26 Outubro 2015
Milton Cruz discute que cidade queremos a partir do projeto de revitalização do Cais. Na visão dele, com ou sem muro, a vista do Guaíba pode se tornar privilégio de poucos
Quem vive em Porto Alegre ou mesmo conhece um pouco da cidade já deve ter ouvido: “a cidade está de costas para o Guaíba”. O que baseia a sentença é o fato de o Cais Mauá, na orla do Rio Guaíba, estar fechado para acesso público e pela existência de um muro que está entre o espaço e a avenida. Daí, nasce o interesse de revitalizar a área para que seja mais bem aproveitada. Mas será que isso garante que a “cidade vire de frente para o Guaíba”? E derrubando o muro, a vista se tornará pública para quem passa na avenida? As questões fazem parte da problematização trazida por Milton Cruz, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e do Observatório das Metrópoles, na sua conferência no IHU Ideias do último dia 22-10.
Analisando o Plano de Impacto Ambiental, ele observa as intenções de uso do espaço pelo Cais Mauá (grupo de empresas privadas que investirá na obra e financiará o empreendimento). “A intenção é ver que projeto de cidade se quer. Precisamos pensar em dar qualidade de vida para as pessoas, numa cidade pensada para o futuro”, destaca.
Milton Cruz: "projeto tem visão fordista e industrial" |
Cruz ainda destaca que a ideia de revitalização do Mauá não dialoga com outras diretrizes já existentes na cidade. É o caso, por exemplo, do plano cicloviário e de arborização que Porto Alegre conta e que não são desconsiderados. São dispositivos legais para além do Plano Diretor da cidade que devem se entrelaçar ao projeto, tentando dar um aspecto mais integrado ao pensamento que já se tem sobre a cidade que se quer no futuro. “Além de não se utilizar desse instrumento legal já existente, o projeto parece não abrir de fato a discussão popular sobre o uso. Podemos estar perdendo um momento histórico da cidade para discutir um projeto de futuro”, alerta o pesquisador.
Vida de consumo
Quando se quer “vender” o projeto de recuperação do cais Mauá não se fala só em revitalização daquele espaço, mas em revitalização do centro histórico. “É como se o centro estivesse morto, sem vida, mas não é isso. Há comércio de rua e muitas atividades locais. O projeto parece ignorar isso e, mais uma vez, não leva em conta documentos que se tem sobre o Centro Histórico, como os estudos de utilização socioeconômica”, enfatiza Cruz. Na verdade, o que o projeto de revitalização enfatiza é a construção de um shopping center. Quer de imediato construir torres e não se debruça sobre pensar mais intensamente em reaproveitar os armazéns existentes. Assim, baseia a utilização da área como espaço para o trabalho e consumo, afastando-se de outras formas de lazer, como caminhadas, práticas esportivas, ou simplesmente passear na margem do Rio, mudando a geografia do lugar.
E o pesquisador ainda aponta que, ao conceber um centro comercial, o projeto não dialoga com outros pontos do Centro Histórico, como a Praça da Alfândega, que concentra também um circuito de museus e prédios históricos. “A Feira do Livro já provou que a ligação entre as duas áreas é muito importante, e o projeto de revitalização não parece levar isso em conta. Além disso, há uma série de atividades, como caminhadas, passeios guiados, linha de ônibus turística, que já ocorrem no centro e não são considerados”, aponta Cruz, ao lembrar que o Centro Histórico não está morto e que é preciso rever esse conceito de “revitalização”.
Com muro ou sem muro?
Foto atual do Cais Mauá Foto:commons.wikimedia.org |
Cruz usa esse episódio para destacar como ainda se sabe pouco a respeito do impacto das enchentes no Cais. E, segundo ele, surpreendentemente, o plano de revitalização não leva em conta esse cenário. “Não há, por exemplo, sequer um plano de emergência para essas situações de cheias, como existem em aeroportos em casos de acidentes.” Assim, o professor provoca a pensar num modelo de revitalização que vá para além da discussão de eliminar ou não barreiras físicas. Afinal, pode-se derrubar o muro e poucas pessoas conseguirem apreciar a silhueta do horizonte sobre o rio. “Essa obra mexe no horizonte da cidade e o medo é de que poucos, só aqueles que têm acesso ao consumo e ao capital, tenham como desfrutar desse espaço. Fala-se em sinergia do projeto, mas o vejo com uma abordagem fordista e industrial, sem participação popular”, enfatiza o pesquisador ao provocar as pessoas a se integrarem mais a esse debate.
Por João Vitor Santos
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O Cais Mauá e as barreiras entre o Guaíba e a cidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU