09 Dezembro 2015
O Papa Francisco desconstruiu a narrativa sobre o seu próprio pontificado. Na visão da imprensa (especialmente a imprensa secular), a eleição de Francisco abriu uma nova era na vida da Igreja. Sob o comando do atual papa, a Igreja teria iniciado a combater a corrupção, encarar os escândalos e viver na pobreza, conforme manda o Evangelho. Até agora apenas umas poucas pessoas, baseando suas conclusões em dados (e não em ideologias), tentaram mostrar que o Papa Francisco estava simplesmente seguindo as linhas gerais das reformas já postas em curso antes de seu pontificado. Agora, o papa eliminou qualquer dúvida.
O comentário é de Andrea Gagliarducci, jornalista, publicado por Monday Vatican, 07-12-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Durante uma coletiva de imprensa no voo da República Centro-Africana para Roma, perguntaram a Francisco sobre o Vatileaks II e o julgamento que está acontecendo nestes últimos dias no Vaticano [julgamento relativo aos vazamentos de informações e documentos sigilosos]. A sua resposta foi além do que ele pensa sobre as pessoas que estão sendo julgadas; nela, ele falou do Conclave de 2005.
Nas palavras do próprio pontífice, “treze dias antes da morte de São João Paulo II, o então Cardeal Ratzinger rezava o Via Crucis enquanto denunciou sobre a ‘sujeira’ na Igreja. Ele foi o primeiro a denunciá-la. Em seguida, após a morte do Papa João Paulo II, durante a missa ‘pro eligendo pontifice’, Ratzinger, que presidia a missa já que era o decano do Colégio Cardinalício, mencionou a mesma coisa novamente. Nós o elegemos por causa de sua abertura a respeito destas coisas”. Desde então, acrescentou Francisco, a corrupção se tornou num tópico dentro dos muros vaticanos.
No fim, foi o proprio Papa Francisco quem fez jus ao trabalho de seu antecessor. O Papa Bento XVI havia estabelecido as bases para uma reforma estrutural que não somente envolvia a Cúria Romana, mas todo o aparato do Vaticano. A reforma financeira é uma das mais mencionadas atualmente: durante a próxima semana, o Vaticano irá apresentar o seu segundo relatório de progresso ao Comitê Moneyval do Concelho da Europa.
No entanto, Bento XVI preparou e levou em frente muitas outras reformas. Por exemplo, ele deu início à reforma das organizações caritativas, emitindo um novo estatuto para a Caritas Internationalis e o motu proprio sobre as organizações de caridade diocesanas.
Bento XVI também deu segmento a um enorme projeto de atualização do Código Penal vaticano, reforma que Francisco finalizou em 13 de julho de 2013. Bento XVI igualmente buscou uma Igreja menos moralista e mundana: podemos encontrar apelos deste tipo em várias de suas alocuções e, em particular, naquelas que ele proferiu durante a viagem à Alemanha em setembro de 2011.
Por que, então, o pontificado de Bento XVI tem sido considerado um mero parêntese na história da Igreja?
Durante os encontros pré-Conclave de 2013, muitos cardeais falaram sobre a necessidade de levar em frente as reformas. Na verdade, os cardeais que pediam por reformas em continuidade com as precedentes foram postos de lado dentro do Conclave. De acordo com algumas fontes – que falaram em termos vagos, posto que há um segredo pontifício cobrindo os encontros pré-Conclave –, alguns cardeais sequer receberam a oportunidade de se manifestar. Uma olhada na programação desses encontros mostra como o Cardeal Angelo Sodano, decano do Colégio Cardinalício, geriu os trabalhos.
Após Bento anunciar a sua renúncia, houve uma pressão para se anunciar a data de abertura do Conclave. Bento foi pressionado a mudar a constituição apostólica Universi Dominici Gregis, que regula o próprio Conclave. Ele emitiu um motu proprio para esclarecer que os encontros pré-Conclave poderiam se iniciar antecipadamente. Dois dias e meio foram tirados dos debates gerais entre os cardeais. A metade de um dia foi dedicada a uma celebração na Basílica de São Pedro, e um outro dia inteiro, no fim das Congregações Gerais, foi cancelado para debates quando o decano agendou uma tarde livre.
Quando Sodano apresentou esta proposta e, em seguida, tomou a decisão, nem todos os cardeais haviam falado ainda. Um dos cardeais, que hoje tem um papel importante nas reformas de Francisco, tornou público esse fato, e outros cardeais enviaram discretamente cartas ao novo papa após o Conclave explicando o que eles teriam dito caso tivessem tido a oportunidade. Eles escreveram sobre problemas de governo e gestão; em geral, sobre a reforma da Cúria.
Mas falar em termos de “reforma da Cúria” não é completamente correto, já que esta terminologia não inclui certos departamentos. Ela não inclui, por exemplo, a Administração do Estado da Cidade do Vaticano, que emite um balanço financeiro em separado. Ela não inclui o departamento de imprensa e, na verdade, cada um dos braços desse departamento trabalha com o seu próprio balanço financeiro.
Esta terminologia sequer inclui o Instituto para as Obras de Religião – IOR (conhecido também como o Banco do Vaticano): apenas recentemente os seus empregados foram contabilizados entre as fileiras de empregados da Cúria Romana. Esta decisão foi tomada pelo Papa Francisco por meio de um rescrito datado de 26 de novembro de 2013, mais tarde publicado nas “Communicationes” do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos. Esse rescrito não foi muito publicizado.
Olhando hoje, com o conhecimento que temos, fica claro que, no intuito de alcançar estes objetivos, o Papa Francisco precisou conduzir rapidamente estas reformas. Foi preciso um choque de realidade, e não uma continuação nos debates, a fim de levar a cabo as reformas cujas bases já haviam sido estabelecidas pelo pontificado anterior.
Não por acaso, quando anunciou a sua renúncia, Bento XVI deixou pistas claras dos seus motivos. Falou que a sua idade avançada não o permitia cumprir o seu ministério petrino. Isto é, precisamos de uma pessoa mais jovem, com uma visão ampla, com muita energia e grande conhecimento das coisas para seguir em frente com este projeto de reforma.
Durante as Congregações Gerais de 2013 que precederam o Conclave, nada aconteceu conforme o esperado. Para entender a atmosfera da época, é importante relermos alguns artigos de jornalistas que mais tarde conduziram entrevistas com o Papa Francisco, analisar de onde vinham as informações concernentes aos debates nos encontros pré-Conclave e observar como estas informações foram usadas a fim de compreender como tudo foi gerido para fazer parecer que a eleição de Bergoglio representava uma ruptura com o pontificado anterior. Esta campanha foi orquestrada no intuito de apoiar e eleger um papa com uma enorme popularidade, mas com pouco conhecimento da Cúria.
Vendo agora como as reformas foram desaceleradas pelas mesmas pessoas que promoviam a “revolução”, podemos concluir que elas tiveram sucesso. O Papa Francisco coletou as sugestões dos encontros pré-Conclave. Logo em seguida, estabeleceu um Conselho de Cardeais para auxiliá-lo e, então, duas Comissões Pontifícias de Referência: a COSEA, para a estrutura econômico-administrativa, e a CRIOR, para o Instituto para as Obras de Religião. A COSEA contratou consultores externos cujas propostas e avaliação não puderam ser plenamente aceitas porque estes profissionais viram o Vaticano como uma empresa na maior parte das vezes, e não como um Estado soberano.
Passo a passo, Francisco se familiarizou com as questões em jogo, na maior parte também graças ao seu instinto político. No fim, ele não acabou com o Instituto para as Obras de Religião e a reforma da Cúria está aparentemente estagnada.
A reforma deveria ter sido funcional, mais do que estrutural. Em lugar de mudar os nomes dos dicastérios, ou transformar dicastérios menores em congregações maiores, os dicastérios curiais precisavam se tornar mais eficientes; a administração geral deles deveria ser racionalizada; e todos os órgãos da gestão centra da Igreja precisavam de uma visão comum.
Para alcançar estes objetivos, tudo deveria ter sido feito com rapidez, via motu proprio. Enquanto o tempo passava, gangues pequenas que resistiam, com sucesso, ao Papa Bento se reorganizaram a fim de manter o seu poder.
Com um rescrito após o outro, estas pequenas gangues tiveram sucesso em recuperar o status quo. A conquista mais recente deles foi uma carta que o papa enviou ao Cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, que institui que até a que reforma curial esteja completa, tudo continuará funcionando como sempre esteve.
Então, neste momento as reformas do Papa Francisco estão estagnadas, enquanto que o papa está aparentemente em paz. Nesse ínterim, o Vaticano mais uma vez está sob ataque, e este defende a sua soberania fazendo a acusações criminais contra os que vazaram documentos confidenciais, como qualquer outro Estado faria no mundo. A importância da soberania da Santa Sé é, geralmente, subvalorizada pelos próprios membros da Cúria que estão levando em frente as reformas.
Depois de quase três anos deste pontificado, o Papa Francisco deveria ter compreendido os termos da guerra contra a Igreja. Esta guerra teve vários fronts. Primeiro, houve os ataques à Igreja como uma força diplomática (em meados da década de 1990 havia uma campanha muito forte para rebaixar a Santa Sé nas Nações Unidas, de Estado Observador a ONG); depois disso, teve um ataque contra a Igreja como uma força moral (os escândalos de pedofilia); e, finalmente, houve ataques contra os meios que a Igreja emprega para dar continuidade à sua missão (as finanças vaticanas, que eram o alvo dos vazamentos contidos em livros publicados em 2009, 2012 e 2015).
Ao mesmo tempo, existe uma outra guerra sendo travada contra a Igreja; é uma guerra mais sutil. Trata-se de uma guerra simbólica. Com um papa que fez de “uma Igreja pobre para os pobres” o seu lema, forças seculares estão tentando enfraquecê-la. O bem comum e a igualdade de todos os homens em dignidade sempre foi o objetivo final da Igreja. A Igreja quer ver todas as pessoas sendo tratadas com igualdade; ela quer eliminar os desequilíbrios que levam à injustiça. Uma Igreja pobre para os pobres não consegue fazer isso. Se veste roupas pobres, então ela se encerra junto deles. Se adota o ponto de vista dos pobres, ela permanece com eles num gueto, enquanto decisões sobre o destino de ambos são tomadas pelos mais poderosos.
Esta é uma luta simbólica que ainda precisa ser entendida. Podemos ver um pouco dela presente na imprensa secular, que amplifica o Papa Francisco quando ele fala sobre uma Igreja pobre e que o emudece quando ele proclama a mensagem da Igreja em claro e bom tom.
Os verdadeiros inimigos do Papa Francisco são provavelmente os seus amigos mais próximos.
Durante a coletiva de imprensa a bordo do voto que trouxe da África, ele reconheceu a importância do pontificado de Bento XVI. Há rumores no Vaticano de que ele, Francisco, ainda pede por recomendações e opiniões ao Papa Emérito.
Bento XVI desceu a montanha para rezar e interceder pela Igreja, e a partir daí ele age como um apoio espiritual aos que o buscam para rezar juntos. Ele está sustentando a Igreja com oração. É este poder moral que permanece dentro do Vaticano, o qual é o verdadeiro conselheiro oculto do Papa Francisco. O fato de que o Papa Emérito vai estar durante a abertura da Porta Santa, no dia 8 de dezembro, na Praça de São Pedro, prova que a sua presença ainda é importante para a Igreja.
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Francisco descontrói a narrativa sobre seu pontificado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU