17 Novembro 2014
Água é vida. E no Pantanal brasileiro, maior área úmida continental do planeta, a vida é estonteante em abundância, variedade e beleza. Dirigimos por 160 quilômetros desde Cuiabá, capital do Mato Grosso, passando pelo Cerrado e descendo, quase sem perceber, até o extremo norte dessa imensa bacia natural que é o Pantanal. Em ambos os lados da estrada de pista simples, a paisagem se estende em um mosaico de pastagens alagadas e retalhos de densa vegetação. Está anoitecendo – a ‘happy hour’ dos pássaros, como define Glauco Kimura de Freitas – e o céu parece uma revolução de dourados e vermelhos. Um casal de araras sobrevoa nossas cabeças, num flash de vermelho e azul em contraste com as copas verde escuro das árvores. Um bando de cabeças-secas abre caminho sobre as águas, espalhando flores aquáticas por onde passam. “socó-boi, tuiuiú, colhereiros…” indica Freitas, biólogo e coordenador do Programa Água para a Vida, da organização ambientalista WWF-Brasil, listando as espécies conforme passamos pela estrada, olhando para o alto, o céu escurecendo e o ar cheio de vida com o clamor da música mais bela da natureza.
A reportagem é de Mick Brown, publicada pelo jornal The Telegraph, 12-11-2014.
Nosso ritmo ao longo da estrada vazia vai diminuindo até uma série de paradas, quanto mais descemos Pantanal adentro. Uma família de capivaras, maior roedor do planeta, move-se em passo constante por uma pastagem pontilhada de cupinzeiros de até 1,5 metro de altura. Um cervo-do-pantanal amedrontado corre por detrás de uma cortina de árvores. Três jacarés estão tão imóveis que até parecem troncos de árvores nos baixios enlameados ao lado da estrada. “Este”, diz Freitas, “é o lugar mais bonito do planeta”. É difícil discordar.
O Pantanal, que ocupa uma área de 140 mil a 200 mil quilômetros quadrados, está localizado na fronteira entre Brasil, Bolívia e Paraguai, com 80% de seu território localizado nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no Centro-Oeste brasileiro. A sobrevivência das áreas alagadas depende de um ‘pulso’ anual de água que, na estação chuvosa, de janeiro a março, escoa do Cerrado e alaga as planícies do Pantanal, cobrindo 80% de seu terreno.
É uma das áreas mais ricas em biodiversidade no mundo, com cerca de 3.500 espécies de plantas, 565 espécies de pássaros, 325 espécies de peixes, 159 espécies de mamíferos e 98 espécies de répteis. É onde habitam a onça, a arara azul, a ariranha, a jiboia e a anta. E, no entanto, esse extraordinário recurso natural está ameaçado. Agricultura intensiva, desmatamento, poluição das águas e a demanda de uma população em crescimento por água e energia estão colocando em perigo as águas que formam o Pantanal: nascentes, afluentes e rios que lhe dão vida.
Este problema é alvo, agora, de um grande projeto do WWF-Brasil que busca melhorar o gerenciamento de recursos hídricos e proteger quatro grandes afluentes – os rios Alto-Paraguai, Sepotuba, Jauru e Cabaçal –, que constituem a chamada ‘caixa d’água’ do Pantanal, provendo de 25% a 30% do seu fluxo.
A peça central do plano do WWF-Brasil, apoiado por um investimento de US$ 4.5 milhões do banco HSBC, é a negociação do Pacto das Cabeceiras do Pantanal. O projeto de cinco anos tem como objetivo conseguir a adesão dos prefeitos de 25 municípios do Mato Grosso a um compromisso pela conservação e proteção das cabeceiras em suas regiões, bem como o engajamento e cooperação de atores em todos os níveis, de fazendeiros locais e pescadores de subsistência até o agronegócio e indústria – partes que, tradicionalmente, veem organizações ambientalistas como uma ameaça a seus modos de vida e ao seu lucro. A tarefa é enorme, reconhece Freitas, mas, segundo ele, de importância vital: “Água é tudo para o Pantanal. Nós precisamos do engajamento de todos os setores da sociedade fazendo-os compreender que cuidar do seu recurso hídrico não beneficia apenas suas atividades cotidianas mas também provê uma base para uma indústria saudável no longo prazo”.
A primeira semente do Pacto foi lançada há cinco anos com um projeto na região do município de Reserva do Cabaçal, com o objetivo de recuperar uma nascente que havia secado, uma das centenas que alimentam os rios Cabaçal, Jauru e Sepotuba. Estes, por sua vez, escoam na direção do rio Paraguai, a principal artéria do ‘pulso’ do Pantanal. “Se a água morrer, o Pantanal morre com ela”, diz Freitas.
O Cerrado mato-grossense onde brotam as águas do Pantanal era praticamente uma mata virgem até os anos 1960, quando o governo militar brasileiro iniciou um programa para transformar a região em fazendas e pastagens. Posseiros receberam carta branca para desmatar e cultivar a terra para criação de gado e produção agrícola intensiva, principalmente de soja, hoje o principal produto agrícola do Mato Grosso.
Trinta e cinco por cento da soja do mundo é plantada no Brasil. Desses, um terço é exportado para a China.
Nos últimos 40 anos, cerca de 50 por cento do Cerrado foi desmatado para criação de gado e para cultivos. Essa destruição foi feita ostensivamente mesmo com o Código Florestal introduzido em 1965, que estipulava que, propriedades do Cerrado no Mato Grosso, 35 por cento da área deveria ter a floresta preservada, o que hoje é conhecido como ‘Reserva Legal’ (para a Amazônia, essa reserva deve ser de 80%). O Código também estipula, numa série de cálculos complexos, a largura das faixas de vegetação que deve ser preservada às margens de rios e nascentes. Essa mata ciliar age não apenas como uma zona tampão para impedir a erosão do solo e o assoreamento dos rios, mas também provê um habitat importante para pássaros e primatas . Desde seus primeiros dias, no entanto, a fiscalização da aplicação do Código foi aleatória; muitos fazendeiros simplesmente o ignoraram. E, em 2013, após pressão do poderoso lobby do agronegócio, o Código foi revisto para reduzir a quantidade de matas ciliares que, obrigatoriamente, deve ser preservada nas margens dos rios.
Práticas agrícolas ruins constituem um dos fatores que mais ameaçam as nascentes do Pantanal. A erosão do solo causada pelo sobrepastejo em pastagens de solo arenoso cria ravinas que bloqueiam as nascentes e geram os sedimentos carregados correnteza abaixo, assoreando os rios. Há, também, a poluição da água por produtos químicos utilizados nas fazendas e na mineração de ouro, que já foi uma atividade importante no Mato Grosso (cuja capital Cuiabá foi fundada durante o ciclo do ouro do século 18). “As pessoas vieram para cá nos anos 1970 e 1980 com a ideia de ganhar dinheiro”, diz Freitas. “Não se importaram com a terra. Agora estamos pagando o preço”.
Ao sobrevoar o Cerrado, tem-se a clara noção tanto das transformações pelas quais a terra passou, quanto dos fatores que estão diminuindo o suprimento de água para o Pantanal. Tão longe quanto os olhos podem ver, a região revela um vasto mosaico de áreas cultivadas e matas. O gado pastoreia em trechos imensos de fazendas, onde apenas uns poucos esqueletos de árvores restaram, de onde a floresta foi cortada. Em algumas áreas as ravinas causadas pela erosão do solo são claramente visíveis. Faixas de mata ciliar marcam a presença de uma nascente, ou o curso de córregos e afluentes levando à larga e tortuosa faixa do rio Sepotuba. Em dois pontos ao longo do rio, duas grandes barragens podem ser vistas – parte de um extenso programa de gerar energia para a região que, no decorrer dos próximos cinco anos, resultará em 137 represas construídas ao longo das cabeceiras, representando uma ameaça crescente ao ‘pulso’ natural do Pantanal e à migração de peixes, cujos efeitos já podem ser sentidos pelas comunidades que moram rio abaixo.
Voando na direção sul, pode-se ver a terra tornando-se cada vez mais pantanosa, com os pedaços de floresta e fazendas de gado borrifados com largas manchas de água, brilhando como espelhos à luz do sol. A proporção de água cresce gradualmente em relação à de terra, até a paisagem se parecer com uma tinta azul derramada por sobre um papel verde borrado, assinalando o início do Pantanal.
Na pacata cidade de Poconé, a estrada de cascalho dá origem a uma pista larga, não cuidada, a – Estrada Transpantaneira, uma espinha elevada, correndo através das terras alagadas, e o única acesso terrestre ao coração do Pantanal, o Parque Nacional do Pantanal, a cerca de 100 km ao sul. Pontilhando a estrada, dos dois lados, estão entradas para ranchos (estâncias), alguns dos quais se anunciam como eco-resorts.
Dos dois lados da estrada, a terra está tomada por uma lâmina brilhante de água, com ilhas de árvores e vegetação. Gado nelore cinzento, raça resistente da Índia, pastoreia no capim alto, com as patas imersas na água. Dois vaqueiros abrem sua trilha através da pastagem alagada em fortes cavalos Pantaneiros, chutando jatos de água; um bando de patos forma um V perfeito sob um arco de límpido céu azul. É uma cena para fazer acreditar, como escreveu William Blake, que tudo é sagrado.
Fazemos uma curva para fora da estrada, guiando por uma trilha, até um conjunto de prédios: o Araras Eco Lodge. O dono da pousada, André von Thuronyi, era um aventureiro conduzindo expedições na Amazônia quando, há 25 anos, comprou a propriedade, então uma pequena fazenda, com o objetivo de explorar o ecoturismo. Nós nos sentamos na sombra, tomando suco de laranja, enquanto, a 10 metros de distância, do outro lado da cerca, um grupo de jacarés-açu repousava no baixio.
Quando ele se mudou para a fazenda ele encontrou os livros de contabilidade do antigo dono, ele diz, detalhando o dinheiro que ganhava da venda de peles de onça e jacaré e das plumas de aves exóticas para desfiles de Carnaval. “Essa era a economia, naquele tempo”. Thuronyi se fixou tentando promover a conservação por meio do que chama de ‘taxa de visitação’, repassando o dinheiro para que os fazendeiros não matem as onças que se alimentam dos rebanhos. “Eles me perguntavam, o que eu tenho de fazer? Eu respondia, você não precisa fazer nada, apenas não faça fogo e não atire em nada. ‘E você vai me dar dinheiro?’ Logo estavam fofocando que esse cara de cabelo comprido e brinco era meio estranho…”, relembra ele rindo.
Foi a primeira pousada ecológica nessa região do Pantanal. Agora há cerca de 20 donos de terra e fazendeiros com pousadas de tamanhos variados, em suas propriedades. “Eles estão ganhando mais ao manter a natureza viva e bem cuidada. Basicamente, nós temos dois tipos de pessoa. Aqueles que compreendem em seu coração que a natureza deve ser amada, e aqueles que amam a natureza porque ganham dinheiro. Contanto que a natureza seja preservada, não me importa em qual dos lados você está”.
“Eu não conheço nenhum outro lugar onde o eco turismo tenha feito tanta diferença. Quando eu cheguei aqui, levei 11 anos para ver uma onça. Agora vejo onças regularmente. E parda, pintada… O que tem diminuído é a sucuri: já quase não se vê mais, por causa da deterioração da qualidade da água”.
O povo pantaneiro, ele continua, é provinciano e desconfiado de forasteiros. Ele só foi realmente aceito quando começou, ele mesmo, a criar gado e cavalos pantaneiros. Menores e resistentes, esses cavalos se adaptaram a pastorear com os narizes embaixo d’água e a suportar a elevada umidade do ar. Ele fala sobre a ameaça à região representada pelo desenvolvimento agrícola rio acima. Ele havia visto algumas fotografias tiradas por um piloto que sobrevoou uma imensa plantação de soja ao longo do rio Paraguai. “Não respeitaram nada. Simplesmente plantam até a beira da água. Pensam que não tem importância”. Ele suspira.
As novas represas rio acima e o acúmulo de sedimentos modificou a hidrologia da área, diz von Thuronyi. Em alguns locais o canal original do rio se perdeu completamente, áreas que não deveriam alagar agora estão debaixo d’água, outras que deveriam estar úmidas, secaram. “Nós dependemos do pulso da inundação, então todas essas coisas que limitam esse movimento têm consequências. É tudo consequência do desenvolvimento.” Ele gesticula ao seu redor. “Olha isso! Eu sou pela vida. E não tem nenhum outro lugar no mundo onde isso é tão forte, nem mesmo na África. Mas se você me perguntar sobre o futuro do Pantanal, eu não sou otimista.”
O rancho de von Turonyi, Bafo da Onça fica a duas horas de carro do outro lado da rodovia Transpantaneira. Um grupo de vaqueiros conduz o gado pelo pasto, para os currais. Um bezerro arredio se desgarra do rebanho e é levado para um piquete separado, onde um vaqueiro se prepara para laçá-lo, enquanto um garoto de uns 12 anos assiste, sentado na cerca. Resistindo na ponta da corda, o bezerro se assusta e se chocou com o cavalo. O cavalo empina e gira, afundando os dentes no pescoço do bezerro que, estonteado, vai ao chão. De seu assento na cerca, o garoto vibra e aplaude com prazer.
O nome do vaqueiro é Gonzalo. Ele tem 47 anos, baixo e magro, com os braços rígidos como aço. Como seu pai, seu avô e seu bisavô antes dele, ele tem sido um vaqueiro por toda a sua vida. Mas as coisas estão mudando. No tempo de seu pai, todos os pantaneiros viviam no rancho. Gonzalo trabalha no rancho durante a semana e, nos fins de semana ele dirige até sua casa em Poconé, que ele chama de ‘cidade’, com sua população de 20 mil habitantes.
Antigamente, os vaqueiros passavam quatro ou cinco dias conduzindo gado para ser vendido ou abatido. Hoje, os animais são quase sempre transportados pela estrada, em caminhões. Gonzalo tem três filhos, mas duvida que qualquer um deles virá a ser vaqueiro. “Para mim, será melhor se eles estudarem e conseguirem um emprego na cidade. Poucos garotos querem fazer isso; eles querem um emprego que pague mais”, ele dá de ombros. “O antigo modo de vida está morrendo”. O garoto, de pé ao lado, tímido, olhava e escutava. “O que você quer ser quando crescer?”, pergunto. Ele ri. “Pantaneiro!”
Entre os mais diretamente afetados pelas mudanças hidrológicas das nascentes estão os pescadores correnteza abaixo, que vivem do que o rio lhes dá. Ao longo do rio Cuiabá, um pescador chamado João, homem cansado e de aparência surrada, vive com a mulher e um neto numa pequena choupana construída com tijolos de barro e telhado de ferro corrugado. Galinhas ciscam no quintal. Ao lado da casa, um grande tanque de plástico coleta água da chuva. Um balde está cheio de latas de refrigerante retiradas do rio para serem vendidas na cidade. Duas embarcações estão amarradas em um precário píer de madeira, um barco a motor e uma canoa, para pescar. Uma cesta de vime está submersa na água – “freezer de pantaneiro”, diz ele. Ele a levanta para mostrar a pesca do dia: piranhas, se debatendo violentamente à luz do sol.
Mais de cem pessoas vivem nesse trecho do rio, ele diz, mas a pesca está ficando mais difícil a cada dia. Há dez anos, ele pescava peixes suficientes para levar a Poconé, para vender. “Agora demora mais de um mês para pescar a mesma quantidade” .
O excesso de captura pela pesca esportiva tornou os bagres mais raros; a qualidade da água está piorando – quando a chuva vem dá pra ver o lixo flutuando, vindo de Cuiabá, e as águas estão ficando mais rasas, por causa do assoreamento. Há trechos do rio que tinham sete metros de profundidade, mas que durante a estação seca ficam rasos o suficiente para se caminhar de margem a margem.
João diz que hoje está mais pobre do que nunca. “Eu tenho 57 anos – eu me considero velho. Mas eu estou preocupado com os jovens que não vão ter como sobreviver nessa região e vão ter de ir embora. Rio acima, as pessoas não se importam com o rio, e aqui a gente paga o preço”.
Cáceres está localizada às margens do rio Paraguai, no ponto onde o Cerrado faz fronteira com o Pantanal. A cidade é famosa pelo Festival Internacional da Pesca, que dizem ser a maior competição de pesca em água doce do mundo. O prefeito Francis Maris Cruz é um homem de barba, de expressão séria, que aceitou fazer parte do Pacto das Nascentes. Segundo ele, a pesca esportiva é uma parte importante da economia local e está sofrendo com as mudanças hidrológicas. Os peixes estão se tornando menores e menos numerosos. O dourado, particularmente popular entre os pescadores esportivos, está à beira da extinção na região, e sua captura está proibida.
“Para nós, no entanto, a maior questão do pacto é o saneamento”, afirma o prefeito. Cáceres trata apenas 10% do seu esgoto (a média nacional é 40%). O restante é lançado ao rio Paraguai. Seus antecessores não consideraram isso importante, diz Maris Cruz; iria custar muito para resolver o problema, “e o rio Paraguai é tão largo, com um volume tão grande de água que ele ajuda e levar o esgoto embora”.
Sob o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), o Governo Brasileiro destinou 41 bilhões de reais, em quatro anos (2011-2014) para melhorar as condições sanitárias em todo o País. Mas apenas 12% dos fundos alocados foram efetivamente utilizados, afirma Freitas.
“Os municípios não têm capacidade de redigir as propostas e apresentar para o governo para ter os recursos liberados. Para ser honesto, para preservar a biodiversidade no Brasil você precisa reconstruir a governança. E nós temos uma crise de governança no Brasil”, completa o ambientalista. Julio Florindo, prefeito de Barra do Bugres, localizada rio acima em relação a Cáceres, solicitou os recursos do Governo Federal para ampliar o sistema de tratamento de esgoto em sua cidade. “Nós ainda não recebemos uma resposta”, diz ele. “Por causa da Copa do Mundo os recursos para saneamento foram priorizados para as cidades-sede, e isso prejudicou cidades como essa”.
Florindo concebeu um esquema engenhoso para lidar com outro problema, que ele considera um dos mais importantes da cidade. Trata-se das comunidades ribeirinhas rio acima simplesmente jogando seu lixo no rio, para ser levado embora, para longe dos olhos e longe do pensamento. Ele quer comprar o lixo deles. “Seria mais barato do que gastar um monte de dinheiro limpando o rio. É uma situação em que todos ganham, o rio e a comunidade. É triste, mas dinheiro é sempre a maneira mais rápida de chamar a atenção das pessoas”, conclui ele, dando de ombros.
Em Cáceres, caminhei ao longo da margem do rio, até a praça central. Estava anoitecendo e os bares e restaurantes estavam recebendo as famílias locais. Alguns barcos de recreio de dois andares estavam ancorados no rio, para aluguel por grupos de pescadores esportivos que vêm de todo o país – uma benção duvidosa. “Eles não gastam nada na cidade”, me diz o líder da associação local de fazendeiros. “Eles trazem sua própria comida e bebida; eles jogam seu lixo no rio. A única coisa com que eles gastam dinheiro é a prostituição. E então vão embora”. Perto da praça um tubo de concreto despeja o esgoto no rio. A cem metros dali, crianças nadam, perto de um banco de areia.
Isidoro Salomão vive a 10 quilômetros rio abaixo, em uma estância construída em um terreno arborizado, à margem do rio. Ele é um sujeito magro, de face esculpida e um ar sisudo, grave. Nós caminhamos até um barco ancorado perto da casa – uma versão menor dos modelos de recreação que eu havia visto em Cáceres. Caminhamos por uma prancha e subimos os degraus até o deck superior para conversarmos, enquanto lanchas e botes levando pescadores esportivos deslizavam rio acima e abaixo.
Durante 20 anos Salomão foi padre e, em suas palavras, um “mobilizador social”. Mas há seis anos um novo bispo assumiu a diocese. “Ele tinha um ponto de vista conservador; ele disse que eu deveria ensinar apenas religião e evitar o trabalho social. Eu não podia aceitar isso, então eu deixei a igreja”. Com uma herança de seu pai, Salomão comprou a estância e estabeleceu o Comitê Popular de Defesa do Rio Paraguai. A organização agora possui 108 membros em 16 cidades ao longo do rio: associações de fazendeiros e pescadores, escolas, a universidade local e organizações não-governamentais. Salomão transformou as casas da estância em salas de reunião e um dormitório, que ele aluga para conferências. O barco é utilizado para levar grupos de alunos das escolas rio acima e abaixo, para educação ambiental. Isso, diz ele, é uma batalha em diversas frentes: luta contra propostas de transformar o rio numa hidrovia para grandes embarcações; luta contra mais represas rio acima; luta pela melhoria do saneamento.
Quando eu expressei meu choque pelo fato de apenas 10% do esgoto de Cáceres ser tratado, Salomão balançou a cabeça. “Eu diria 3%. Na estação de chuvas a correnteza é mais veloz e dilui o esgoto, mas na estação seca não se pode entrar no rio – está muito contaminado”.
Ser um ativista ambiental não é uma ocupação sem riscos. A alguns quilômetros rio abaixo, Salomão diz, há um processador de couros que joga produtos químicos não tratados na água. A empresa foi multada em R$ 450 mil pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (a multa, diz Salomão, ainda não foi paga). Depois de Salomão ter apresentado evidências para o promotor de Justiça, ele afirma ter sido ameaçado: “Um estranho entrou no meu carro com uma arma e disse que eu precisava me calar. Eu não sei dizer exatamente quem o mandou. Nós temos muitos inimigos”.
Mesmo entre brasileiros, há uma dolorosa falta de conhecimento sobre a importância do Pantanal. Oitenta por cento da população do país vive em cidades, e uma pesquisa recente conduzida pelo WWF-Brasil revelou que, enquanto 93% dos entrevistados tinham ouvido falar do Pantanal, 92% nunca foram lá e duas entre cada três pessoas não sabem sequer identificar sua localização no mapa. Apenas 18% sabem que são águas do Cerrado que alimentam as áreas alagadas. “Para a maior parte das pessoas no Brasil ‘meio ambiente’ significa Amazônia”, diz Freitas. “Acham que não tem nada a ver com eles”.
Aumentar o conhecimento do público por meio da mídia e de escolas é outra parte do projeto. A maior parte das pessoas, talvez, vê o WWF-Brasil como uma organização preocupada apenas com a preservação de espécies, mas o Pacto em Defesa das Cabeceiras do Pantanal envolve o engajamento de uma grande gama de interesses divergentes, de fazendeiros a banqueiros, nem todos satisfeitos com o envolvimento do WWF-Brasil.
“Nós encontramos algum ceticismo”, admite Freitas. “As pessoas nos vêm como uma organização internacional que não representa os interesses nacionais. Até me disseram que nós estamos representando os interesses de produtores de soja dos Estados Unidos!”.
Em nove meses, 72 grupos e instituições, incluindo grupos de pescadores, produtores locais, proprietários de abatedouros e a organização de Salomão assinaram cartas de intenção de apoio ao Pacto. Mas construir uma aliança onde há interesses conflitantes é uma tarefa difícil e dolorosa.
Dariu Carniel é o diretor executivo do Consórcio das Nascentes do Pantanal, responsável pela promoção da ideia do pacto em 14 das 25 municipalidades. “Dos 14 prefeitos com quem eu trabalho eu diria que apenas três têm a conservação ambiental em mente”, ele diz. “A maior parte deles vê o investimento ambiental como algo que não traz vantagens para eles, portanto é prioridade zero”.
“Por exemplo, na questão das pequenas represas hidrelétricas. As agências hidrelétricas vão procurar os prefeitos tentando convencê-los dos benefícios da represa, mas escondendo os problemas sociais e ambientais que as elas apresentam. Então o nosso trabalho é balancear os prós e os contras do desenvolvimento, colocando a transparência na mesa. Nós também precisamos chegar à população discutindo questões ambientais, porque se a população pensa que é importante, o prefeito também vai pensar que é”, explica Carniel.
Em cidades menores o prefeito pode ser um fazendeiro com interesses pessoais em favorecer o desenvolvimento, em vez da conservação. As possibilidades de corrupção são várias. Em dois dos 25 municípios alvo do projeto, os prefeitos foram recentemente afastados do cargo. E o setor agroindustrial mantém um lobby poderoso junto aos governos estaduais e locais. “Eles têm se organizado muito bem”, diz Freitas. “Nós temos de aprender com eles. O desafio é persuadir os produtores que a conservação é benéfica para eles, e não uma ameaça aos seus lucros. Nós precisamos mudar toda uma cultura para poder fazer o nosso trabalho”.
Um dos maiores incentivos para as boas práticas é financeiro. O WWF-Brasil fechou uma importante parceria com o Banco do Brasil, maior financiador do agronegócio no país, para que empréstimos a juros baixos para fazendeiros estejam contingenciados pela manutenção dos requisitos legais de reserva legal e preservação de matas ciliares.
Supermercados estão sendo encorajados a adquirir apenas carne proveniente de boas práticas. E os municípios estão sendo cobrados a aplicar multas por más práticas ambientais impostas a empresas para financiar projetos de conservação.
Em Tangará da Serra, importante cidade industrial e comercial no coração da região produtora de soja, o WWF-Brasil tem ajudado a implementar um projeto piloto com o governo municipal para convencer empresas locais a financiar projetos de serviços ambientais, fazendo pequenas doações a fazendeiros para ajudá-los a seguir boas práticas: cercar nascentes evitar o gado e restaurar áreas degradadas em suas terras.
“Tangará da Serra tem um índice pluviométrico de 1.800 mm; não deveria ter qualquer tipo de problema”, diz Freitas. “Mas, mesmo assim, o município enfrenta problemas de suprimento de água durante a estação seca, devido à poluição da água e o desmatamento. É impressionante”.
Ao viajar pelas cidades e terras alagadas do Cerrado e do Pantanal, fica-se impressionado pela magnitude do desafio do Pacto das Cabeceiras. Mudar atitudes, incentivar boas práticas, forjar um consenso entre governos locais, setor privado e sociedade civil sobre a necessidade de se preservar as cabeceiras dos rios e a melhor maneira de se conseguir isso leva tempo. Mas existe uma pequena parte do projeto que já se apresenta como um sucesso palpável e altamente visível.
A pequena vila da Reserva do Cabaçal fica a três horas de carro, pelo Cerrado, partindo de Cáceres. Foi aqui, nas fazendas acima da cidade que o projeto que deu origem ao pacto teve início, em 2010. No local de uma nascente natural, o gado se alimentando da pastagem ao redor e se aproximando para beber água havia erodido o solo arenoso, permeável, originando uma série de ravinas profundas que bloquearam a nascente com sedimentos e transformaram o que antes era um regato que fluía rapidamente em um leito enlameado. Ao longo de quatro anos uma força de trabalho local, financiada pelas multas pagas por más práticas, restaurou as margens do riacho construindo uma série de terraços de bambu e plantando espécies nativas de plantas e árvores para segurar o solo.
O projeto, o primeiro de 30 restaurações semelhantes na região, gerou 20 empregos, levou ao estabelecimento de um viveiro de mudas e levou à redução de aproximadamente 1.5 metros cúbicos de sedimentos que poluiriam os afluentes próximos.
Caminhando pela terra miserável, pontilhada com todos de árvores caídas, é fácil identificar o local do projeto de restauração, marcado por uma grande tela, densa de vegetação. Os terraços de bambu acabaram desparecendo completamente sob o crescimento da mata virgem. O que antes tinha sido o leito ressecado é agora um fluxo rápido de água limpa e fria. Entrando mais fundo dentre as copas das árvores recém-crescidas, chegamos a uma piscina borbulhante. “A fonte do Pantanal”, diz Freitas, com uma nota de admiração em sua voz. No esquema mais amplo das coisas, o projeto é uma gota no oceano – ou melhor, no rio. Mas é um começo. Freitas coloca as mãos juntas em formato de concha sob a nascente, retendo, a água que flui, brilhando, entre os dedos, e ri: “Vida!”
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Pantanal: Ativistas lutam para preservar as planícies alagadas do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU