03 Dezembro 2015
"A série também representa figuras humanas e traços mais literais de sua intervenção no ambiente", escreve Haroldo Lima, pesquisador do laboratório de imagens da subjetividade (Lis-Ufes), em artigo publicado por Outras Palavras, 02-12-2015.
Eis o artigo.
Um peixe preto e branco parecido com o cará de água doce que abundava os rios do sudeste nadava entre as pedras da margem canela verde do Rio Santa Maria da Vitória na tarde do sábado (21.11). Ele parecia não notar nossa presença ali. Continuou por algum tempo seu passeio mesmo quando nos aproximamos para reparar nele e fui ao peso de concreto no leito do rio para uma nova pose fotográfica. Na margem oposta, em Vitória, navios carregavam enormes carretéis de tubos usados para a extração de petróleo em águas profundas. A operação delicada faz parte da paisagem. Tão parte quanto o jet-ski ansioso, o iate em que uma mulher tomava sol com uma tacinha presa pelos dedos e seu acompanhante lançava o molinete na água clara do verão, a mesma água em que pré-adolescentes saltavam sem medo do que pode haver escondido sob o manto esverdeado da maré. Continuamos o papo e saímos da sombra sem nos dar conta se o peixe ainda estava por lá, a aproveitar a tarde de sábado. Não esperávamos encontrá-lo novamente quando entramos no Galpão do Museu Vale para ver o panorama de Vik Muniz, um dos artistas plásticos brasileiros mais conhecidos aqui e no exterior, em exposição desde o dia 16 de outubro.
Instalado na antiga Estação Ferroviária Pedro Nolasco em Vila Velha, o Museu Vale está cravado na baía de Vitória. A faixa estuaria separa a capital capixaba do continente e é composta majoritariamente pelo rio Santa Maria da Vitória e quatro afluentes de pequeno porte. Com o aporte das marés, o local conjuga 18 km² de manguezal (1), um quarto deste bioma ainda existente em território espírito-santense e produz, pelas belezas óbvias, boa parte dos cartões postais da região metropolitana. Foi pela baía que o minério da Companhia Vale do Rio Doce começou a escoar, primeiro, antes da construção do Complexo Portuário de Tubarão no extremo continental de Vitória, quando a Vale ainda era uma empresa estatal.
A baía compõe um nó complexo na paisagem capixaba. A capital foi fundada em suas margens com a dizimação dos Krenak que habitavam a ilha e seus entornos com as “gueras justas” nas colônias portuguesas. O Forte São João, em frente à Pedra do Penedo, é um símbolo posterior desse período. A baía foi testemunha alucinada do desenvolvimento econômico tardio do estado. Por ela escoaram primeiro o café plantado pelas mãos escravizadas e imigrantes (italianas e alemãs) e posteriormente o minério de ferro extraído das minas por muito tempo protegidas pela colônia; atualmente, uma gama diversa de produtos descem pelo estreito canal, como o granito explorado no sul do estado, produtos siderúrgicos, açúcar, equipamentos para prospecção de petróleo e muitos outros. Aterradas no século XIX para alargar a região central da cidade e, no século XX, bairros onde estão concentradas hoje as sedes econômicas e políticas do estado, as margens da baía não fazem jus ao caminho(2) delineado pelas águas num passado ainda recente. É entre as margens da baía que escoa a moeda que leva Vitória a tragicamente ocupar o posto de cidade com a maior concentração de carros importados e de doenças respiratórias por habitante, e o Espírito Santo, o pódio de extermínios negro, feminino e LGBT no Brasil.
Inaugurada no final da década de 1920, a estação ferroviária foi transformada em museu pela Fundação Vale em 1988. O prédio de arquitetura sóbria ostenta uma exposição permanente com a história da mineração e o trajeto percorrido pelos vagões abarrotados até o Espírito Santo. O complexo ainda abriga uma locomotiva de passageiros desativada, cenário para álbuns de casamento e formaturas, como a da turma de Administração de uma tradicional faculdade particular da capital naquele sábado. Um conjunto de vagões reformados cede espaço para o arrivismo capixaba espocar espumantes em brunchs ocasionais. É a parada para o café expresso e para a Heineken gelada a R$8,00 antes ou depois da visita ao galpão de cargas anexo ao prédio da estação, reformado em 2000 para abrigar exposições de grande porte como a de Vik Muniz, nesses dias tenebrosos em que a lama despejada pela Samarco (Vale, BHP) sobre Bento Rodrigues e Paracatu, subdistritos de Mariana, dizimou o rio Doce e desaguou na praia de Regência (3), uma foz paradisíaca, famosa pela fartura de pitus, berçário de tartarugas de couro no município de Linhares, norte do estado, a 115 km de Vitória.
O peixe do sábado é um sobrevivente feroz do impacto humano na baía de Vitória. Sobrevivente pequenino em relação à enxurrada de dejetos industriais e esgoto doméstico despejados nela todos os dias pelas quatro maiores cidades da Região Metropolitana da Grande Vitória: Serra, Vila Velha, Cariacica e a capital, respectivamente. Juntas, elas somam quase metade da população e do PIB e abrigam quase todos os aparelhos culturais do estado. O Museu Vale, encostado no porto e às margens do rio Santa Maria da Vitória, é um desses aparelhos, um dos principais para as artes plásticas no Espírito Santo.
O panorama Vik Muniz está exposto em ordem cronológica pelo Museu Vale e abrange boa parte da produção do artista. No primeiro salão, no início da exposição, o visitante é apresentado à série Imagens de Terra (1998). Na fotografia The trout, after Courbet (4), o artista dispõe sobre uma mesa de luz materiais mineral e vegetal para fazer surgir uma figura a partir da pintura The trout (1873) (5) do pintor romântico francês Gustave Courbet. Segundo Muniz (6), a foto busca expressar através da “luz que brota, emana do chão” a autonomia humana a partir do manuseio da matéria-prima proveniente da terra. Impressionado com as fotografias do telescópio Hubble, uma novidade em 1998, a técnica que possibilitava aqueles registros espaciais reforçava no artista sua “crença no homem”.
A truta fotografada por Vik Muniz me pareceu uma aparição fantasmática a princípio. Se não, deixou ver a vidência assustadora que a arte pode prover. Nela, a truta ainda viva da pintura de Courbet ganha outro contorno e dimensão. O peixe descansa sobre uma margem, ou uma pedra na fotografia, como os peixes vistos nas imagens do desastre ao longo do rio Doce. Ele parece seco, uma carcaça prestes a retornar à terra, envolta pela matéria vegetal e as pequenas pedras recolhidas por margens férteis de rios caudalosos, como as do rio que corta parte de Minas Gerais e atravessa o Espírito Santo para desembocar na praia de Regência. Bancos de areia e pedras onde o peixe faceiro da baía de Vitória deverá repousar, caso a maré de lama chegue ao litoral de Vitória, o que as previsões mais pessimistas sugerem para os próximos dias.
Courbet pintou sua truta após uma temporada de seis meses na prisão por envolvimento na Comuna, em 1871. Liberto, passou uma temporada em sua terra natal despojado de todos os seus bens, antes de se exilar na Suíça. A truta do artista francês parece viva em sua tentativa de representar a realidade experimentada, um realismo que dispensava arabescos além da busca do sentimento verdadeiro – poderia ser, dessa forma, a revolução, a dor do exílio e do encarceramento. As pequenas manchas pretas na escamas do peixe pintado brilham irrigadas. O efeito é ainda mais evidente na barriga de sua truta, tomada pelo ar que resta, cheia de oxigênio por dentro, mesmo com a boca aberta pela tensão do arame que a arrasta para a frigideira. Os olhos da truta de Courbet conservam uma macha iluminada.
O esforço realista do artista se dispõe na fotografia de Muniz, no negativo porvir daquela pintura. Não mais a boca traqueada pelo anzol, mas a boca inerte, congelada pela morte que lhe atravessa a garganta e as guelras, pronta para desaparecer feito os peixes que sumiram do rio Pomba, afluente do Paraíba do Sul, com o derramamento de centenas de milhões de litros de lixívia negra, resíduo da produção de celulose em Cataguases (MG), em março de 2003.
Naquele ano, vi os olhos do meu pai se transformarem na truta do Museu da Vale. Neles não se via mais os peixes com os quais conviveu durante toda a infância e a vida adulta. A enxurrada de lama em Cataguases levou tudo e forçou-o a um aprisionamento semelhante: privado de mergulhos no rio em que aprendeu a nadar sozinho e onde me ensinou as primeiras braçadas três décadas depois. Um homem privado de lances de molinete na água, de tarrafadas sobre as pedras das cachoeiras, de cascudo à mesa. Um homem da água privado de seus bens mais íntimos, preso à margem, feito os pescadores de Regência, confinados em suas pequenas embarcações (7) tentando mensurar o desastre dos últimos dias, à caça dos peixes com os quais os urubus se refestelam.
Parto agora do último salão da mostra, onde os trabalhos mais recentes do artista são apresentados. É a seção onde está exposto ao público o famoso Earthworks (2002-2006) (8). Realizado em parceria com a Vale, quando a empresa ainda ostentava o nome do rio que terminou de dizimar no dia cinco de novembro, o trabalho consiste de desenhos em larga escala realizados em áreas de mineração da empresa em Minas Gerais e no Pará e depois fotografados de um helicóptero e fotos de miniaturas expostas conjuntamente. A obra filia-se à tradição minimalista da década de 1970 e dialoga com a cultura pop. No Museu Vale, 12 das 32 fotografias que compõem a série podem ser vistas. É um trabalho impactante, pois nos ajuda a mensurar a dimensão da intervenção do homem em espaços de extração de minérios e metais. A série também representa figuras humanas e traços mais literais de sua intervenção no ambiente. Pegadas compartilham o espaço expositório com um aviãozinho de papel, uma mão apontada, uma escada para o interior da terra.
Ao espectador desatento ao trabalho das vanguardas artísticas no século XX, a remissão direta vai se fazer nos grandes desenhos com formas new age que infestam plantações ao redor do mundo e são popularmente associados à intervenção extraterrestre no planeta em possíveis tentativas de comunicação com as populações locais ou ainda sinalizações para outras naves espaciais. Quando começarmos a migrar para planetas vizinhos, talvez vejamos do alto de nossos foguetes as fotografias de Earthworks.
Na foto Torneira, uma torneira cravada em uma mina de manganês expele uma gota agigantada de água no terreno aplainado pelas máquinas utilizadas na extração do metal. O objeto desenhado centraliza a fotografia num descampado rodeado pela vegetação remanescente. Na mina Azul, nome em referência direta ao metal que compartilha o tom azulado com o cianureto, a vista se prende na gota hiperbólica. Não mais a torneira desenhada no manganês, mas a gota d’água ausente em Colatina (ES), onde milhares de pessoas fazem fila para receber sua cota diária, onde uma comunidade inteira se digladia (9), onde uma comunidade inteira é impedida de se manifestar (10) por um pouco mais do líquido contado. Na gota exposta no Museu Vale cabe toda a humilhação de um povo.
Em Mão apontando, o dedo indicador apontado em uma mão esquerda fechada pode ser visto em uma região de extração de minério de ferro em Itabira, cidade do poeta Carlos Drummond de Andrade, localizada a 130 km de Mariana. Na fotografia, o dedo indica um caminhão bem pequeno em relação à magnitude apocalíptica da paisagem. A mancha branca parece ter restado ali, antes do voo de Muniz para o registro daquela terra devastada. Mas ele pode estar em movimento, em partida para outro lugar, talvez Mariana, “noventa por cento de ferro nas calçadas” (11), ou Vitória, “oitenta por cento de ferro nas almas” (12) que ousam mergulhar no mar da Praia de Camburi.
De Earthworks, símbolo máximo da exposição de Vik Muniz no Museu Vale, resta um dedo médio, bem grande, estendido para cada um de nós. Ou ainda o mesmo dedo, o pai de todos, tomado de minério de ferro e cravado bem fundo nos nossos rabos. Dedada que provoca uma sensação de cascata a 24 fotogramas por segundo (13), dolorosa, (14) e cúmplice para homens feitos de ferro, obrigados a engolir diariamente as bolas de minério produzidas pela Vale nas oito usinas siderúrgicas encrustadas na praia da capital capixaba. Dispostas ironicamente no museu mantido pela Fundação Vale, as obras de Muniz nos fazem querer sentir tal dedada para nunca mais esquecer o peixe que nadava lépido na baía de Vitória, no sábado, e que hoje descansa morto ao longo de centenas de quilômetros de rio Doce e avança sobre o extenso oceano que um dia convidou Ismael, mítico personagem de Herman Melville, a afugentar a melancolia e normalizar a circulação.
NOTAS:
(1) Ver dado em: http://www.scielo.br/pdf/qn/v27n3/20162.pdf
(2) A obra Caminho das águas (2010), do artista plástico Piatan Lube, retoma os contornos originais da baía de Vitória. O trabalho foi posteriormente realizado em Florianópolis. Ver aqui: http://www.dobbra.com/terreno.baldio/piatanlube/piatan_lube.html
(3) Últimos dias em regência, vídeo produzido pelo Grupo de estudos e pesquisa em populações pesqueiras e desenvolvimento no ES (GEPPEDES) e Grupo de estudos em cultural audiovisual e tecnologia (CAT): https://www.youtube.com/watch?v=Yd564T2M9V8&feature=youtu.be
(4) Ver imagem aqui: http://media.mutualart.com/Images/2012_09/11/20/200418370/3f3460de-f393-4318-84e8-6f8dda056af9.Jpeg
(5)Ver imagem aqui: http://www.wga.hu/art/c/courbet/1/courb119.jpg
(6) MUNIZ, Vick. Vik Muniz. Vila Velha, ES: Museu Vale, 2015.
(7) Registro dos pescadores de Regência na foz do rio doce: https://www.youtube.com/watch?v=b01apsICFT0
(8)https://www.google.com.br/search?q=earthworks+vik+muniz&client=ubuntu&hs=3oJ&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ved=0ahUKEwjK-s7pzqnJAhUDJ5AKHXhcAu8QsAQIHA&biw=1445&bih=758&dpr=0.9#q=earthworks+vik+muniz&tbm=isch&tbas=0
(9) Confusão na distriuição de água em Colatina: https://www.youtube.com/watch?v=-2yQf24TVZ8
(10)Manifestação no Bairro Operário em Colatina no dia 23/11: https://www.facebook.com/SddsColatina/videos/748902035241230/
(11) Carlos Drummond de Andrade – Confidência do Itabirano.
(12) Idem
(13) Felizes Juntos, de Wong Kar Way: https://www.youtube.com/watch?v=09i5JpuZf5U
(14) Tudo dói (Caetano Veloso). Recanto ao vivo, por Gal Costa: https://www.youtube.com/watch?v=m8ViY4i_b8w
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No Museu da Vale, imagens de uma terra devastada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU