02 Março 2011
Na última sexta-feira, 25 de fevereiro, ciclistas foram atropelados em Porto Alegre ao participarem de uma manifestação a favor do uso de bicicletas no tráfego urbano. Ricardo Neis, que dirigia um Golf preto, atingiu os manifestantes que circulavam na rua José do Patrocínio. “Fiquei em estado de choque, vendo todas aquelas pessoas no chão, feridas. Fico desapontado, pois a vida ficou em último lugar”, declarou Paulo Alves, presidente da Associação Ciclística da Zona Sul (ACZS) e diretor da Federação Gaúcha de Ciclismo, à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail.
O fato reabriu a discussão sobre a violência no trânsito, a mobilidade urbana, a relação de respeito entre ciclistas e motoristas de automóveis, além de suscitar a conscientização ecológica do uso da bicicleta como meio de transporte.
Olavo Ludwig Jr., integrante do Massa Crítica, movimento responsável pela organização da manifestação, há quatro anos utiliza a bicicleta como principal meio de transporte e, diariamente, percorre cerca de 20 quilômetros. Ele não participou do último encontro, mas disse que a atitude do motorista representa “a insanidade social que estamos vivendo. As pessoas se sentem como se estivessem de volta à selva, onde vale a lei do mais forte”. Em entrevista à IHU On-Line, por telefone, ele fala da falta de conscientização da população e menciona que, no Brasil, o automóvel ainda é sinônimo de status social. “Quanto mais dinheiro a pessoa ganha, maior é o carro. (...) Infelizmente, no imaginário coletivo ainda está presente a ideia de que quem anda de bicicleta é pobre, operário e não tem dinheiro para comprar um carro e, por isso, teria menos valor de quem está de carro.”
Olavo Ludwig Jr. é formado em Física pela Universidade Federal do Rio Grade do Sul (UFRGS) e trabalha no controle de qualidade da água, no Departamento de Água e Esgoto (Demae).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a origem do movimento Massa Crítica? Que reflexões vocês propõem para a sociedade a partir do encontro de ciclistas?
Olavo Ludwig Jr.– O movimento surgiu em São Francisco, nos EUA, em 1992, quando oito ciclistas se reuniram e foram pedalar pelas ruas da cidade. A cada mês, mais pessoas começaram a aderir ao movimento e hoje há adeptos no mundo todo, inclusive em Budapeste, onde existe o maior número de ciclistas: 50 mil.
A ideia do Massa Crítica é celebrar o uso da bicicleta. Normalmente as pessoas já a utilizam como meio de transporte e, em um dia especifico do mês, se reúnem para mostrar à sociedade que existe vida além do automóvel. Dizem que o carro é uma necessidade, mas queremos mostrar que essa necessidade é superestimada e existem alternativas a esse meio de transporte.
IHU On-Line – Como e com que objetivo surgiu a Associação Ciclística da Zona Sul (ACZS)?
Paulo Alves – A ACZS surgiu em 1994, na zona sul de Porto Alegre, nos bairros Tristeza e Ipanema, tendo o objetivo principal de preservar os morros da zona sul. Com o passar dos anos, começamos a incentivar o uso da bike como transporte. Hoje estamos mais do que nunca empenhados com a educação de trânsito voltada para ciclistas e motoristas.
IHU On-Line – Você estava presente no dia do atropelamento de vários ciclistas, em Porto Alegre? Pode nos contar como tudo aconteceu?
Paulo Alves – Sim. Vi quando o carro tentou passar pela primeira vez, onde foi impedido pela massa. Logo após, teve discussão, mas não houve violência contra o veículo. Duas quadras para frente, ele acelerou, foi quando ouvi um barulho diferente que me chamou a atenção. Não tive reação e o automóvel passou a menos de um metro da minha pessoa.
IHU On-Line – Qual sua sensação diante do atropelamento?
Paulo Alves – Fiquei em estado de choque, vendo todas aquelas pessoas no chão, feridas. Fico
desapontado, pois a vida foi colocada em último lugar.
IHU On-Line – Você não esteve presente na última manifestação do Massa Crítica, em Porto Alegre, mas o que a atitude do motorista representa e significa?
Olavo Ludwig Jr. – Essa atitude representa a insanidade social que estamos vivendo. As pessoas se sentem como se estivessem de volta à selva, onde vale a lei do mais forte. A vida cotidiana agitada está gerando muito estresse e o mais forte pode fazer valer a sua vontade.
IHU On-Line – Por que a cultura do automóvel é tão forte no Brasil comparando com outros países do mundo, inclusive a China, que tem uma superpopulação?
Olavo Ludwig Jr. – Na China, as pessoas utilizavam mais a bicicleta por falta de opção do que por consciência. Com a melhora da economia, os chineses estão deixando as bicicletas de lado e aderindo ao automóvel. Já na Europa, o transporte por bicicleta representa mais de 50% do deslocamento diário.
No Brasil, existe um incentivo ao uso do automóvel: a propaganda e a indústria automotiva são muito fortes. O próprio presidente declarou que gostaria de ver cada brasileiro com um carro e o governo, inclusive, reduziu o IPI para facilitar a compra de carros, recentemente.
Em Seul, na Coreia do Sul, o congestionamento no trânsito era enorme até que um engenheiro resolveu propor a destruição da estrada e a revitalização do rio que passava embaixo. Essa seria uma iniciativa interessante para se fazer no Arroio Dilúvio, em Porto Alegre, com uma infraestrutura dirigida às pessoas e não ao automóvel.
Na minha avaliação, a iniciativa de Seul mostrou que o trânsito se comporta como um gás e não como um líquido, fazendo uma analogia física. Quanto mais vias se abrem para o líquido, mais ele flui. No trânsito, ocorre o contrário: quanto mais vias se disponibilizam para o transporte de automóveis, mais aumenta o tráfego. Além do mais, ao construir novas estradas, túneis e aumentar as vias das estradas, os governos estão incentivando o uso do automóvel. Se diminuíssem o espaço para carros, diminuiria o trânsito. Foi isso que aconteceu em Seul: as pessoas passaram a utilizar mais transporte público e bicicleta para se deslocarem.
IHU On-Line – Como vê a relação carro/ciclista no trânsito das cidades?
Olavo Ludwig Jr. – A relação é tensa porque o ciclista, para poder andar na rua, precisa ter muita atenção, pois o motorista de automóvel é despreparado. É muito fácil conseguir habilitação para dirigir e vejo muitos motoristas dirigindo como se estivessem sentados no sofá da sala assistindo televisão.
Ciclistas e motoristas devem ter consciência no trânsito. Eles têm de entender que a bicicleta também é um meio de transporte. O básico que o motorista precisa saber é que ele deve diminuir a velocidade ao passar por uma bicicleta e manter uma distância de um metro e meio: isso é garantido por lei. A maioria dos motoristas respeita os ciclistas, mas cerca de 5% não respeitam, o que representa milhares de carros.
Paulo Alves – O gaúcho é grosso por natureza, mas não podemos ser ignorantes e egoístas. Entretanto, é assim que muitos se comportam no trânsito; não há respeito mútuo, pois o ciclista também tem que fazer a sua parte e vice-versa.
IHU On-Line – Hoje o cotidiano é mais agitado se comparado com outros anos. Como conciliar essa vida acelerada, marcada pela mobilidade tecnológica com menos carros?
Olavo Ludwig Jr. – Vejo nessa relação uma contradição. A tecnologia avança e a nossa vida fica ainda mais agitada. Deveria ser ao contrário: a tecnologia deveria nos proporcionar tempo para realizar atividades que realmente são importantes na vida, em vez de trabalhar exaustivamente e assumir ainda mais compromissos.
De qualquer modo, o carro não é a solução para o deslocamento. Se cada pessoa tiver um carro, o trânsito ficará ainda mais lento. A solução desse problema é o investimento em transporte público eficiente.
IHU On-Line – Em que consistiria uma política pública adequada para o setor de transportes ecológicos?
Paulo Alves – Porto Alegre já tem um plano diretor cicloviário, o qual apresenta uma série de ações para incentivar os transportes não poluentes, como instalação de bicicletários, educação de trânsito específica e campanhas de saúde.
IHU On-Line – Qual a viabilidade de utilizar a bicicleta como meio de transporte, considerando a atual engenharia das cidades?
Paulo Alves – A bicicleta é um veículo, e como tal tem o direito de compartilhar a pista com os veículos automotores. Ocorre que as vias estão cada vez mais estreitas, pois onde antes era uma avenida com duas faixas, hoje é uma avenida com três faixas. Essas mudanças não deixam espaço para outro modal.
IHU On-Line – É possível pensar uma cidade sem carros?
Paulo Alves – Acredito que o carro é uma ferramenta de grande utilidade, mas deve ser usado com propósitos sociais – dar carona seria uma delas – ou até mesmo deixar o carro em casa um ou mais dias da semana. Só assim podemos ter uma cidade com menos carros.
IHU On-Line – Qual é a adesão do público gaúcho ao movimento Massa Crítica? Como vê a conscientização da população em relação à ecologia e sustentabilidade?
Olavo Ludwig Jr. – As pessoas estão apoiando o movimento e ele está crescendo. No início dos anos 2000, vários ciclistas participavam do bicicletada, um encontro de pessoas que gostavam de passear de bicicleta. Em 2008, aderimos ao movimento Massa Crítica e passamos a nos reunir na última sexta-feira do mês, no final do dia. Primeiramente, participavam oito integrantes e, a partir de 2010, novas pessoas começaram a participar. Nos últimos encontros, reunimos cerca de 120, 150 pessoas. A cada dia aumenta mais essa consciência ecológica. O Massa Crítica é um movimento de paz, no qual as pessoas querem reivindicar segurança e por isso andam em grupo.
A maioria da população utiliza o transporte público ou a bicicleta, por isso, cabe ao governo incentivar o uso desses transportes alternativos. Quando tiver um transporte público adequado, de qualidade, as pessoas se darão conta de que é melhor se locomover com transporte público e que é mais agradável andar de bicicleta.
Paulo Alves – Em pesquisa realizada por nossa associação, foi relatado que 85% das pessoas que possuem carro também possuem ou já tiveram bicicleta. A bicicleta aproxima as pessoas, não agride. Acho que Porto Alegre deve ser um exemplo em cidadania, pois muita gente acredita que a bicicleta é o transporte do futuro.
IHU On-Line – Você utiliza a bicicleta inclusive para trabalhar?
Olavo Ludwig Jr. – Desde 2007 utilizo a bicicleta como principal meio de transporte. Moro no bairro IAPI e trabalho no Menino Deus. Percorro dez quilômetros para ir e dez para voltar. Inclusive quando chove, vou de bicicleta. Todas as crianças adoram tomar banho de chuva; nós adultos é que ficamos nojentos com o passar do tempo.
Tenho sorte de trabalhar em uma instituição que oferece vestiário, onde posso tomar um banho e trocar de roupa antes de trabalhar. Com deslocamentos menores, as pessoas não transpiram tanto e nem precisariam trocar de roupa para trabalhar. Penso que, quando as pessoas têm vontade de utilizar um meio de transporte ecológico como a bicicleta, elas não procuram justificativas para continuar se deslocando de carro.
No imaginário coletivo ainda está presente a ideia de que quem anda de bicicleta é pobre, operário e não tem dinheiro para comprar um carro. Muitos também acham que, porque as pessoas não têm dinheiro para comprar um automóvel, ela não tem o mesmo valor do que aquelas que têm dinheiro para comprar um carro. Infelizmente, o automóvel ainda representa status social. Quanto mais dinheiro a pessoa ganha, maior é o carro. As pessoas se utilizam do automóvel para mostrar que são bem sucedidas. Felizmente essa ideia está mudando e pessoas ricas também estão utilizando a bicicleta por opção. Aos poucos vamos mudar essa ideia de quem é rico usa carro e quem é pobre usa bicicleta.
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"Aos poucos vamos mudar essa ideia de quem é rico usa carro e quem é pobre usa bicicleta". Entrevista especial com Olavo Ludwig Jr. e Paulo Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU