22 Setembro 2011
Na quinta-feira, o papa Bento XVI chega à Alemanha para uma visita há muito esperada. O teólogo suíço proeminente Hans Küng explica à revista "Spiegel" por que a visita papal pouco fará para reverter a crise na Igreja e compara Bento XVI a Vladimir Putin na forma como centraliza o poder.
A entrevista, publicada pela revista semanal alemã Der Spiegel, foi traduzida e reproduzida pelo Portal Uol, 22-09-2011.
EIs a entrevista.
Professor Küng, o seu ex-colega de faculdade Joseph Ratzinger está vindo para a Alemanha nesta semana para uma visita de Estado. O senhor tem alguma audiência marcada com ele?
Não requisitei uma audiência. Estou fundamentalmente mais interessado em conversas do que em audiências.
Bento XVI ainda conversa com o senhor?
Após sua eleição como papa, ele me convidou a sua residência de verão, o Castelo Gandolfo, onde tivemos uma conversa amigável de quatro horas. Na época, eu esperava que aquele momento fosse o início de uma nova era de abertura. Mas essa esperança não foi realizada. De vez em quando, trocamos correspondências. As sanções contra mim – a suspensão de minha permissão para ensinar - ainda existem (nota do editor: o Vaticano revogou a permissão de Küng para ensinar teologia católica em 1979, após ele ter publicamente rejeitado o dogma da infalibilidade papal.)
Quando foi a última vez que Bento lhe escreveu?
Por meio de seu secretário particular (Georg) Gänswein, ele me agradeceu por enviar-lhe meu mais recente livro e me desejou boa sorte.
Em seu polêmico livro, "Ist die Kirche noch zu retten" (a Igreja ainda pode ser salva?), que foi publicado no início do ano, o senhor critica duramente o papa por sua política anti-reformista.
Acho muito gratificante que ele não tenha terminado nosso relacionamento pessoal, apesar de minhas críticas.
Muitos católicos acham que a Igreja está em um estado desolado. O abafamento dos casos de abuso sexual de crianças por padres levou muitos fiéis a se afastarem da Igreja. O que está errado?
Como você está dando uma descrição simples, darei uma resposta simples. O predecessor de Ratzinger, João Paulo II, lançou um programa de restauração política e eclesiástica que ia contra as intenções do Concílio Vaticano II. Ele queria uma re-cristianização da Europa. E Ratzinger foi seu assistente mais leal, até mesmo no início. Poderíamos chamar de período de restauração do regime pré-conciliar.
Por que esses problemas estão emergindo subitamente, 50 anos após o Vaticano II, que ocorreu entre 1962 e 1965?
Os problemas vêm cozinhando na Igreja há algum tempo, como revelou o acobertamento de décadas de abuso sexual. Em algum ponto, o problema dos abusos no mundo todo não pôde mais ser negado. Mas essa não é a única coisa que a hierarquia católica esconde. Ela esconde também as condições lastimáveis da Igreja.
O que o senhor quer dizer com isso?
Ou seja, que a vida da Igreja no nível da paróquia praticamente desintegrou-se em muitos países. Em 2010, pela primeira vez, houve mais pessoas deixando a Igreja do que sendo batizadas na Alemanha. Desde o Concílio, perdemos dezenas de milhares de padres. Centenas de paróquias estão sem pastores, e as ordens masculinas e femininas estão morrendo porque não conseguem noviços. O número de pessoas participando das missas está caindo gradativamente. Mas a hierarquia da Igreja não teve coragem de admitir, honesta e francamente, a verdadeira situação. Fico me perguntando aonde isso vai dar.
Quando o papa vem para a Alemanha, dezenas de milhares de pessoas vão recebê-lo em grandes eventos. Os líderes da Igreja não vão interpretar isso exatamente como sintoma de crise.
Eu não teria nada contra tais eventos se eles verdadeiramente ajudassem a Igreja local. Mas há uma enorme discrepância entre a fachada, que agora está sendo erguida novamente para a visita papal à Alemanha, e a realidade. Cria a impressão que esta é uma igreja poderosa e saudável. Certamente é poderosa, mas saudável? Sabemos agora que esses eventos não fazem quase nada pelas paróquias locais. Eles não levam mais pessoas às missas; não inspiram mais pessoas a se tornarem padres ou menos pessoas deixarem a Igreja.
Ainda assim, cerca de 70.000 pessoas são esperadas na missa no Estádio Olímpico de Berlim.
Não são todos fiéis; a multidão inclui muitos curiosos. Os fiéis que participarão são, na maior parte, católicos conservadores sem interesse em reformas. Há também fãs beneditinos notórios e histéricos que sempre estão presentes nos principais eventos papais. A maior parte deles são recrutados de grupos estritamente conservadores. Para muitas pessoas, o papa ainda é, até certo ponto, um exemplo de comportamento e de força moral, apesar de outros acharem que este aspecto sofreu gravemente.
O senhor também critica a visita do papa ao parlamento alemão, o Bundestag? Vários políticos da oposição disseram que vão boicotar o discurso dele.
Eu não faço objeções à visita. Mas eu espero que os políticos que vão recebê-lo deixem claro que há católicos na Alemanha que discordam com as atuais posições papais. De acordo com pesquisas conduzidas nesta primavera, 80% dos alemães querem reformas.
Mas será que os outros grupos –inclusive grupos políticos- não se distanciaram tanto que chegam ao ponto de não darem a mínima sobre as condições na Igreja Católica?
Somente quando não estão pensando nos eleitores. Os eleitores se tornaram muito sensíveis neste quesito. As pessoas estão prestando muita atenção ao que o presidente do Bundestag, Norbert Lammert, católico corajoso e forte, dirá ao papa.
O que o senhor está dizendo parece muito pessimista. Será que, como pergunta o título de seu livro, é tarde demais para salvar a Igreja?
Em minha opinião, a Igreja Católica como comunidade de fé será preservada, mas apenas se abandonar o sistema do regime romano. Conseguimos nos virar sem esse sistema absolutista por 1.000 anos. Os problemas começaram no século XI, quando os papas afirmaram seu controle absoluto sobre a Igreja, aplicando uma forma de clericalismo que privou a laicidade de todo poder. A regra do celibato também vem dessa era.
Em entrevista à respeitada revista alemã "Die Zeit", o senhor criticou duramente o papa Bento, dizendo que nem o rei Luis XIV foi um líder tão autocrático quanto o líder da Igreja católica, com seu estilo absolutista de governo. Bento XVI poderia de fato mudar o sistema romano, se quisesse?
É verdade que esse absolutismo é um elemento essencial do sistema romano. Mas nunca foi um elemento essencial da Igreja Católica. O Concílio Vaticano II fez tudo para se afastar dele, mas infelizmente não foi suficiente. Ninguém ousou criticar o papa diretamente, mas houve uma ênfase no relacionamento colegial do papa com os bispos, criado para reintegrá-lo na comunidade.
E teve sucesso?
Não diria que sim. A falta de vergonha com a qual a política do Vaticano simplesmente calou e negligenciou o conceito de colegiado desde então é sem precedentes. Um culto à personalidade sem paralelos prevalece novamente hoje, que contradiz todo o Novo Testamento. Neste sentido, pode-se afirmar isso muito claramente. Bento XVI até aceitou a tiara, uma coroa papal, símbolo medieval do poder papal absoluto, que um papa anterior, Paulo VI, escolheu entregar. Acho isso revoltante. Ele poderia mudar isso tudo da noite para o dia, se quisesse.
Mas ele não quer?
Não quer. Estou absolutamente convencido disso, porque ele tem a autoridade necessária. Ele meramente teria que fazer uso dela, no espírito do Evangelho.
O senhor não quer apenas reduzir o poder do papa. O senhor também está pedindo um fim ao celibato; o senhor quer que as mulheres sejam ordenadas e que a Igreja suspenda sua proibição de controle de natalidade. Os católicos leais ao papa dizem que esses elementos fazem parte dos valores centrais da Igreja Católica. Se o senhor retirar isso, o que restará da Igreja Católica?
O que restará será a mesma Igreja Católica que costumava existir – e que era melhor. Não estou dizendo que o papado deva ser abolido. Mas precisamos de escritórios que sirvam às congregações, precisamos do tipo de papado que era praticado por João XXIII. Ele não queria dominar. De fato, ele simplesmente demonstrava que estava lá disponível para todos, inclusive outras igrejas. Ele estabeleceu a base para o Concílio e um novo despertar do cristianismo ecumênico. Ele permitiu o surgimento de uma nova igreja.
Muitos na Igreja Católica dizem que, se todas as reformas que o senhor propõe fossem implementadas, a Igreja ficaria mais Protestante e abandonaria sua natureza Católica.
A Igreja sem dúvida se tornaria mais protestante. Mas sempre preservaremos nossa natureza única. Nossa forma global de pensar, nossa universalidade nos diferenciam de certa estreiteza nas igrejas regionais Protestantes. Isso deve continuar, assim como o escritório (do papa) deve ser preservado. Mas se tudo for concentrado no escritório, vamos terminar com um vigário medieval, um príncipe-bispo e o papa como absoluto monarca, que simultaneamente personifica o executivo, o legislativo e o judiciário –em contradição com a democracia moderna e o Evangelho.
O senhor e Bento XVI estão em caminhos diferentes. O senhor quer reformar a Igreja para mantê-la viva. E o papa está tentando selar a Igreja do mundo externo e cada vez mais restringi-la a seu centro conservador, que poderia sobreviver.
De fato. No passado, o sistema romano foi comparado com o sistema comunista, no qual uma pessoa mandava. Hoje, eu me pergunto se não estamos talvez na fase de "Putinização" da Igreja Católica. É claro que não quero comparar o Santo Padre, como pessoa, ao profano estadista russo. Mas há muitas similaridades estruturais e políticas. Putin também herdou um legado de reformas democráticas. Mas ele fez tudo o que pôde para revertê-las. Na Igreja, tivemos o Conselho que iniciou a renovação e a compreensão ecumênica. Nem os pessimistas teriam imaginado que tais retrocessos seriam possíveis depois disso. A política de restauração do papa polonês, a partir dos anos 80, tornou possível para o diretor da altamente sigilosa Congregação da Doutrina da Fé, que era conhecida como Congregação da Inquisição Romana e Universal - e ainda é uma inquisição, apesar do novo nome - a ser eleito papa.
Essa é uma comparação audaciosa.
Não deve ser tirada de suas proporções, é claro. Infelizmente, mesmo que admitamos as coisas positivas, os desdobramentos negativos que estão ocorrendo não podem ser negligenciados. Praticamente falando, tanto Ratzinger quanto Putin colocaram seus antigos associados em posições chave e colocaram de lado aqueles que eles não gostavam. É possível traçar outros paralelos: o enfraquecimento do parlamento russo e do Sínodo dos Bispos do Vaticano; a degradação dos governadores provincianos russos e dos bispos católicos, que faz deles meros cumpridores de ordens; uma "nomenclatura" conformista e uma resistência a verdadeiras reformas. Ratzinger promoveu seu assistente dos tempos de diretor do CDF a cardeal secretário de Estado, o que o torna vice do papa.
E o que há de errado nisso?
O fato que, sob o papa alemão, uma pequena claque de seguidores, primariamente italiana, sem simpatia alguma pelos pedidos de reforma, subiu ao poder. Eles em parte são responsáveis pela estagnação que abafa toda tentativa de modernização do sistema da Igreja.
O que as condições no Vaticano têm a ver com o estado da Igreja na Alemanha?
Um enorme sistema de política de poder está por trás de toda a amabilidade romana, as demonstrações litúrgicas de esplendor e de pseudo-Estado. O Vaticano controla a nomeação de bispos e de professores de teologia, somente permitindo os que se conformam com suas políticas a obterem essas posições. Seus núncios monitoram as conferências dos bispos e constantemente enviam relatórios à sede. Os dedos-duros voltaram neste sistema. Todo pastor reformista na Alemanha, todo bispo, deve temer ser denunciado em Roma.
Qual é o papel do cardeal de Colônia, Joachim Meisner, famoso linha dura, nessa luta pelo poder dentro da Igreja?
É um segredo aberto que a Conferência Nacional dos Bispos da Alemanha está cada vez mais sob influência de Meisner, o que alguns não pensavam ser possível. Acontece que Meisner tem uma linha direta com o centro de poder romano. Seu séquito inclui jovens bispos como Franz-Peter Tebartz-van Elst de Limburg. O novo arcebispo em Berlim, Rainer Woelki também é protegido de Meisner. Está havendo uma tentativa de obter o controle das posições mais estrategicamente importantes. Estão fazendo todo o possível para fortalecer o sistema de dominação.
Seu prognóstico é sombrio.
Acho muito importante que não afundemos em pessimismo. Mas meu diagnóstico mostrou que a Igreja está doente, e é a doença do sistema romano. Sob essas circunstâncias, não posso simplesmente me comportar como um médico ineficaz e dizer que tudo vai ficar bem.
Qual seria o tratamento?
A base deve reunir forças e se fazer ouvir, para que o sistema não possa mais driblá-la. Eu apresentei uma lista ampla de medidas em meu livro.
Mais de um ano atrás, o senhor escreveu uma carta aberta a todos os bispos do mundo, na qual o senhor ofereceu uma explicação detalhada de suas críticas ao papa e ao sistema romano. Qual foi a resposta?
Há cerca de 5.000 bispos no mundo, mas nenhum deles ousou comentar publicamente. Isso claramente mostra que algo não está certo. Mas se você conversa com os bispos individualmente, muitas vezes você ouve: "O que o senhor descreve é fundamentalmente verdade, mas nada pode ser feito". Seria maravilhoso se um bispo proeminente dissesse: "Isso não pode continuar assim. Não podemos sacrificar toda a Igreja para agradar os burocratas romanos". Mas até agora ninguém teve coragem de fazer isso. A situação ideal, em minha opinião, seria uma coalizão de teólogos reformistas, pessoas laicas e pastores abertos à reforma, e bispos preparados a apoiar a reforma. É claro que entrariam em conflito com Roma, mas eles teriam que aguentar isso, em um espírito de lealdade crítica.
Foi isso que levou à Reforma 500 anos atrás. Mas na época, o sistema romano foi incapaz de entender críticas de dentro de suas fileiras.
Após 500 anos, estamos surpresos que os papas e bispos de então não tenham compreendido que uma reforma era necessária. Lutero não queria dividir a Igreja, mas o papa e os bispos foram cegos. Parece que uma situação similar se aplica hoje.
Outro concílio como o Vaticano II ajudaria a Igreja?
Espero que haja um concílio, ou ao menos uma assembleia representativa da Igreja Católica.
O senhor acredita que vai viver para ver tal concílio?
Não se deve estabelecer limites para a graça de Deus. Certamente seria um sinal de esperança se o papa anunciasse, durante sua visita à Alemanha: "Apesar de eu não concordar com esses pedidos de reforma, como papa alemão, quero trazer algo como presente: no futuro, aqueles que se divorciarem e os que voltarem a se casar terão permissão de receber os sacramentos católicos".
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Em entrevista, teólogo suiço fala sobre a "putinização" da Igreja católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU