Por: André | 02 Dezembro 2015
“Obrigado, Papa Francisco, por teres vindo. No começo, não acreditávamos. Como um Papa vem pisar a terra vermelha deste país ensanguentado pelo sangue também vermelho de tanta gente pobre? No entanto, querido Papa Francisco, infringiste descaradamente as recomendações dos mais cautelosos, não quiseste usar colete à prova de balas e te puseste a nos falar de paz e reconciliação.”
As reflexões são de Juan José Aguirre, bispo da diocese de Bangassou, na República Centro-Africana, e publicada por Religión Digital, 30-11-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Obrigado, Papa Francisco, por teres vindo. No começo, não acreditávamos. Como um Papa vem pisar a terra vermelha deste país ensanguentado pelo sangue também vermelho de tanta gente pobre? No entanto, querido Papa Francisco, infringiste descaradamente as recomendações dos mais cautelosos, não quiseste usar colete à prova de balas e te puseste a nos falar de paz e reconciliação.
Disseste que com a paz tudo se ganha, ao passo que com a guerra tudo se perde. Coisas simples, mas que precisávamos muito ouvir. Que a violência nunca conduz à paz; pelo contrário, gera sempre mais violência até criar um redemoinho de violência que engole inocentes e pecadores.
Recém chegado, envolvido por uma multidão entregue e 2.800 escoteiros que punham ordem, passaste pelo mesmo lugar na Avenida Combatant em que, há pouco menos de um mês, quatro representantes de um grupo radical que vinham a Bangui para negociar foram linchados a paus e facões.
Tocaste as crianças refugiadas que perderam casa, família, escola, crianças nocauteadas pela violência, crianças feridas por balas, crianças de casas queimadas que fitam o horizonte sem ver mais nada porque roubaram sua inocência, de tantas maldades de que foram testemunhas.
Filhos do medo, filhos da fome, crianças muçulmanas e não muçulmanas em dois campos de refugiados diferentes, sem fazer diferenças, crianças de olhar perdido a quem saquearam a alma em Bangui. Andaste no meio deles, com os sapatos pretos que trouxeste da Argentina... Obrigado porque te colocaste em seu lugar e denunciaste sem paliativos que muitas daquelas crianças e jovens foram utilizados por criminosos como carne de canhão e escravas sexuais.
Entraste na mesquita de Koudoukou sem medo das balas! O imã Omar Layama Kobina não estava ali porque é jurado de morte inclusive por muitos dos seus, mas a pintaram e enfeitaram apenas para ti, Papa Francisco, porque diziam que era uma grande honra que pisasses seus tapetes com teus pés descalços e lhes falasses de paz. Cinco minutos quiseste rezar no local em que costuma pregar o imã, sem dizer nada, em silencioso recolhimento.
Somente depois os saudaste com um grande sorriso. Não sei se os violentos te escutarão, mas sei que aqueles que te escutaram ficaram sobressaltados. O mesmo aconteceu quando falaste na escola de Teologia protestante. E também quando, rompendo o protocolo (horror para a tua gendarmeria, a Minustah e para todo o seu séquito), te aproximaste da escola muçulmana para ouvir os lamentos de mulheres que choram com lágrimas de dor, certamente da mesma cor que as lágrimas das mães não muçulmanas que viste no dia anterior.
Um Papa em Bangui sem colete à prova de balas quando dois dias antes os Kalasnikof não deixaram de troar durante toda a tarde, ali mesmo, a dois tiros de pedra da Nunciatura, pela Avenida Boganda abaixo, no P.K. 5, onde até para respirar colocas a vida em risco.
Mandaste lembranças (os bispos disseram isso a você durante o almoço contigo, no domingo, na Nunciatura) para os combonianos da Paróquia de Fátima, que não puderam te ver porque não podiam abandonar os 500 refugiados sentenciados à morte caso saíssem da cerca da missão. Disseste que terias gostado de ir a Fátima, insuflar ânimo ali! Por motivos de segurança, não foi possível.
Obrigado por me recordar durante o almoço com os bispos (eu estava sentado na frente de sua Santidade, comendo peixes do Rio Oubangui com vagens verdes de feijão), que Santo Ambrósio dizia que o nome de Deus é misericórdia e que onde há misericórdia, ali está Deus.
Estiveste “iluminado”, Papa Francisco, quando sugeriste nas entrelinhas que aqueles que movem os fios para que nada funcione na África Central, curiosamente, não vivem na África Central, e que ninguém tem que fugir da África Central por isso, porque tiveste a coragem de dizer tudo sem papas na língua, falaste com ousadia aos jovens da África Central, confessaste a alguns e andaste entre os pobres como quando te chamavam de Padre Jorge nas periferias de Buenos Aires.
Obrigado porque nos deste coragem e esperança, porque não te calaste, porque olhaste no rosto dos pobres, porque abriste a Porta Santa da Misericórdia ensinando-nos um caminho prioritário, diferente daquele do resto da Igreja, para ir mais rápido para Suas Mãos, experimentar seu amor, e nos pediste que o compartilhássemos depois, em forma de gestos de reconciliação.
Ensinaste-nos um caminho, mostraste-nos como sair do buraco, do labirinto no qual nos encontramos... Quando, depois da foto ritual na Nunciatura, pegaste no meu braço para subir as escadas, senti tua força, não tanto física, mas sobretudo humana e espiritual. Brincamos contigo durante o almoço com os bispos quando te ensinamos duas palavras em sango: ndoyé e siriri. Repetiste-as aos jovens da vigília de oração três horas depois: “Empapai vossa vida de amor e de paz”.
A multidão do estádio de 20 mil lugares te comoveu; era possível ver isso no seu rosto, porque gritavam de amor e respeito quando lhes disseste para “passar para a outra margem”, ou seja, virar a página e começar de novo na sociedade centro-africana. Quando 25 almas gritaram em uníssono o lema popular cristão, sorriste de orelha a orelha. Quando me deste um presente (uma custódia), me disseste em espanhol para que rezasse por ti e me piscaste um olho...
Depois, querido Papa Francisco, entraste no avião, aproximadamente às 12h30, o segundo dia da tua visita a Bangui, sem sequer ainda ter se alimentado, com teu séquito de monsenhores e jornalistas, e ficamos olhando para ti e para nós, órfãos de ti, como embasbacados despertando de um sonho, ouvindo em surdina o barulho do Boeing da Alitalia que te trouxe até nós e que te levava de volta para Roma, porque enquanto estiveste conosco, as armas se calaram alguns horas, em respeito a ti.
Oxalá, pudesses ter ficado para sempre! Partiste de volta para os teus afazeres em Roma e no mundo, aos teus Vatileaks, a te enfronhar nos assuntos de corrupção e para a tua Santa Marta querida. E nós, sem paz nem pão, para a nossa luta por estarmos junto aos pobres para dizer-lhes que amanhã será melhor, que depois da tempestade vem a bonança.
Minha gente de Bangassou recolheu, em pequenos recipientes, terra onde pisaste! Dizem que está abençoada por tua pisada. Levaram-na para Bangassou como prova do que viveram em Bangui, da imensa esperança que semeaste em seus corações, porque por uma vez em suas vidas demônios pretos armados de violência se transmutaram em um anjo branco vestido de Papa Francisco. Que tuas palavras de perdão e de paz, de tanto repeti-las, entrem na nossa pele, no ventre e no coração.
E obrigado a Deus Pai que permitiu que ninguém jogasse água na nossa festa, que ninguém estragasse o nosso encontro, que nenhum descerebrado fizesse mal a ninguém. E obrigado, sobretudo, a Deus Pai que nos quis presentear com dois dias de sonho, tingidos de paz, porque mesmo aqueles dois jovens que fizeram um sequestro em Fátima ontem pela manhã para degolá-los (Religión Digital publicou a notícia, mas cinco horas depois foi desmentida pelos próprios padres de Fátima e as famílias dos dois jovens), devolveram-nos sãos e salvos (por milagre de quem?) no final da tarde, depois de sentirem a morte roçando-lhes as gargantas.
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“Obrigado, Papa Francisco, por teres vindo”. Artigo de Juan J. Aguirre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU