06 Janeiro 2014
Há cinquenta anos, Paulo VI e Atenágoras, patriarca ortodoxo de Constantinopla, se encontraram em Jerusalém. O abraço entre ambos selou o fim de uma excomunhão de quase um milênio. Segundo Andrea Riccardi, historiador italiano, "poucos dias do século passado são tão importantes como dia 5 de janeiro de 1964.
O artigo é publicado pelo jornal Corriere della Sera, 05-01-2014. A tradução é da IHU On-Line.
Eis o artigo.
No século passado, para o cristianismo, poucos dias são tão históricos como o dia 5 de janeiro de 1964.
Há cinquenta anos, Paulo VI e o Patriarca ortodoxo de Constantinopla, Atenágoras, se encontraram e se abraçaram em Jerusalém.
No dia 6 de janeiro o Papa visitou o Patriarca. Se encerrava desta maneira quase um milênio de excomunhões e de incomunicabilidade. Era uma mudança radical.
Em Roma, em pleno Concílio, o Papa tinha anunciado a próxima peregrinação na Terra Santa para os bispos estupefatos. A viagem tinha um valor simbólico: o retorno às origens evangélicas. Mas o Papa saíra da Europa cristã. Ele visitava um mundo onde os cristãos eram minoritários: Jerusalém e Belém sob o controle da Jordânia muçulmana; a Galileia e a periferia da Cidade Santa, em parte era de Israel. A Santa Sé não tinha relações diplomáticam nem com a Jordânia nem com Israel. O Papa se encontrava pela primeira vez com o hebraísmo e o Estado hebraico. As multidões muçulmanas o aclamaram.
Num quadro tão novo, chegou a proposta de Atenágoras: encotrar-se em Jerusalém onde ambos os líderes seriam peregrinos. Atenágoras, uma das maiores figuras do cristianismo do século XX. Entre os conflitos nacionais do fim do império otomano e as guerras, amadurecera uma visão ecumênica: a renovada unidade dos cristãos como fermento da unidade dos povos. Ele amava repetir: "Igrejas irmãs, povos fraternos".
Patriarca de Constantinopla desde 1948, guiava uma pequena comunidade grega em dificuldade na Turquia laica. Mas assumira uma verdadeira liderança ecumênica. Buscava a unidade entre as Igrejas Ortodoxas, divididas pela Guerra Fria e pelas lógicas nacionalísticas, sobretudo com o patriarcado de Moscou. Há muitos anos propunha relações novas com os católicas. Com João XXIII, começaram os contatos entre o Vaticano e o Fanar (a modesta sede do patriarcado de Istambul). No anúncio da viagem papal à Terra Santa, Atenágoras compreendeu que uma mudança radical era possível.
No dia 10 de dezembro de 1964, chegou a Istambul, vindo de Roma, o padre Duprey, infatígável artesão das relações com o Patriarca. Os problemas eram muitos. Por mais de novecentos anos houvera uma ruptura total determinada pela excomunhão de 1054. As sucessivas tentativas de união eram uma má recordação para os ortodoxos que as viam como fruto do imperialismo romano.
Mas agora o cenário era diferente. O Papa e o Patriarca podiam se encontrar no mesmo plano, reconhecer-se mutuamente como cristãos. Atenágoras denominava a isto de "diálogo do amor". O abraço entre os dois Primazes é o ícone de uma nova era ecumênica que permanece até hoje.
Pela primeira vez um Patriarca ortodoxo (considerado muitas vezes como cismático pela opinião católica) entrava no imaginário católico ao lado do Papa. O ecumenismo se tornava popular, apesar das resistências de ambos os lados.
Em cinquenta anos se avançou muito do ponto de vista do diálogo teológico e das relações cotidianas. Os cristãos, ainda que divididos, se sentem agora parte da mesma grande comunidade. Contudo, ente os ortodoxos e católicos permanece uma fratura aberta. A Eucaristia não é celebrada conjuntamente. Futuros passos são possíveis?
Atenágoras queria uma aceleração ecumênica, enquanto que Paulo VI - depois do encontro de Jerusalém - teve a sensação de que a unidade estivesse próxima. Mas as mentalidades e as teologias que foram desenvolvidas separadamente, durante quase um milênio, não se conciliam tão facilmente.
Contudo, hoje, ante um mundo globalizado, o problema da divisão dos cristãos volta à agenda. O desenvolvimento rapidíssimo e extensivo de comunidades cristãs neopentecostais, fragmentadas e capazes de ampla penetração, recoloca o valor da unidade, como característica das Igrejas cristãs. Trata-se de perguntar se não deve ser mais valorizado o que une os cristãos e não tanto o que os desune.
Hoje permanece atual a admoestação de Atenágoras: "Lamentável se os povos conseguissem um dia a união fora das estruturas e da teologia da Igreja". Segundo ele, seria uma unificação sem alma. Isto é um desafio para nós, geração da globalização.
Nota da IHU On-Line:
1.- No dia 5 de janeiro de 1964, às 21h30min, na Delegação apostólica de Jerusalém, houve o primeiro encontro de Paulo VI com Atenágoras. A conversa foi publicada por Daniel Ange (Paul VI, um regard prophétique", 1979) e republicado recentemente por Alfredo Pizzuto ("Paolo VI in Terra Santa", 2012). A conversa era para ter sido reservada, mas foi registrada pelos microfones da Rai que por um descuido não foram desligados.
Eis o início da conversa:
Paulo VI:
Exprimo-lhe toda a minha alegria, toda a minha emoção. Penso que este é realmente um momento que vivemos na presença de Deus.
Atenágoras:
Na presença de Deus. Repito: na presença de Deus.
Paulo VI:
E eu não tenho outro pensamento enquanto falo com o senhor, que aquele de falar com Deus.
Atenágoras:
Estou profundamente comovido, Santidade. As lágrimas me vêm aos olhos.
Paulo VI:
Como este é um verdadeiro momento de Deus, devemos vivê-lo com toda a intensidade, toda a retidão e todo o desejo...
Atenágoras:
... de andar avante...
Paulo VI:
... de fazer avançar os caminhos de Deus. Vossa Santidade tem alguma indicação, algum desejo que posso realizar?
Atenágoras:
Temos o mesmo desejo. Quando tomei conhecimento pelos jornais que o senhor decidira visitar este País, me veio imediatamente a ideia de expressar o desejo de lhe encontrar aqui e estavo certo que teria o consentimento de Vossa Santidade...
Paulo VI:
... positivo...
Atenágoras:
... positiv, porque tenho confiança em Vossa Santidade. Eu lhe vejo, sem adulações, nos Atos dos Apóstolos. Vejo-lhe nas cartas de São Paulo de quem o senhor leva o nome; vejo-lhe aqui, sim, lhe vejo...
Paulo VI:
Falo-lhe como irmão: saiba que eu tenho a mesma confiança no senhor.
A íntegra da conversa, em italiano, pode ser lida aqui.
2.- Para compreender melhor a histórica viagem de Paulo VI à Terra Santa, em janeiro de 1964, veja a bela reportagem, de 38 minutos de duração, em italiano, produzida pela RAI. Para ver o vídeo, clique aqui.
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E o Papa abraçou o Patriarca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU