13 Fevereiro 2012
No dia 09 de fevereiro faleceu John Hick, importante teólogo do diálogo interreligioso.
Faustino Teixeira e Michael Amaladoss, em entrevistas concedidas à revista IHU On-Line, comentaram a obra do teólogo recentemente falecido por ocasião da tradução brasileira do livro John HICK. Teologia cristã e pluralismo religioso. O arco-iris das religiões. São Paulo: PPCIR/Attar, 2005.
Faustino Teixeira é professor do PPG em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). É também membro do ISER-Assessoria do Rio de Janeiro.
Michael Amaladoss, jesuíta indiano, é diretor do Instituto para o Diálogo com Culturas e Religiões, em Chennai, na Índia. É doutor em Teologia Sistemática pelo Institut Catholique de Paris, na França, além de professor de Teologia no Vidyajyoti College of Theology, em Nova Déli, na Índia.
Eis as entrevistas.
IHU On-Line - Como John Hick entende o pluralismo religioso? Quais as novas ferramentas que o autor fornece para poder ler o pluralismo das e nas religiões?
Faustino Teixeira – O filósofo e teólogo inglês John Hick é um dos pioneiros na defesa de um pluralismo religioso de princípio. Sua hipótese pluralista traduz uma perspectiva bem distinta com respeito às posições tradicionais identificadas seja com o exclusivismo, seja com o inclusivismo[1]. Trata-se de uma perspectiva que traduz uma reação contra a reivindicação cristã de ser a religião de superioridade última. Na alternativa pluralista, as outras religiões passam a ser vistas como “contextos autênticos de salvação/libertação”, ou seja, espaços propícios de realização da transformação salvífica da vida humana, no sentido do questionamento do autocentramento problemático e de abertura a uma nova orientação centrada na realidade divina. As diversas tradições religiosas são reconhecidas por Hick como meios bem diferentes, mas igualmente válidos, de experimentar e responder à Realidade última que no cristianismo é reconhecida como Deus.
Michael Amaladoss - Eu não acho que ele esteja dizendo nada de novo. É apenas o Real, o qual é inefável - o Noumenon[2]. As diferentes religiões são esforços humanos limitados para conhecer e expressar isso – o Fenômeno. Nenhuma religião precisa se sentir superior às outras. Todos/todas devem viver em paz.
IHU On-Line - Como ele aproveita a metáfora do arco-íris para explicar o pluralismo?
Faustino Teixeira – A idéia de centralidade do Real vai ser decisiva na hipótese pluralista de John Hick. Entre as diversas opções de terminologia para traduzir a realidade transcendente, John Hick escolhe a categoria Real, mesmo reconhecendo os seus limites. Trata-se para ele de um termo mais neutro e que apresenta uma visão mais universal. O Real é a fonte e o fundamento de tudo, estando para além de todos os sistemas particulares de crença. As distintas expressões religiosas tornam-se contextos de salvação/libertação à medida que se sintonizam com este Real. Não há como acessar o Real em si, nem mesmo atribuir-lhe qualidades intrínsecas. Dele não se pode dizer que é pessoal ou impessoal, um ou muitos, consciente ou não-consciente, pleno ou vazio. Ele é, em si, inacessível, fora de qualquer alcance cognitivo. Entretanto, como a luz do sol, vem parcialmente apreendido pelas diversas tradições de forma diversificada. Daí a bela metáfora do arco-íris, que vem expressar a refração da Luz divina, ou do Real, nas diversas culturas religiosas da humanidade. A hipótese pluralista de Hick vem, assim, abrir uma nova perspectiva para a acolhida das religiões em sua alteridade, na medida em que convoca ao reconhecimento da presença do Mistério em outras formas de sua manifestação.
Michael Amaladoss - Nas próprias palavras dele: “O arco-íris, como a luz do sol refletida pela atmosfera terrestre em um glorioso espectro de cores, é uma metáfora para as refrações da divina Luz para as culturas religiosas humanas.”.
IHU On-Line - Quais as principais polêmicas e reações que o livro Teologia cristã e pluralismo religioso:o arco-íris das religiões despertou? Como o autor responde?
Faustino Teixeira – As reações a John Hick começaram sobretudo após 1977, quando foi publicado o volume de ensaios The Myth of God Incarnate, organizado pelo autor. Outra obra organizada por Hick em parceria com Paul Knitter [3], em 1987, suscitou novas polêmicas: The Myth of Christian Uniqueness. Toward a Pluralistic Theology of Religion. E a partir de então, este autor veio identificado com a corrente mais radical da teologia do pluralismo religioso. Não se pode, todavia, desconhecer as mudanças por que passaram o pensamento de Hick nos últimos anos, e os novos matizes de sua reflexão. Entretanto, como ele mesmo mostrou, as igrejas não têm conseguido acompanhar o avanço dos estudos acadêmicos na área da teologia do pluralismo religioso. O livro em discussão, Teologia cristã e pluralismo religioso, foi originalmente publicado em 1995, e como toda obra de John Hick, divide opiniões. Há setores que reagem de forma mais crítica e outros que se abrem ao desafio lançado pelo autor. O livro traduz, de forma muito feliz, a discussão que a hipótese pluralista levanta. E a maneira que o autor encontrou para responder às inúmeras críticas que sua concepção de pluralismo tem suscitado, em âmbito filosófico e teológico, foi original. John Hick escolheu como recurso de abordagem o diálogo com duas personagens por ele criadas, uma delas apresentando as críticas filosóficas (Fil) e a outra, as críticas teológicas (Graça).
Michael Amaladoss - Sua teoria é basicamente relativismo. Não é possível conhecer a Verdade. O que temos são opiniões diferentes de diferentes pessoas sobre isso. Nada disso é verdade(iro) ou real. Aqui está alguém que clama por um olhar sobre todas as religiões de fora, “cientificamente”, e para a elaboração de uma meta-teoria abstrata, com a qual nenhum crente religioso concordará. Se nenhum fiel religioso se sente confortável com essa meta-teoria, eu não vejo como isso possa ajudá-los a encarar tensões inter-religiosas. Pode ajudar apenas filósofos de poltrona que provavelmente não acreditam pessoalmente em nada.
IHU On-Line - Como o autor reinterpreta os dogmas cristãos tradicionais? Que conseqüências essa releitura traz para o diálogo entre as religiões?
Faustino Teixeira – As implicações teológicas de sua reflexão aparecem na seção do livro dedicada ao diálogo com a personagem Graça, que apresentará as críticas teológicas à posição pluralista. As críticas mais importantes concentram-se nas implicações da hipótese pluralista para as doutrinas consideradas centrais no cristianismo, como a Encarnação e a Trindade. Para Hick, levar a sério o pluralismo religioso significa rever radicalmente a estrutura tradicional da teologia cristã. Em sua visão, a doutrina da encarnação, assim como tradicionalmente entendida, produziu na história sérios efeitos colaterais, entre os quais o anti-semitismo cristão, a exploração colonialista ocidental, a subordinação social das mulheres e um arrogante complexo de superioridade do cristianismo diante das outras religiões. Para Hick, a doutrina da encarnação, por exemplo, não pode ser compreendida em sentido literal, mas em sentido metafórico. Com base em estudos protestantes e católicos sobre o Novo Testamento, Hick indica que “o Jesus histórico não ensinou que ele era Deus ou Deus-Filho, a segunda pessoa, encarnada, da Santa Trindade”. Sua consciência era a de um “profeta enviado por Deus”, alguém marcado por intensa consciência de Deus, que se tornou fonte de inspiração e direção para seus ouvintes. Em sua visão, a afirmação da divindade de Jesus foi fruto da tradição eclesial posterior.
Michael Amaladoss - Ele não reinterpreta dogmas tradicionais cristãos. Ele apenas nega-os como “mitos”. Ele reduz o cristianismo/ a cristandade a uma teoria ética de amor e companheirismo mútuos. Se ele não leva nenhuma religião a sério em seus próprios termos, eu não vejo como ele pode promover diálogos entre religiões ou pessoas que acreditem nelas e estão prontas a morrer por elas [as religiões]. Apenas os não-crentes virão às suas sessões de “diálogo”.
IHU On-Line - Como pode ser entendido, no livro, o pluralismo religioso na América Latina e no Brasil?
Faustino Teixeira – O grande desafio levantado pelo autor no livro é o da acolhida do pluralismo religioso. Não há como manter uma perspectiva teológica que se restrinja a aceitação do pluralismo como um fato, que deve ser mais aturado que reconhecido em seu valor. E isso só poderá acontecer levando a sério os desdobramentos da reflexão que vem acontecendo no âmbito da teologia cristã do pluralismo religioso.
Michael Amaladoss - Eu não acredito que o livro possa ajudar no entendimento e interpretação do pluralismo religioso na Índia, no Brasil, na América Latina ou em qualquer lugar do mundo. Será discutido apenas em círculos acadêmicos por filósofos de poltrona.
IHU On-Line - Quais as limitações que as principais tradições religiosas no Brasil apresentam para um diálogo no sentido que o autor está propondo?
Faustino Teixeira – Sem dúvida alguma, a maior limitação é a vigência de exclusivismos cerrados à alteridade ou o crescimento de fundamentalismos surdos à principal exigência de abertura aos novos tempos.
Michael Amaladoss - Você não promove diálogo inter-religioso se não leva as religiões a sério. A maioria das religiões – cristianismo, hinduísmo, islamismo – não se vêem como meros esforços humanos para conhecer o Real, mas como uma auto-revelação de Deus que chama por respostas. Na verdade, cada religião abre espaço para outras religiões com suas próprias percepções de fé. Isso aconteceu com o cristianismo no século XX. A abertura do cristianismo a outras religiões e ao diálogo não é resultado de uma meta-teoria filosófica como esta do Hick, mas a convicção de que o Espírito de Deus também está presente e ativo em outras religiões, e que esse Deus tem um plano para todas as pessoas. Então realmente não penso que o livro seja útil – não apenas aos cristãos, mas para qualquer fiel sério de qualquer religião. Apelará apenas aos intelectuais secularizados que pensam que a melhor forma de promover igualdade é relativizando tudo.
IHU On-Line - Em que aspectos se aproxima e em que aspectos se afasta da proposta de Hick a figura do Papa Bento XVI, pelo menos olhando seus diversos pronunciamentos e passos dados até o momento?
Faustino Teixeira – Como assinalei na apresentação da obra, as teses de John Hick ficaram associadas, no imaginário exclusivista ou inclusivista dominante, ao relativismo. No período em que era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger chegou a afirmar que John Hick constitui “o representante de maior relevo do relativismo religioso”. Os autores associados à corrente pluralista têm enfrentado, nos últimos anos, grandes dificuldades no âmbito da igreja católico-romana. É ainda muito cedo para fazer uma avaliação do atual pontificado de Bento XVI, por isso prefiro aguardar um pouco mais para poder responder à questão levantada. Gostaria de concluir lançando um desafio importante: de convidar os leitores a uma leitura desarmada da obra de Hick, evitando os preconceitos ou visões apriorísticas a seu respeito. Nada mais urgente no momento atual que a abertura de um debate mais amplo sobre o pluralismo religioso e a teologia pluralista das religiões.
Michael Amaladoss - Eu não penso que o Papa Bento XVI ficará contente com qualquer das propostas de Hick. Como cardeal ele já o condenou como relativista. Ele fará o mesmo agora.
IHU On-Line- Algum outro aspecto que não foi perguntado e gostaria de acrescentar?
Faustino Teixeira - Gostaria de chamar a atenção para uma questão importante na atual reflexão da teologia cristã do pluralismo religioso e que John Hick desenvolve em sua obra: a escolha da categoria “Real” [4] para expressar o mistério maior (sem nome). Também Raimundo Panikkar [5] em recente obra sobre a mística[6], segue caminho semelhante. Ele levanta a dificuldade de definir a mística como uma “experiência de Deus”, preferindo falar de mística como “experiência da realidade última”. A opção que faz pela escolha do termo “realidade” vem justificada por ser um termo menos problemático, mais neutro e de visada mais ecumênica. Entende expressar a mística como um acesso à realidade integral e completa, e esta pode ser nomeada com termos diversificados, mas igualmente plausíveis: Deus, Tudo, Nada, Ser etc. Trata-se de uma preocupação crescente na reflexão teológica, no sentido de poder englobar experiências distintas, ou seja, religiões que aspiram a uma experiência integral da realidade, mas que não trabalham com categorias que são nossas. São pistas fundamentais que buscam superar aquela visão cristã tradicional que separava (e que ainda separa, em alguns casos) as experiências numinosas (dos outros!) e a mística sobrenatural (um privilégio dos cristãos – sic!). Há que ressaltar que a própria categoria “Reino de Deus” começa hoje a suscitar resistências em âmbito da teologia do pluralismo religioso, em razão de seu restrito poder de universalidade. Trata-se de uma categoria plausível num espaço religioso semítico bem definido. Veja, por exemplo, Christian DUQUOC. L´unique Christ. La symphonie différée. Paris: Cerf, 2002, p. 123.
Michael Amaladoss - Não vejo por que qualquer teólogo de qualquer religião levaria a sério as teorias de Hick e se preocuparia com elas.
Notas
[1] Sobre este tema confira o Caderno Teologia Pública, número 10, de 2005, de autoria de M. Amaladoss. (Nota da IHU On-Line)
[2] Immanuel Kant (1724 – 1804): estabeleceu distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si (noumenon) não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência restringir-se-ia, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento.” (Dados obtidos em .). (Nota do Tradutor)
[3] Paul Knitter: professor emérito de Teologia na Xavier University, é conhecido internacionalmente como especialista em relações inter-religiosas. (Nota da IHU On-Line)
[4] John HICK. Teologia cristã e pluralismo religioso. São Paulo: PPCIR/Attar, 2005, p. 41. (Nota do entrevistado)
[5] Raimundo Panikkar: teólogo indiano, autor de, entre outros, The Unknown Christ Of Hinduism: Towards An Ecumenical Christophany. Maryknoll, Nova Iorque: Orbis Books, 1981. (Nota da IHU On-Line)
[6] Raimundo PANIKKAR. L´esperienza della vita. La mística. Milano: Jaca Book, 2005 (em especial pp.58-59). (Nota do entrevistado)
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