Por: André | 02 Mai 2012
“O problema da política chilena explica-se pelo choque de legitimidade dentro do sistema político, ou seja, a sociedade reclama a falta de prestação de contas da oligarquia chilena. Em última instância, o mal-estar do corpo social é em relação aos acordos horizontais da classe política herdados da ditadura até hoje. Portanto, a expressão cidadã seguirá confrontando-se com a democracia do consenso, com a reprodução assimétrica de condições sociais e com a falta de representatividade das demandas sociais por parte da classe política”. A análise é de Gastón Passi Livacic, cientista político da Universidade Central do Chile.
Eis a análise.
Para entender a conjuntura chilena, ou seja, a atual crise, é importante responder à seguinte pergunta: quais são os fundamentos dos protestos estudantis? As manifestações sociais no Chile podem ser explicadas através de duas abordagens principais, para tanto, é necessário fazer uma síntese dos fatores históricos que incidem na conjuntura do sistema político chileno. Primeiro, analisando a instauração de reformas e receitas neoliberais durante o governo militar e, segundo, como variável consequente da primeira, como um processo de tensão acumulada no sistema político.
Para muitos, o que está acontecendo no Chile é paradoxal, pois ele se caracteriza como um país que dentro da região se destaca pela estabilidade política, crescimento econômico e por obter os melhores índices de desenvolvimento humano na América Latina, e, ao mesmo tempo, na atual conjuntura, com flagrantes sintomas de desgaste do modelo imposto na ditadura militar.
No regime autoritário (1973-1989) articularam-se as bases institucionais em matéria educacional, como também, em outras áreas da sociedade chilena, presentes ainda hoje. Deste processo destacam-se as principais características: a aliança entre as Forças Armadas e os Chicagos Boys (turma de economistas chilenos que aprenderam as teorias de Milton Friedman naquela universidade norte-americana) deste modo, fundaram a forma de fazer políticas públicas neoliberais no Chile através dos aparatos coercitivos do Estado.
A aliança entre as Forças Armadas (FF) e os Chicagos Boys (Tecnocratas) implicou na redução de expressão e influência do Estado frente ao mundo privado. Dessa forma, o poder econômico começou a conquistar espaços que normalmente deveriam e teriam sido ministrados pelo Estado. A “conquista” ocorreu de forma transversal, pois durante o governo castrense iniciou-se um feroz processo de privatização do público, sobretudo, empresas, sistema de aposentadoria, saúde, educação, etc.
Em grandes campos dos quefazeres do sistema político chileno a única política de Estado tem sido até agora o “princípio da subsidiariedade”, o que significa deixar às soltas a livre concorrência, ou seja, quando a iniciativa privada define um investimento como não rentável (ou favorável) é o Estado que deve garantir e suprir, através de políticas públicas, os espaços deixados vazios por parte do mundo privado.
As heranças institucionais da ditadura, em matéria educativa, são a municipalização do Ensino Fundamental e o Ensino Médio, além da criação da nova normativa das universidades que, em 1981, originou as universidades de caráter particular, cujo fim tem sido incluir uma massa de população excluída do mundo universitário. Deste modo, gradualmente, foram se originando abundantes campus universitários. No primeiro artigo do manual das universidades, regra-se o seguinte: “As universidades não devem ter fins lucrativos”, no entanto, vê-se que a realidade tem sido a contrária.
A classe política, no processo de transição no Chile, foi bastante timorata. Fundamentalmente, a covardia devia-se ao medo do fantasma do “retorno da ditadura”, por conseguinte, aceitaram-se os modelos político, econômico e social deixados por Augusto Pinochet. Não obstante, era somente uma ideia instrumental ao poder político, pois, com o decorrer do tempo, a Concertación (Coalizão governante de centro esquerda, instaurada em 1990 até o ano de 2010) tinha pensado fazer grandes mudanças, respeitando, dessa forma, o passado político dos partidos da coalizão, porém, só conseguiram consolidar uma democracia estável, portanto, não é mais do que o modelo herdado do regime militar.
Em consequência, a estabilidade democrática tem-se enquadrado no consenso entre a Concertación Política e a Alianza por Chile (partidos políticos de direita) os quais estão ligados ideologicamente ao regime militar e, atualmente, são governos liderados pelo presidente da república, Sebastián Piñera (mandato que exerce desde 2010). Paradoxalmente, é a direita quem tem administrado a crise do modelo político.
Durante os vinte anos de governo da Concertación por La Democracia foram criadas políticas públicas na área da educação, porém, em última análise, tais políticas não mudaram em nada as bases institucionais herdadas do período antidemocrático. Em última instância, terminaram consolidando e administrando o modelo. Isto se exemplifica muito bem na coluna escrita por Sergio Grez Tozo, em fevereiro do presente ano, no jornal Le Monde Diplomatique, onde explica: “A classe política não foi capaz de satisfazer por completo a reivindicação dos estudantes, já que isso significa pôr em tensão o modelo neoliberal”. No entanto, tal crítica não abarca a realidade vivida pela classe política no processo de transição para a democracia. Em outras palavras, é a sociedade mobilizada que tem se questionado sobre a legitimidade do sistema democrático chileno.
Em 2005, Maria Olivia Mönckeberg (ganhadora do prêmio nacional de jornalismo do Chile de 2009) escreveu o livro “La privatización de las universidades. Una historia de dinero, poder e influencias”, texto no qual apresenta as formas de lucro no mundo universitário do Chile. Para ela, o recurso mais utilizado por parte dos donos das universidades tem sido a criação de empresas imobiliárias. O que isso significa? Trata-se de um pretexto corporativo e institucional em que as corporações, em conluio com as universidades, privilegiam os interesses privados em detrimento das verdadeiras necessidades acadêmicas.
O cenário atual nas universidades traz consigo consequências nefastas para o desenvolvimento acadêmico do Chile: 1) A lei funciona só para alguns; 2) Perda do valor conceitual da Universidade, pois privilegia-se o retorno do investimento ao invés de privilegiar o campo da pesquisa; 3) “Professores táxis” (trabalham em diversas universidades cobrando por hora/aula) sem investigação na sua área de conhecimento; 4) Segmentação social em relação à capacidade de investimento familiar; 5) Dívidas a longo prazo com juros elevados; 6) Maior poder da iniciativa privada do que o Estado. Todos esses elementos são consequência da reduzida capacidade fiscalizadora do Estado. Portanto, a influência da iniciativa privada torna-se grandiosa devido à ausência da figura Estatal.
Este panorama proporcionou o descontentamento social que se viu refletido em protestos estudantis, no centro das regiões mais importantes do Chile, ocorridos todas as quintas-feiras, desde o segundo semestre de 2011, até o final desse ano. Em Santiago, capital, convocou-se mais de cem mil pessoas para cada manifestação. A jornada do dia quatro de agosto foi o ponto de inflexão na disputa de poder entre o movimento estudantil e o governo, já que a repressão dos mecanismos coercitivos do Estado, utilizada pelo poder executivo, foi extremadamente violenta e não justificada. As consequências para o governo têm sido funestas, principalmente porque o movimento estudantil se tornou o “significante vazio” da política chilena. No entanto, transformou-se no agente de coesão do mal-estar social destacando-se a desigualdade, preponderância do setor econômico em vez do público, crise de representatividade, crise de legitimidade institucional, etc.
No dia 26 de abril, o movimento voltou a se articular com uma massiva manifestação, na principal Avenida do País, La Alameda, convocando mais de setenta mil pessoas. Este evento marca o ponto de partida, no presente ano, dos movimentos e protestos estudantis no Chile, após o período de férias que viveram os estudantes.
Outro tópico problemático para o governo diz respeito ao poder executivo em si mesmo: Piñera, o personalismo, o gosto pela improvisação e uma personalidade extremadamente populista tem lhe impedido não somente dirigir o seu governo e a sua coalizão política, como também tem produzido a crescente rejeição dos setores historicamente ligados à direita tradicional que, no Chile, não tem tido menos de 30% de aceitação. Porém, a última pesquisa, de dezembro do ano de 2011, indicou Sebastián Piñera com 23% de adesão social, caracterizando-o com a base política de menor apoio desde a criação das pesquisas CEP (a média de pesquisas CEP do mesmo ano foi de 35% para o presidente estão longe da média do ano de 2010 que foi de 52% e longe do 51,61% com que foi eleito). Em última análise, vemos o governo com parco apoio político, transformando-o no presidente mais impopular dos últimos tempos da história chilena.
As causas da impopularidade dentro dos setores históricos da direita chilena explicam-se pelas seguintes críticas da direita social: 1) O governo não tem tido o suficiente “pulso firme” contra as manifestações sociais; 2) Não tem executado o plano de governo pelo qual foi eleito e, 3) Tem sido receptivo demais às demandas efetuadas pelo movimento estudantil (populismo).
Os conflitos sociais e políticos continuaram aumentando. Em 2011 foram: o problema do gás na província de Magallanes (extremo sul do país), as manifestações estudantis, a greve de fome dos Mapuches (povo indígena da zona centro-sul) contra a legitimidade da lei antiterrorista ainda vigente, a paralisação dos trabalhadores do cobre, o levante popular em Dichato (zona afetada pelo maremoto de 2010), Hidroaysén, etc. Em 2012, à lista já mencionada, somaram-se os protestos em outras zonas extremas do país: por um lado Aysén (Extremo sul, uma região antes de Punta Arenas), do outro, Calama no norte do país. Estamos in situ diante de um “acordar do político”, entretanto, a presença dos processos de mobilização cidadã, para o renomado sociólogo chileno Gabriel Salazar, são entendidas “numa ação de autorrepresentação por parte do corpo civil mobilizado frente às crises de representatividade do sistema político chileno”.
Consequentemente, as perspectivas de crescente mobilização do campo social simultaneamente vêm acompanhadas de uma crescente rejeição da gestão do governo, da figura do presidente e da classe política em geral. Ante a impossibilidade de gerar políticas públicas de satisfação dos movimentos cidadãos, Piñera tem apostado no desgaste da organização estudantil. Concomitantemente, o presidente não teve mais chances de criminalizar as greves, os movimentos sociais, além de reprimir os atos de expressão pública. No entanto, a direita política não ostenta quadros políticos capazes de articular estratégias de contenção da mobilização social.
Dentro das saídas possíveis, o governo deve procurar, através de instâncias de negociação com todo o espectro do sistema político, ou seja, tem que priorizar a institucionalização do conflito social, oferecendo propostas e mecanismos de resolução de longo prazo, combinadas com políticas públicas de integração social. Em síntese, o problema da política chilena explica-se pelo choque de legitimidade dentro do sistema político, ou seja, a sociedade reclama a falta de prestação de contas da oligarquia chilena. Em última instância, o mal-estar do corpo social é em relação aos acordos horizontais da classe política herdados da ditadura até hoje. Portanto, a expressão cidadã seguirá confrontando-se com a democracia do consenso, com a reprodução assimétrica de condições sociais e com a falta de representatividade das demandas sociais por parte da classe política.
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Análise conjuntural e prospectiva do sistema político chileno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU