, e quantas estão queimando hoje, transformando em cinzas o ambiente do banquete? Não há banquete para os animais que tiveram sua comida extinta pelas queimadas, não há banquete para quem, doente, não encontra vaga em hospitais.
É preciso, ainda, atenção ao dom ofertado nesse banquete: a vida em plenitude, eliminando por vez a morte e suas consequências. O que Deus fala não é da morte física, mas de excluir tudo o que impede a vida verdadeira: as injustiças, a violência, a incompreensão, a ganância; sabemos que o dinheiro da corrupção matou tantas vidas verdadeiras nesses dias que correm.
Se esse banquete já nos foi servido, por que continuamos sem ouvir a voz que propõe, nos versículos finais, a salvação na instauração de um novo mundo para toda a humanidade (ou seja, para quem senta conosco à mesa)? É nossa obrigação trazer para a mesa todas e todos que encontramos pelo caminho – mas principalmente aquelas que têm fome, muitas vezes porque deram a seus filhos o pouco que tinham para comer, como vimos incontáveis vezes durante esta pandemia da Covid-19. O banquete do Reino não pode ser exclusivo, é preciso que nos desloquemos para comer juntas e juntos, para buscarmos quem têm fome e trazê-los à mesa do Senhor, posta na natureza que deve ser preservada.
Nesse deslocamento é que vemos Paulo, na mensagem da carta aos filipenses (Fl 4,12-14.19-20), quando agradece a ajuda recebida e afirma que, apesar de acostumado às vicissitudes de sua vida missionária e de nada cobrar, a oferta dos amigos o reconfortou. Paulo aceita o convite do banquete que é o Reino e sai, fortalecido pelo amor de Deus Pai na presença de Cristo em sua vida, a preparar a festa para as filhas e filhos de Deus, para a humanidade.
Assim, o evangelho de Mateus (Mt 22,1-14)desse domingo traz a última das 3 parábolas com que Jesus responde aos sacerdotes sobre sua autoridade. Cheia de metáforas, também essa parábola fala de um banquete. E dos mais especiais, pois um banquete de casamento é sempre a celebração de uma união.
Sabemos as tradicionais alegorias dessa parábola: o rei é Deus, os empregados são os profetas do Antigo Testamento, os convidados são a humanidade toda, a rejeição ao convite para as bodas é um alerta que nelas está o Reino e rejeitá-lo é desprezar a vida plena... que as bodas são a aliança de Deus com seu povo... traz até a metáfora do traje de festa como o compromisso com a causa do Reino.
O convite à festa é sempre dirigido a todas e todos, e intuímos nessa mensagem a imagem de cristãs e cristãos compreensivos, que devem respeitar as diferenças, a diversidade, a cultura de cada convidado. Essa festa parece alegre e divertida para alguns, mas será que estamos ajudando todas as pessoas a acessá-la? Jesus conhece as convidadas e os convidados, sabe que vêm vestidos com roupas de muitas cores. E aqueles que se dizem porteiros da festa? Será que têm a sensibilidade de perceber as costuras, muitas vezes de retalhos, porém feitas com as linhas do amor e da solidariedade?
Relendo o contexto das 3 parábolas dos últimos domingos, uma pergunta se faz presente: onde estão as mulheres na narrativa? Ocultas, como na maioria das vezes? Se não houvesse mulheres, não haveria os dois filhos a quem o pai pede ajuda... o que diria a mãe, nessa parábola, se tivesse voz? Talvez mostrasse ao marido que filhos sempre são diferentes uns dos outros e que deveriam estar em momentos diferentes, mas que sempre estariam ao lado do pai. E que mãe enviaria o filho, como na segunda parábola, aos vinhateiros homicidas? Nenhuma seria tão ingênua a esse ponto. E na parábola de hoje? Não há uma rainha, a mãe do noivo? E onde está a noiva?
É... não aparecemos, apesar da hermenêutica desses textos sempre indicar que na vinha, na festa, o projeto é oferecido a toda humanidade.
Devemos interpretar esses textos no contexto da tensa relação de Jesus com as lideranças judaicas da época, da rejeição que sofria. É importante que saibamos que a interpretação, hoje, precisa dizer mais, precisa aliar o verbo dizer a promover, a fazer.
Há uma ação premente de fazer com que novas leituras percebam as omissões da presença feminina e mostrem que há mais a buscar... talvez nos identifiquemos com esse próprio Jesus, rejeitado pelas lideranças de sua época e desprezado pelos sacerdotes. Do mesmo modo como Jesus percebia que eles se opunham à sua pregação, entendendo que seria inútil esperar que mudassem de mentalidade e compreendessem o projeto do Reino, poderia hoje a Igreja perceber que talvez esteja dispensando às mulheres o mesmo tratamento que Jesus recebeu? Não dá para se pensar em grande festa, da qual a Igreja é também parte, se não há equidade entre os participantes, não dá para ser Reino de Deus destinando mesas a alguns e excluindo outros...
São alegorias, mas pensemos na possibilidade de novas interpretações que reflitam a realidade que vivemos: a exclusão de mulheres, da Igreja ao mercado de trabalho (principalmente na pandemia, em que foram as mais afetadas com o desemprego), as aproxima do Jesus rejeitado por Israel, seus anciãos e sacerdotes. É preciso um novo olhar que não faça nenhuma distinção entre participantes do banquete.
Um bom domingo!
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28º Domingo do tempo comum - Ano A - O Banquete do Reino de Deus é inclusivo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU