06 Abril 2018
"É quando não há mais razão para crer que a fé abre seus olhos"
A reflexão a seguir é de Raymond Gravel, (1952-2014) padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, 2° Domingo de Páscoa - Ciclo B. A tradução é de Susana Rocca.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: At 4,32-35
2ª leitura: 1 Jo5,1-6
Evangelho: Jo 20,19-31
Durante cinquenta dias (7 x 7), a Igreja estende a festa da Páscoa. Este tempo se termina no 50° dia que chamamos Pentecostes. São Atanásio dizia que não há mais que um domingo de Páscoa que vai até Pentecostes. Se for verdade que sem a Páscoa não haveria jamais o Natal, sabemos que antes de ser anual, a celebração pascal era, para os primeiros cristãos, hebdomadária: cada domingo era um memorial da Ressurreição do Senhor. Foi somente no século II que a Igreja escolheu celebrar a cada ano a festa da Páscoa. De fato, cada domingo é a Páscoa, pois nós celebramos o memorial da morte-ressurreição de Cristo. Infelizmente, na Igreja Católica, a partir do século XVI, no conflito com os protestantes, insistiu-se tanto no sacrifício da missa que nos fez lembrar do sacrifício da cruz, em que se colocou em segundo plano o memorial da Ressurreição. Porém, não podemos separar os dois: a missa ou a Eucaristia constituem o memorial da morte-ressurreição de Cristo, o que faz a festa da Páscoa.
Hoje, os textos bíblicos propostos são ricos de sentido e significado. Vejamos alguns deles:
Na primeira leitura de hoje, no livro dos Atos dos Apóstolos, nós temos o segundo resumo de três, sobre o ideal proposto pelos primeiros cristãos. Esse resumo retoma o que foi o tema inicial: a pregação apostólica e seu sucesso com as multidões (Atos 4,33). São Lucas insere esse versículo entre duas descrições da vida interna da comunidade cristã:
a. "A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum entre eles" (At 4,32).
b. "Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro e o colocavam aos pés dos apóstolos; depois, ele era distribuído a cada um conforme a sua necessidade" (At 4,34-35).
Essas duas descrições do vivido pelas primeiras comunidades podem parecer irreais e utópicas. Mas trata-se de um ideal proposto pela Igreja primitiva a partir do conceito da amizade grega de Aristóteles: “Os amigos têm uma só alma entre eles e os bens são uma propriedade em comum”; também a partir de uma releitura do livro do Deuteronômio sobre a repartição da riqueza: “No meio de você não haverá nenhum pobre” (Dt 15,4). É evidente que nos primeiros cristãos como nos cristãos de hoje, estamos longe da aplicação desse ideal. O episódio de Safira e Ananias narrado nos Atos (At 5,1-11) nos mostra isso claramente. Por outro lado, ainda hoje devemos nos deixar interpelar por esse ideal; nós estamos longe ainda desta realização. Porém, a fé cristã o exige.
Que bela carta que é essa carta de São João a qual nos fala sobre a dignidade daqueles e daquelas que creem em Cristo Ressuscitado: “Quem acredita que Jesus é o Messias, nasceu de Deus; e quem ama aquele que gerou, ama também aquele que por este foi gerado” (1 Jo 5,1). A Páscoa está apresentada como uma nova criação, e já sobre a cruz da Sexta-Feira Santa, a Igreja nasce e a sua missão começa na manhã da Páscoa. São João Crisóstomo, no século IV, dizia: “do seu lado saiu sangue e água (Jo 19,34)... Eu disse que essa água e esse sangue são o símbolo do batismo e dos mistérios (a eucaristia). A Igreja nasceu desses dois sacramentos: pelo banho do renascimento e da renovação no Espírito, pelo batismo e pelos mistérios. Mas os sinais do batismo e dos mistérios vêm ao lado. Desse modo, Cristo formou a Igreja a partir do seu lado, assim como Deus formou Eva a partir do lado de Adão”.
Ao mesmo tempo, tudo é Amor: “Nisto reconhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus” (1 Jo 5,2), e para amor a Deus, é preciso primeiro amar seus filhos: “Se alguém diz: ‘Eu amo a Deus’, e, no entanto, odeia o seu irmão, está sendo mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê” (1 Jo 4,20). E o amor se manifesta na nossa forma de viver como cristão: “Porque amar a Deus significa observar os seus mandamentos. E os seus mandamentos não são pesados” (1 Jo 5,3). Isso fez que, no século IV, Santo Agostinho dissesse: “No que nós amamos, ou não há cansaço ou nós amamos esse cansaço”.
Paz, felicidade, libertação, esperança e presença: essa página do evangelho que nós lemos a cada ano, no 2° Domingo de Páscoa constituía, no início da Igreja, o final do evangelho de João. O capítulo 21 é um acréscimo posterior, em que o autor ou os autores quiseram reconciliar os cristãos que acreditavam no papel particular de Pedro e daqueles que davam um lugar preponderante ao discípulo que Jesus amava. Essa página do evangelho de hoje traz mensagens importantes:
a. Essa aparição aos discípulos na noite da Páscoa e no domingo seguinte significa, primeiramente, a importância da assembleia dominical como lugar de encontro do Ressuscitado. De maneira que, na primeira assembleia, Tomé não está; não há como fazer a experiência do Ressuscitado. Foi só no domingo seguinte que também ele conseguiu encontrar o Senhor. O que significa que, ainda hoje, é possível que também nós façamos a experiência do Ressuscitado em nossas assembleias dominicais.
b. Nessas assembleias, Cristo se faz presente, apesar das nossas portas enferrujadas. E ele está aí para nos dar a sua paz. Mas de que maneira o reconhecemos? São João nos diz que o Ressuscitado da Páscoa é o Crucificado da Sexta-Feira Santa. Trata-se, então, de uma continuidade entre o Jesus do Calvário e o Cristo da manhã da Páscoa. No fundo, a Ressurreição não abole a paixão, o sofrimento e a morte; ele os transforma, ele nos revela seu sentido. Não esqueçamos sobretudo que nós estamos no final do século I, em plena perseguição dos cristãos. É por isso que olhando para os outros, e especialmente para aqueles e aquelas que levam as marcas e as feridas do crucificado, que os participantes na assembleia reconhecem o Senhor e experimentam uma grande alegria: “Os discípulos ficaram contentes por ver o Senhor.” (Jo 20,20). A paz os invade: “A paz esteja com vocês” (Jo 20,19.21).
c. Reunidos no nome da nossa fé e de nossa pertença a Cristo, nós somos recriados, investidos do seu Espírito: “Tendo falado isso, Jesus soprou sobre eles, dizendo: ‘Recebam o Espírito Santo’” (Jo 20,22). É o Pentecostes, é a missão que começa. Essa nova criação faz dos discípulos cristos ressuscitados. Precisamos, então, abrir as portas e sair para anunciar a Boa Nova de que Cristo está vivo, de que ele nos garante a sua presença, de que ele nos deixa a sua paz e de que nos oferece a sua libertação, a liberdade: “Os pecados daqueles que vocês perdoarem serão perdoados. Os pecados daqueles que vocês não perdoarem não serão perdoados” (Jo 20,23). É uma responsabilidade: temos o poder de liberar as pessoas ou de rejeitar de fazê-lo. Uma coisa é certa, se nós queremos ser semelhantes a Cristo, a libertação é obrigatória.
d. Estando ausente no primeiro encontro, Tomé, que é juntamente nosso gêmeo e nosso modelo na fé, ele não fez a experiência do Ressuscitado. Ele escutava o testemunho dos outros, mas precisava mais do que isso: “Se eu não vir a marca dos pregos nas mãos de Jesus, se eu não colocar o meu dedo na marca dos pregos e se eu não colocar a minha mão no lado dele, eu não acreditarei” (Jo 20,25). Na assembleia do domingo seguinte, Tomé está presente. O texto de João não diz que Tomé tocou as feridas de Cristo... Ele diz simplesmente que ele as viu, e o verbo ver, no evangelho de João, tem o mesmo sentido que o verbo crer: ver conduz necessariamente à fé. A expressão: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28) é mais bela profissão de fé do discípulo que encontra o Ressuscitado.
e. A bem-aventurança que se segue no versículo 29: “Felizes os que acreditaram sem ter visto” se dirige a todos os cristãos de todos os tempos que estão convidados a crer nos depoimentos das primeiras testemunhas, isto é, aquelas e aqueles que conheceram a Jesus de Nazaré e que, após a sua morte, lhe reconheceram vivo na comunidade dos discípulos. A experiência deles do Ressuscitado é única, no sentido que eles podem verificar a sua autenticidade, em relação a esse Jesus que eles conheceram, seguiram, amaram e acompanharam até a morte. De certo modo, eles são testemunhas privilegiadas, e é sobre esse testemunho deles que se funda a fé de todos nós, discípulos dele hoje.
Concluindo, gostaria de partilhar com vocês esse belo comentário do exegeta francês Jean Debruynne sobre essa página do evangelho: “Esse texto do Evangelho é uma maravilhosa canção de esperança. É exatamente quando nós fechamos a porta para Jesus, quando colocamos as trancas, que ele entra e fica aí. É precisamente no momento em que duvidamos mais dele que Jesus chega. É na noite que nasce o dia. É no inverno que a primavera começa. É quando não há mais razão para crer que a fé abre seus olhos. As trancas estão colocadas, a porta está hermeticamente fechada e, no entanto, Jesus está aí. Ele não está fora de nós, ele está dentro. Ele se apresenta: A paz esteja com vocês! Jesus não faz reproches nem acusações, ele é a Paz. A Paz esteja com vocês!”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Nós somos Cristo Ressuscitado! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU