14 Abril 2014
"Como foi possível um estrangeiro – um holandês na Síria – conquistar os corações de todos os sírios, fossem eles cristãos ou muçulmanos, a favor ou contra o regime? Alguns poucos membros da comunidade em que vivia, quando deixaram a Cidade Velha de Homs, disseram sobre ele: “Não conseguiremos viver sem Abuna (Padre) Frans”. Você está se perguntando: Como isso foi possível? Foi possível porque Frans conhecia os segredos para se ser um bom missionário", escreve Tony Homsy, jesuíta sírio, estudando Jornalismo Digital e Ciências da Computação na Universidade de Creighton, em Omaha (Nebraska, EUA), em depoimento publicado por The Jesuit Post, 08-04-2014. A tradução é de de Isaque Gomes Correa.
Tony Homsy pertence à Província jesuíta do Oriente Médio, tem 28 anos e trabalha como webmaster no site da sua Província. Depois que concluiu o curso de Bioquímica na Universidade de Aleppo, entrou na Companhia de Jesus, passando dois anos no Cairo, Egito. Em seguida, estudou Filosofia e Civilização Árabe em Beirute, Líbano. Além de estudar, Tony passa seu tempo envolvido com fotografia e traduções do e para o Árabe.
Eis o artigo.
Padre Frans celebrando o seu 50º aniversário na Companhia de Jesus, poucos dias antes de minha entrada em 2009. Esta foto foi tirada no Al-Ard, um projeto que ele fundou, um oásis espiritual, que inclui um centro para deficientes, uma casa de retiros, “Casa da Paz”, e uma adega. Foto: Tony Homsy
Quando acordei na manhã da última segunda-feira (07-04-2014), fui diretamente conferir meus emails. Todos os meios de comunicação estavam falando sobre o assassinato do Pe. Frans van der Lugt, SJ. Na manhã deste dia Frans “foi levado por atiradores mascarados de sua residência em Homs, na Síria, onde vivia, e executado a tiros (...). Apesar das ameaças, ele voluntariamente decidira continuar vivendo na cidade de Homs em solidariedade ao povo que não podia abandoná-la. Ele permanece em nossos pensamentos e orações”. [1]
Fora da Síria, “Frans” – como o chamávamos – não era um nome conhecido, como Kolvenbach, outro missionário holandês da Província Jesuíta onde nasci (Província do Oriente Médio); Kolvenbach foi Superior Geral da Companhia de Jesus. No entanto, as pessoas que o conheciam sabiam da pessoa simples, generosa e amorosa que ele era. Parte de mim está tentando celebrar Frans como um alguém que tinha devotado sua vida a um propósito, e que agora havia cumprido definitivamente. Mas uma outra parte de mim está de coração partido ao perder um grande companheiro, um jesuíta que inspirou todos os jesuítas sírios ao longo das últimas décadas.
Nos últimos anos, Frans estava profundamente envolvido com o conflito em curso na Síria. O blog “Erasmus”, hospedado no site da revista The Economist, reconheceu sua vida de serviço numa postagem no dia 10 de fevereiro ao observar o desejo de Frans em advertir a “opinião mundial para a situação das pessoas em Homs”. [2]
No dia 8 de abril, um dia depois que Frans foi assassinado, o mesmo blog citou outro jesuíta: Jan Stuyt chamou Frans de “mártir do diálogo inter-religioso”. O blog expressa de modo muito feliz o impacto que o Pe. Frans causou tanto em vida quanto após sua morte:
“Ao permanecer no centro da cidade sitiada de Homs durante a ocupação por parte dos rebeldes que incluíam militantes islâmicos e, depois, durante um cerco por parte do governo, ele estava oferecendo socorro a todas as vítimas do conflito – foi uma espécie de crítica a todos os beligerantes. Ele conscientemente arriscava sua vida permanecendo num lugar onde alguns rebeldes islâmicos agiam; mas ele também testemunhou as consequências cruéis do cerco ao se recusar a sair quando isso era tão fácil de ser feito, e quando ninguém o teria culpado. A partir da perspectiva que ele ofereceu, todas as vítimas civis eram merecedoras de compaixão, e os combatentes de ambos os lados tinham cada um sua parcela de culpa. Isso soa como uma verdade pela qual vale a pena morrer – e esta verdade vai um pouco adiante do diálogo religioso”. [3]
Fui abençoado por viver no mesmo prédio durante os dois últimos anos que permaneci em Beirute com o Pe. Kolvenbach. Mas com o Pe. Frans eu vivi um pouco mais. Minha relação com ele começou durante minha trajetória para se entrar na Companhia de Jesus e ele era o delegado provincial no dia em que entrei...
Mas como foi possível um estrangeiro – um holandês na Síria – conquistar os corações de todos os sírios, fossem eles cristãos ou muçulmanos, a favor ou contra o regime? Alguns poucos membros da comunidade em que vivia, quando deixaram a Cidade Velha de Homs, disseram sobre ele: “Não conseguiremos viver sem Abuna (Padre) Frans”. Você está se perguntando: Como isso foi possível? Foi possível porque Frans conhecia os segredos para se ser um bom missionário. Bem como eu já escrevi sobre minha própria experiência junto de Frans, nele encontrei três características centrais que tanto o ajudaram a crescer como líder quanto como missionário, além de auxiliá-lo como ministro do Evangelho.
***
1. Generosidade: Frans doou-se livremente a cada um que encontrasse e foi como um pai para todos nós – jesuítas e leigos de igual forma. Ele se doou a tal ponto que ouvi alguns jesuítas resmungarem sobre o quão ele não cuidava de si próprio. Quando ele participava de retiros, passava a noite inteira ouvindo confissões e dando conselhos espirituais ou simplesmente ouvindo. Mesmo assim, levantava-se cedo e iniciava o dia a meditação zen.
Padre Frans comendo sorvete durante uma peregrinação na Síria. O Pe. Frans (aqui com 70 anos) sempre esteve inspirando a juventude síria com sua capacidade e fortaleza em guiar os peregrinos como se fosse o mais jovem do grupo. Foto: Tony Homsy
2. Amor: Muitos jesuítas são famosos por suas palestras que dão nas igrejas locais, e Frans não é nenhuma exceção. Mas há algo de especial sobre como ele fazia isso. Porque ele tinha entrado a fundo na cultura e na língua locais, e porque ele conhecia os detalhes do dia a dia da Síria, acabava falando com uma voz autêntica de amor. Atraia a juventude com suas palestras e pregações ao falar sobre o amor. Mas o que atraia a todos nós era sua própria vida: uma vida de amor. Este amor o chamou a encontrar felicidade sem ser sírio... e mais ainda em ser holandês, como ele costumava dizer.
Não vou me esquecer do dia em que tentei explicar uma piada que tinha contado (usando um sotaque regional da Síria), ao que ele me interrompeu:
– Vem cá, meu garoto. Quando anos você tem?
– Respondi: 23 anos...
– E ele continuou: Ok. Eu tenho 19 anos a mais do que você na Síria!
3. Simplicidade: Quem quer que se juntava ao Pe. Frans nas caminhadas que ele costumava organizar – talvez ele seja mais famoso por isso do que por ser um missionário jesuíta – via que este velho senhor vivia com o básico, com uma alimentação simples. Enquanto isso, todos nós sonhávamos com a hora de voltarmos para casa e desfrutar da comida deliciosa de nossas mães. No entanto, Frans era feliz comendo coisas simples. Em vez de viajar de carro, ele cruzava de bicicleta as ruas estreitas de Homs tal como muitas pessoas da cidade (embora talvez o fizesse com mais habilidade até!).
***
Poucos dias antes de sua morte, Frans postou estas palavras numa página de Facebook que ele usava para noticiar:
Cristãos na Velha Homs estão se perguntando: ‘O que podemos fazer? Não podemos fazer nada!’ Mas Deus tomará conta de nós; estamos paralisados, embora acreditemos que Deus esteja conosco, em especial nestas circunstâncias difíceis... Deus jamais nos abandonará, ele nos conhece e sabe de nosso sofrimento; ele jamais quis algum mal. Tudo o que ele tem é um olhar compassivo para com seus amados...
Nossa fé nos ajuda, e muito, a superarmos esta situação difícil; ela nos proporciona esperança e paciência... Mas está ficando cada vez mais difícil, e nossa capacidade está ficando cada vez mais reduzida... A fome está ameaçando nossas vidas, temos falta dos elementos básicos para sobreviver, alimento e necessidades básicas...
Mas de alguma forma estamos sobrevivendo e levando a vida adiante. Além disso, vivenciamos a bondade das pessoas que estão em necessidade. Elas encontram algumas lentilhas (tudo o que as pessoas podem comer depois de dois anos) em frente às suas casas. Hoje, quando estamos pobres e necessitados, redescobrimos a bondade dos seres humanos ao recebemos de nossos irmãos e irmãs.
Vemos que o mal está tentando encontrar o seu lugar entre nós, mas ele não pode nos cegar diante da bondade, e precisamos lutar para mantermos esta chama em nossos corações... Estamos esperando o resultado das negociações, estamos otimistas no sentido de que elas possam encontrar uma solução para todos. Mas a experiência nos ensinou a não acreditarmos em rumores...
Estamos nos preparando para a Páscoa, refletindo sobre a passagem da morte à ressurreição. Sentimo-nos como se estivéssemos no vale das sombras, mas podemos ver aquela luz lá de longe, guiando-nos para a vida novamente... Esperamos que a Síria novamente vivencie a ressurreição em breve... e seguimos em frente”.
Sinto sua falta, Frans. Na noite passada procurei loucamente em meus arquivos por uma foto do senhor comigo, o que me forçou a vasculhar todas as fotos que eu tinha tirado em diferentes eventos jesuítas nos últimos cinco anos. O senhor sempre esteve lá com seu sorriso e seu apoio. Posso vê-lo nos votos finais, nas ordenações, conferências e aniversários... Encontrei as fotos de meus primeiros votos; o senhor estava lá com certeza, nos bancos dos fundos com sua camisa vermelha. O senhor nunca perdeu a chance de inspirar, de geração em geração, os jesuítas sírios a continuarem em suas caminhadas. Depois percebi que o senhor sempre estará conosco, tal como como sempre esteve. Posso ouvi-lo, agora em meio ao meu percurso, dizendo para mim: “Vá adiante, Tony, e continue a obra da Igreja na Síria”.
Tentarei, Frans. Mas mesmo que eu seja jovem, tenho somente um pouco de sua energia.
Notas:
[1] http://sjweb.info/news/index.cfm?Tab=2&publang=1
[2] http://www.economist.com/blogs/erasmus/2014/02/jesuits-and-syria
[3] http://www.economist.com/blogs/erasmus/2014/04/new-versions-martyrdom
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Frans van der Lugt. Um homem de paz. Depoimento de um jovem jesuíta sírio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU