27 Outubro 2014
Será que a experiência do Sínodo sobre a família, em Roma, poderá ser repetida nas dioceses ou mesmo nas paróquias? Essa é a pergunta que será feita durante o ano que antecede o próximo Sínodo. Muita coisa vai depender dos bispos e do clero e se eles terão a fé e a coragem de imitar Francisco.
A reflexão é do jesuíta norte-americano Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos EUA, de 1998 a 2005, e autor de O Vaticano por dentro (Ed. Edusc, 1998). O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 24-10-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Eis o texto.
O evento mais notável do Sínodo sobre a família ocorreu no seu início, quando o Papa Francisco encorajou os bispos a falar francamente, mesmo se eles não concordassem com ele. Agora que o processo sinodal transferiu-se para conferências episcopais e dioceses locais, será que os bispos vão imitar Francisco e incentivar uma discussão aberta em suas dioceses?
Imagine um bispo na frente do seu conselho de sacerdotes ou de seu conselho pastoral diocesano usando as palavras do Papa Francisco:
Dou-lhe as boas-vindas a este encontro e os meus sinceros agradecimentos por sua presença e ajuda solícita e qualificada. ... Agradeço também a vós, queridos ... sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos e leigas a vossa presença e pela sua participação, o que enriquece as obras e o espírito de colegialidade e sinodalidade para o bem da Igreja e das famílias!
Então, modificando ligeiramente as palavras do papa, o bispo poderia continuar:
Vocês trazem a voz das paróquias reunidas a nível de nossa diocese local. Vocês vão levar esta voz em termos de sinodalidade. É uma grande responsabilidade: levar as realidades e os problemas das paróquias, para ajudá-las a caminhar nesse caminho que é o Evangelho da família.
A condição geral básica é esta: falar claramente. Ninguém deve dizer: "Isso não pode ser dito; ele vai pensar de mim desta ou daquela maneira ..." Vocês têm que dizer tudo o que vocês sentem com parresia, uma palavra grega que significa falar com franqueza, abertamente e sem medo.
Após o último consistório (em fevereiro), em que se falava da família, um cardeal escreveu ao papa dizendo: pena que alguns cardeais não têm a coragem de dizer algumas coisas por respeito aos sentimentos do papa, pensando, talvez, que o papa tivesse uma ideia diferente. "Isso não é bom", disse o papa. "Isso não é a sinodalidade".
Em imitação do Santo Padre, eu digo a vocês, é necessário dizer tudo o que, no Senhor, se sente deva ser dito, sem respeito humano, sem medo. E, ao mesmo tempo, é preciso ouvir com humildade e receber com o coração aberto o que os irmãos e irmãs irão dizer. A sinodalidade será exercida com essas duas atitudes.
Portanto, peço-vos, por favor, por estas atitudes de irmãos e irmãs no Senhor: falar com parresia e ouvir com humildade.
O Papa Francisco foi capaz de dizer essas palavras aos bispos reunidos em Roma porque confiava no Espírito para guiar a Igreja através de um processo consultivo. Será que os bispos têm a mesma fé e coragem? Eles conseguem se sentar em silêncio e atentamente ouvir as vozes de seus sacerdotes e de seu povo?
O processo sinodal não acabou. Ele agora se desloca de Roma para o nível local à medida que a Igreja continua discutindo as questões enfrentadas pela família, em preparação para o Sínodo de outubro 2015.
O Sínodo, que terminou em 19 de outubro, preparou uma relatio, ou documento de trabalho, para discussão em toda a Igreja, o que, infelizmente, ainda não foi traduzido para o inglês. Esse documento não é a palavra final, mas destina-se a estimular a discussão nas Igrejas locais.
Esse documento reconhece, ao listar os votos dos bispos, que alguns temas não alcançaram consenso, como o tratamento de gays e a readmissão dos católicos divorciados e recasados à comunhão. Os bispos precisam ouvir o que seus sacerdotes e as pessoas pensam sobre estas questões.
Os bispos também precisam ouvir sobre os assuntos que não são tratados no documento de trabalho. Certamente, alguns bispos de países em desenvolvimento pensaram que a relatio concentrou-se em problemas do Primeiro Mundo, dando pouca atenção aos deles. Foi dada atenção suficiente aos fatores sociais e econômicos que prejudicam a vida familiar?
Antes de discutir a relatio, os bispos, os sacerdotes e também o povo em geral, enfim, todos deveriam ler o discurso final do papa para o Sínodo. Aqui, ele fala sobre o que viu e ouviu no Sínodo e o que poderemos esperar enquanto continua o processo sinodal no nível local.
Francisco experimentou o Sínodo como uma viagem. "Como toda jornada, houve momentos onde corremos rápido", disse ele. Houve "momentos de cansaço, como se quiséssemos dizer 'basta'" e "outros momentos de entusiasmo e ardor".
Houve momentos de consolo ao ouvir os testemunhos de famílias que compartilham "a beleza e a alegria de sua vida de casados". Mas também houve momentos de desolação e tentação.
Dentre as tentações estava "a tentação da inflexibilidade hostil, ou seja, do querer fechar-se dentro da palavra escrita (a letra), e não deixar-se surpreender por Deus, pelo Deus das surpresas (o espírito)", disse ele. Somos tentados a fechar-se "dentro da lei, dentro da certeza daquilo que sabemos e não daquilo que ainda precisa ser aprendido e alcançado". Ele observou que "desde o tempo de Cristo, essa é a tentação dos fanáticos, dos escrupulosos, dos zelosos e dos chamados - hoje - 'tradicionalistas' e também dos intelectuais".
Mas ele também viu a tentação "dos 'benfeitores', dos medrosos e também dos chamados 'progressistas e liberais'". Aqui, a tentação é de ter "uma tendência destrutiva à bondade [buonismo], que, em nome de uma misericórdia enganosa, ata as feridas sem primeiro curá-las e tratá-las; que trata os sintomas e não as causas e as raízes".
O que ele quer dizer com atar as feridas sem antes tratá-las? Isso seria como o médico que enfaixa uma mulher espancada sem se preocupar em saber como ela apanhou. Isso também seria o padre que diz: "Claro, você pode se casar de novo", sem qualquer análise do que causou a primeira separação e o divórcio. Tanto o médico quanto o padre não escutaram a história da pessoa ou ajudaram a garantir que a ferida não voltasse a acontecer.
Quando nos reunirmos na paróquia ou a nível diocesano, cada um de nós terá que examinar a sua consciência e reconhecer as tentações a que estamos mais suscetíveis. E, também, o Papa Francisco diz que "as tentações não devem assustar ou desconcertar-nos, ou mesmo nos desanimar". Na verdade, "pessoalmente, eu ficaria muito preocupado e triste se não fosse por essas tentações e essas discussões animadas; esse movimento dos espíritos, como Santo Inácio os chamava (Exercícios Espirituais, 6), se todos estivessem em um estado de acordo ou quietude em uma paz falsa e silenciosa".
Em vez disso, ele ouviu "com alegria e gratidão - discursos e intervenções cheias de fé, de zelo pastoral e doutrinal, de sabedoria, de franqueza, de coragem e de parresia".
Sentia-se "que o que foi colocado diante dos nossos olhos era o bem da Igreja, da família e da 'lei suprema', do 'bem das almas' (cf. Cân. 1752)". E isso foi feito "sem nunca colocar em causa as verdades fundamentais do sacramento do matrimônio: a indissolubilidade, a unidade, a fidelidade, a fecundidade, ou seja, a abertura à vida (cf. Cân. 1055, 1056; e Gaudium et Spes, 48 )".
Será que a experiência do Sínodo sobre a família em Roma poderá ser repetida nas dioceses ou mesmo nas paróquias? Essa é a pergunta que será feita durante o ano que antecede o próximo Sínodo. Muita coisa vai depender dos bispos e do clero e se eles terão a fé e a coragem de imitar Francisco.
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Chegou a hora de os bispos imitarem Francisco e começarem a consultar sacerdotes e leigos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU