21 Fevereiro 2015
“A sandália que tem a cara e o espírito do brasileiro convidou aqueles que possuem o Brasil no DNA para trazer boas energias para você”. Com essa frase, a marca mais famosa de chinelos do país abre um vídeo promocional em que apresenta a coleção Tribos, que leva ilustrações da etnia Yawalapiti (ou Iaualapitis, outra grafia que também pode ser encontrada), um dos povos do Alto do Xingu, que vivem no Mato Grosso.
Mas o que era para ser apenas mais uma ação promocional das Havaianas acabou abrindo a discussão sobre os direitos autorais dos indígenas, já que os grafismos são considerados uma propriedade coletiva e não um desenho de apenas um autor. Mas afinal, quem tem o poder de autorizar a reprodução de um desenho: o autor, uma etnia ou um grupo de tribo?
A reportagem é de Marina Novaes, publicada pelo jornal El País, 20-02-2015.
Em julho de 2014, a agência de publicidade Almap BBDO, que atende o grupo Alpargatas (empresa proprietária da marca cinquentenária de sandálias), obteve o “direito de uso e reprodução de grafismos coletivos do povo Yawalapiti, (…) para a produção de 10.000 kits promocionais de sandálias limitadas do projeto Havaianas Tribos, a serem distribuídos gratuitamente em campanha e ação específica”. Acontece que, a pessoa que assina o contrato, embora pertença à etnia, não é o chefe do grupo. E, mesmo se fosse, especialistas ouvidos pelo EL PAÍS apontam que, em casos como esse, o ideal é que os caciques dos demais povos do Alto do Xingu (são 15, ao todo, incluindo os Yawalapitis) fossem consultados para autorizar a reprodução dos desenhos e, assim, evitar que qualquer um deles se sentisse lesado por identificar elementos comuns aos grafismos das demais etnias da região.
“O interessado (em reproduzir qualquer elemento artístico indígena) tem que pedir a autorização ao chefe da etnia. O direito autoral indígena é um direito coletivo da própria etnia. Nos parece que, neste caso, o grafismo seria de várias etnias do Parque Indígena do Xingu. Ou seja, é um direitocoletivo-coletivo. Em casos assim (que envolvem elementos comuns a mais de uma etnia), eles teriam de pedir a autorização do chefe de todas as etnias envolvidas naquela criação. Só assim seria um ato jurídico perfeito”, explica Andreia de Andrade Gomes, especialista em propriedade intelectual da TozziniFreire Advogados, do Rio de Janeiro, que não atende nenhuma das partes envolvidas.
Em dezembro de 2014, quando as primeiras fotos dos chinelos foram divulgadas nas redes sociais, houve quem acusasse a empresa de não ter obtido autorização dos povos indígenas para reproduzir os desenhos que ilustram as sandálias. Foi o caso de Ysani Kalapalo, ativista indígena das etnias Kalapalo e Aweti, que levantou a questão sobre a suposta violação dos direitos autorais dos povos do Xingu em seu perfil no Facebook. “Simplesmente está usando design dos povos indígenas do Alto Xingu, sem fazer consulta de direitos autorais, aos donos e desenvolvedores desse grafismo”. A responder à críticas como essa nas redes sociais, a Alpargatas informou que obteve o direito de reproduzir as imagens. E, de fato, o autor dos desenhos autorizou a divulgação do material.
O índio Anuiá Yawalapiti, de 44 anos, da etnia que leva o seu nome, assina o contrato como representante do povo. Ele, que foi abordado em julho do ano passado durante o 13º Encontro das Culturas Tradicionais, que acontece anualmente na Vila de São Jorge (em Goiás), recebeu 7.500 reais em troca da cessão dos direitos de reprodução das ilustrações, após ter o seu desenho escolhido entre ilustrações feitas por índios de outros povos no encontro. Em entrevista por telefone ao EL PAÍS, Anuiá contou que aceitou o acordo porque as sandálias não seriam comercializadas – já que a coleção Tribos faz parte apenas de um kit promocional distribuído entre clientes da empresa e outras personalidades, como celebridades e jornalistas. Ele disse ainda que topou participar do projeto para abrir um canal de diálogo com a empresa para “parcerias futuras” e, sobretudo, porque o desenho era de sua autoria. Ele não esperava, porém, a repercussão nas redes.
“O trabalho ficou muito bonito, mas algumas pessoas não entenderam. Os índios já foram muito explorados, até hoje são. Então tem gente que desconfia, que não entende direito. Mas eu expliquei (aos chefes das demais etnias do Xingu) o que foi combinado e eles entenderam. Eu não sabia que precisava pedir autorização porque o desenho era meu, a pintura era minha”, disse Anuiá, que chegou a ser procurado por representantes de oito etnias para se explicar.
O advogado Marco Vendramini, que representa Anuiá e os povos Yawalapiti, avalia a possibilidade de tomar “alguma medida jurídica”. Segundo Vendramini, que é especializado em direito internacional, Anuiá “não sabia o que estava assinando” e deveria ter sido assessorado por um advogado que representava os direitos dos Yawalapiti antes de assinar o contrato. O advogado afirmou, contudo, que a grande preocupação da etnia é não fechar as portas com as empresas, que podem ser parceiras dos povos do Xingu em projetos futuros e que, por isso, pretende procurar as Havaianas e a Almap BBDO para estudar um novo acordo antes de tomar qualquer decisão. Na avaliação do advogado, o contrato é “anulável”. “Independente das cláusulas, a forma como foi feito o contrato não foi correta. (…) Na tribo, eles decidem em conjunto”, disse Vendramini.
Segundo os especialistas consultados pela reportagem, imbróglios envolvendo os direitos da propriedade intelectual dos povos indígenas são bastante comuns no Brasil mas, na maioria das vezes, não chegam a ser tema de reflexão. Uma das questões que costumam causar polêmica, é como distinguir o que é cópia ou reprodução do que é uma inspiração ou referência, por exemplo.
“De qualquer forma, é importante que quem busca essa autorização se certifique, e esse é o nosso aconselhamento sempre, que está obtendo a autorização da pessoa que tem legitimidade para dar essa autorização”, afirmou Andreia, que esclareceu que a Fundação Nacional do Índio (Funai) não tem obrigação de acompanhar esses processos.
Outro lado
Procurada pelo EL PAÍS, a Alpargatas informou, em nota, que “as artes das sandálias do projeto Havaianas Tribos, que não foram destinadas à comercialização (venda), foram devidamente autorizadas através do termo de cessão de uso e reprodução de direitos autorais sobre grafismos indígenas, dentro da Lei de Direitos Autorais e da Portaria 177 da Funai, conforme contrato assinado pelo representante legal do povo Yawalapiti”.
Já a agência Almap BBDO, não quis comentar o caso, e afirmou apenas que “ratifica as informações enviadas pela empresa”.
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As sandálias da polêmica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU