Por: Jonas | 17 Outubro 2012
O filósofo Ernesto Laclau (foto) mora em Londres e tem viajado seis semanas por ano para a Argentina, embora reconheça que ultimamente faz isto mais seguidamente. Desta vez sua chegada coincide com o ciclo de debates que a Secretaria de Cultura organizou na Tecnópolis, da qual participaram também outros destacados cientistas políticos, o secretário Legal e Técnico, Carlos Zannini, e o líder da esquerda francesa Jean-Luc Mélenchon. Laclau recebeu o jornal Página/12 no bar do Hotel Claridge, pouco antes de ir para a jornada de encerramento do debate, satisfeito pelo resultado da eleição venezuelana e, como sempre, com o olhar atento na realidade argentina.
A entrevista é de Fernando Cibeira, publicada no jornal Página/12, 14-10-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você estranhou que o candidato de oposição venezuelano, Hernán Capriles, tenha dito que “A razão populista” era seu livro de cabeceira?
Não acredito que disse isto. De qualquer forma, caso seja seu livro de cabeceira, ele entendeu pouco.
Você diz isto em razão da sua proposta de campanha?
Por toda a sua intervenção política, que apontou para a restituição do espaço político da direita na Venezuela. Muitas vezes esses espaços políticos são construídos por meio de discursos que não são formalmente de direita, mas que cumprem esse papel. Em 1945, na Argentina, o discurso do ponto de vista ideológico da União Democrática, do Partido Comunista, digamos, não era um discurso de direita, porém funcionou politicamente como a plataforma eleitoral da direita. Isso acontece muitas vezes. Eu havia dito que aqui grupos como Livres do Sul e Pino Solanas tinham como destino manifesto serem aliados numa frente opositora antipopular, e isso é o que está começando a se sugerir.
De alguma maneira, foi surpreendido pelo triunfo de Hugo Chávez?
Não me surpreendi. Alguns dias antes, eu estive na embaixada argentina, em Londres, com a embaixadora Alicia Castro e com um grupo de personalidades da esquerda britânica, e todos concordamos que o triunfo de Chávez era inexorável. Foi uma vitória não apenas para a Venezuela, mas também para a América Latina, que está começando uma etapa em condições políticas e econômicas muito melhores do que as do início deste século. Com a incorporação da Venezuela ao Mercosul, a integração latino-americana recebeu um impulso fundamental. O Mercosul será uma potência econômica internacional de um peso considerável.
Uma derrota de Chávez teria revertido este processo?
Não sei se colocaria em perigo terminal, mas colocaria um freio.
Caso alguém leia os jornais daqui, tem a sensação de que na Europa ainda custa entender os motivos pelos quais os venezuelanos continuam votando em Chávez. É assim?
Na Europa há uma espécie de cortina de fumaça, compartilhada não apenas pelos setores de direita, mas também por alguns setores de esquerda que fazem parte de regimes social-democratas, que tendem a concordar em condenar a “origem populista” das revoluções populares latino-americanas. O problema é que a social-democracia europeia tem se atrelado ao trem do neoliberalismo. Em quase todos os países europeus a social-democracia não desempenha um papel de oposição ao modelo dominante, mas um papel de complementação ao modelo dominante.
Como enxerga o clima político na Argentina, por estes dias bastante centrado na aplicação da lei sobre meios de comunicação?
Na Argentina a oposição política não consegue construir uma frente de forças credível. Isto é compreensível porque eles não podem transcender o horizonte neoliberal, que governou a Argentina, de meados dos anos 1980 até o surgimento do kirchnerismo. Nessa medida, todos estes setores estão desvinculados, sem propostas reais. A única força que consegue aglutinar uma ação opositora são os meios de comunicação, que se transformaram no principal partido opositor. (Héctor) Magnetto é um dos eixos da ação opositora na Argentina, até mesmo se não atua abertamente na política. A ação opositora procede da ação social dos meios de comunicação, e estes setores representam a única oposição credível neste país.
Você também considera o dia 7 de dezembro tão determinante?
Vamos ver o que acontece. Agora está se apostando se haverá uma ação imparcial do Poder Judiciário, em termos da demanda do Clarín, ou se haverá uma decisão carregada pelo desejo de criar obstáculos ao Governo. O dia 7 de dezembro – ou 10, como disse Cristina outro dia – é uma data chave no sentido de que o poder monopolista precisa começar a se desarticular.
Na Argentina, a oposição, mais do que conceber um modelo alternativo ao do Governo, apresenta um discurso “institucionalista”, inclusive um dos motivos da união opositora foi o da rejeição à reeleição presidencial. Você acredita que esse discurso é adequado?
O argumento de um institucionalismo radical é típico da direita. As instituições nunca são neutras, elas são a cristalização da relação de forças entre dois grupos e qualquer um que tente romper com essa relação de forças, iniciando um projeto mais radical, irá colidir com a ordem institucional vigente. Isto não significa que seja necessário passar para um radical “anti-institucionalismo”, trata-se de passar para novas formas institucionais, pelas quais as novas forças interventoras comecem a se expressar. Parece-me que isto está ocorrendo na Argentina. Não há o menor esforço, da parte do Governo, em romper as normas institucionais vigentes, mas há sim, e isto eu considero positivo, um esforço em criar um novo tipo de institucionalidade.
Para esse novo tipo de institucionalidade, seria necessária uma reforma constitucional?
Há quem pense que não, eu penso que sim, é necessária. A última reforma constitucional, de 1994, expressou a preponderância do modelo neoliberal. Atualmente, que o modelo está radicalmente mudando, é necessário passar para uma nova ordem constitucional. Fala-se muito da questão da reeleição, mas não vejo que isto seja tão substantivo, embora seja a favor de uma reeleição indefinida. Não tem que ser vista apenas pelas circunstâncias da Argentina, mas latino-americanas em termos mais gerais.
Refere-se às lideranças surgidas nestes anos?
Na V República da França, a centralidade da figura de De Gaulle foi fundamental para criar uma nova ordem institucional, e ninguém pensou naquele momento que isso significava por em questão a ordem democrática. Novas formas institucionais são importantes para criar uma nova ordem jurídica na América Latina.
Houve um “panelaço” na Praça de Maio e há outro em preparação. O Governo o interpretou como uma manifestação de setores acomodados. Como você vê isto?
É mais ou menos assim. São fenômenos periféricos. A última oposição que surgiu, com um programa hegemônico alternativo, foi com o protesto em torno do campo. Atualmente, é como Marx dizia: a primeira vez é tragédia e a segunda comédia. Isto representa as sequelas do passado, não acredito que seja o polo de crescimento de nenhuma oposição real.
Você não acredita que alguém da oposição pode capitalizar esse setor ou esse mau humor?
Mas, quem é a oposição? Isto é um espalhamento de forças sem significação alguma. Obviamente, farão esforços para tratar de capitalizar estes movimentos, mas a possibilidade de que tenham êxito me parece sumamente utópica.
Por que considera que a FAP e forças afins terminarão acomodando uma frente antipopular?
Em algum momento tive a esperança de que (Hermes) Binner e as forças que se agruparam ao redor dele pudessem gerar uma oposição credível. Contudo, para constituir uma oposição credível é necessário compartilhar elementos fundamentais de um modelo. Um sistema político é aceitável na medida em que as bases de um modelo de crescimento sejam aceitas, tanto pela força hegemônica dominante como pelos grupos opositores. Minha ilusão era de que as forças nucleadas em torno de Binner podiam representar essa alternativa de oposição dentro do mesmo modelo racional e popular que se estava implantando no país. Sempre haverá personagens, como Elisa Carrió, que começarão a vociferar nas margens do sistema, mas isto não conta. O que conta é se as forças responsáveis, que estão no interior do sistema, podem criar uma convivência institucional entre grupos diferentes. Entretanto, caso essas forças, e isto é uma mensagem para Binner e para aqueles que o apoiam, não são capazes de se integrar a um modelo que uma força socialista não pode colocar em questão, e começam a se aliar numa espécie de coalizão semigolpista, nesse caso a democracia argentina avançará em direções que não são as preferíveis.
Como vê a questão do movimento operário, que ficou dividido em várias centrais?
Representa a melhor comprovação de que o movimento operário já não tem a totalidade estrutural que teve no primeiro peronismo. Ou seja, o movimento operário segue as clivagens produzidas no país. Não gosto da perspectiva de uma divisão do movimento operário, mas acredito que nesta circunstância era inevitável. A consolidação do movimento nacional e popular irá depender de que uma fração majoritária do movimento operário, como acredito que está ocorrendo, alie-se a outras forças que impulsionem o modelo de governo.
O Governo se fez forte na batalha com diversos poderes, mas, sobretudo a partir do “panelaço”, há quem pense que talvez a sociedade já esteja cansada desse enfrentamento. O que você pensa disto?
Sem certo enfrentamento, nenhum sistema político democrático é viável. Um dos maiores problemas apresentados pela democracia europeia é o de que existe, por um lado, entre a social-democracia e o liberalismo, um consenso que representa um status quo invulnerável. As pessoas começam a se sentirem não representadas, pelo sistema, com alternativa ao que o governo expressa. Quando isso ocorre, o sistema político funciona mal, pois se no momento das eleições não se vê confrontado com alternativas reais, há indiferença. As expressões de protesto, então, vêm de fora do sistema.
Na América Latina, pode-se chegar a conquistar um sistema político democrático, melhor integrado, em que haja enfrentamentos reais. Que as pessoas que na Argentina, por exemplo, votem pelo kirchnerismo ou votem pela coalizão opositora, tenham claramente o sentido daquilo pelo qual estão votando. Caso esse enfrentamento seja criado e existam parâmetros democráticos para o desenvolvimento da confrontação, estamos consolidando a democracia na América Latina. Caso exista um enfrentamento tão radical que cada uma das forças coloque em questão a legitimidade do sistema institucional, nós vamos ao desastre. Por outro lado, caso seja diluído o momento de confrontação e, como na Europa, as pessoas se encontrem sem alternativas de oposição, também há uma diminuição na qualidade democrática. Lênin dizia que a política é sempre caminhar entre precipícios. Entre o “ultra-institucionalismo” e o enfrentamento absolutamente destrutivo, é necessário encontrar um caminho intermediário. Eu confio que nos próximos anos iremos construir o cenário em que essa confrontação, dentro de um marco democrático, seja possível.
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Na Argentina, “os meios de comunicação se transformaram no principal partido opositor”, afirma Ernesto Laclau - Instituto Humanitas Unisinos - IHU