14 Agosto 2015
Destacados teólogos e bispos de todo o continente africano propõem debates mais amplos na Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos em outubro deste ano sobre a família, dizendo que a Assembleia Extraordinária do ano passado se centrou demais em assuntos que dizem respeito aos europeus e norte-americanos.
A reportagem é de Joshua J. McElwee, publicada por National Catholic Reporter, 11-08-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Os debates do ano passado – que atraíram atenção da imprensa mundial quanto ao posicionamento dos prelados concernente a questões polêmicas como o divórcio e um segundo casamento, e as uniões homoafetivas entre os fiéis – deixaram de fora uma infinidade de assuntos prementes que desafiam milhões de pessoas que vivem na África, sustentaram prelados e acadêmicos em um evento inovador realizado em Nairóbi entre os dias 16 e 18 de julho.
Em um reflexo do que foi o evento, uma teóloga expressou um apelo pungente: a Igreja global, disse, deve se reorientar inteiramente no sentido de falar pelos africanos que estão sofrendo de muitas maneiras.
“Perdemos a nossa capacidade de indignação? Estamos observando atentamente o que tem ocorrido a nossa volta?”, declarou Nontando Hadebe aos demais participantes no encontro, referindo-se especificamente ao sequestro de cerca de 300 meninas feito pelo grupo terrorista Boko Haram na Nigéria em 2014.
“Precisa haver uma instituição que diga que não – não mais!”, continuou ela, convidando a Igreja a se reorientar no sentido de vir a ser a “guardiã, a sustentadora, a protetora” das vidas africanas e negras.
“Precisamos de uma instituição que se coloque contrariamente a esta situação e que sustente esta contrariedade como um ensinamento profético”, disse a sul-africana, teóloga em ascensão que tem focado o seu trabalho sobre as lutas das mulheres do continente.
Hadebe, professora na St. Augustine College, de Joanesburgo, era um dos 36 dos mais destacados especialistas em Ética católicos da África que se encontraram para mais esta rodada de debates, a última de uma série de três anos que vem acontecendo na instituição jesuíta Hekima University College desde 2013.
Organizado como um “Colóquio Teológico sobre Igreja, Religião e Sociedade na África”, o evento deste ano viu acadêmicos e alguns prelados debaterem uma ampla gama de assuntos, como a destruição ecológica, o fundamentalismo religioso e a forma como Papa Francisco está impactando nas estruturas da Igreja na África.
Grande parte dos debates e diálogos no evento deste ano se centraram na Assembleia Sinodal de outubro deste ano. Este encontro será o segundo dos dois convocados pelo Papa Francisco para tratar de assuntos relacionados à vida em família.
Entre os que abordaram o tema do Síndo estão três prelados: Dom Kevin Dowling (de Rustenburg, África do Sul); Dom Emanuel Barbara (de Malindi, Quênia); e Dom Antoine Kambanda (de Kibungo, Ruanda).
Tanto Dom Kevin Dowling quanto Dom Emanuel Barbara denunciaram, sem rodeios, a Assembleia Sinodal de 2014 por não se focar o suficiente em assuntos relacionados aos africanos.
Kevin Dowling, um dos presidentes do grupo pacifista católico internacional Pax Christi, disse esperar que a edição do Sínodo de 2015 evite simplesmente reafirmar doutrinas em “constructos predominantemente eurocêntricos”.
Mais tempo durante os debates, disse ele, deveria ser empregue em “todas as questões sistêmicas que ameaçam as relações entre as pessoas nas sociedades e tornam tão difícil para os pais de hoje nutrirem a sua relação com os seus próprios filhos e, portanto, criá-los saudáveis e de um jeito vivificante”.
Dom Emanuel Barbara, que foi selecionado como bispo substituto para participar do Sínodo dos Bispos caso algum prelado queniano eleito para ser representá-los não seja capaz de comparecer em outubro, disse que o primeiro Sínodo de 2014 se focou “muito mais sobre a Europa, ou numa cultura europeia, que se converteu ao cristianismo e que, agora, está enfrentando grandes desafios por causa da nova era”.
Os africanos, disse Dom Emanuel Barbara, enfrentam desafios muito diferentes daqueles enfrentados pelos europeus. Muitos africanos, segundo ele, ainda estão lidando com alguns problemas relativos a serem recém-convertidos ao cristianismo e terem de conciliar a vivência desta religiosidade respeitando, mesmo tempo, as suas culturas tradicionais.
O bispo queniano pediu por uma nova teologia do sacramento do matrimônio a partir de um contexto africano:
“Se queremos ter respeito às nossas famílias cristãs africanas, precisamos trabalhar seriamente em uma teologia cristã africana do matrimônio”, disse ele. “Não é suficiente aplicarmos certos modelos que estão aí há séculos”.
Um teólogo, o ugandense Emmanuel Katongole, chegou a criticar o que chamou de uma “tirania de problemas morais prementes” que reduzem imediatamente os problemas que a Igreja precisa enfrentar a questões de sexualidade ou autoridade.
“O efeito global de começarmos com os ‘problemas morais prementes’ é acabarmos fazendo uma paródia da voz africana”, disse Katongole, professor de Teologia e Estudos da Paz no Instituto Kroc da Universidade de Notre Dame.
“É de se perguntar por que a sexualidade é uma questão moral premente, mas não o é o fato de que milhões de africanos não têm supridas as necessidades básicas tais como água, alimento e abrigo. Por que a orientação sexual é um direito humano básico, mas não o é o direito à água?”
Um chamado à organização africana
Em três sessões do Colóquio de Nairóbi focadas no “Evangelho da Família: Da África para a Igreja Mundial”, os participantes levantaram uma grande variedade de temas que, segundo eles, desafiam a Igreja no continente e que não foram devidamente debatidos no Sínodo de 2014.
Entre os inúmeros assuntos listados estão os seguintes:
• As lutas identitárias dos africanos que se sentem separados de suas culturas tradicionais após a conversão ao cristianismo.
• A violência doméstica de gênero, esmagadoramente contra as mulheres.
• A falta da presença paterna na vida familiar.
• A pobreza incapacitante em grande escala.
• A falta de “liderança ética de princípios”, tanto na esfera governamental quanto na esfera religiosa.
Vários participantes do evento pediram que os líderes da Igreja africana trabalhem mais em conjunto, a fim de coordenarem suas falas sobre essas questões no Sínodo deste ano.
Um teólogo, o padre jesuíta Paul Bere, disse que sentia um “lamento profundo” pelo fato de que a complexidade dos problemas que desafiam os africanos não fora discutida no evento de 2014.
“É tão triste que a Igreja africana não se fez ouvir e eu duvido que ela vá ser ouvida na próxima Assembleia Geral [do Sínodo dos Bispos]”, disse o sacerdote, natural de Burkina Faso que leciona no Institut de Théologie de la Compagnie de Jésus in Abidjan, na Costa do Marfim.
O jesuíta, que trabalhou como consultor para a Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos entre 2009 e 2014, no Vaticano, disse que as vozes africanas não estavam sendo ouvidas porque as diferentes Igrejas africanas não organizaram os seus argumentos de forma conjunta.
O padre maryknoll Joseph Healey, americano que vive na África há quase 40 anos, disse que os bispos africanos “não estabeleceram uma estratégia clara e incisiva para apresentar, em Roma, as suas prioridades”.
“Ao contrário de outros continentes, que se planejam juntos e, em seguida, vêm com prioridades claras, as nossas intervenções são, muitas vezes, dispersas e não planejadas em conjunto”, disse ele.
Dom Emanuel Barbara, cuja diocese fica a cerca de 500 km ao leste de Nairóbi, falou em nome dos católicos africanos que lutam para conviver em ambas as culturas: a tradicional e a cristã.
Ele disse que ouve católicos de sua diocese dizerem que se sentem “como se não estivessem vivendo totalmente como africanos por terem se tornado cristãos”.
Emanuel Barbara também identificou duas propostas concretas, as quais ele pediu aos bispos sinodais para que considerassem: a criação de uma forma mais gradual de consentimento para o matrimônio, e cursos preparatórios mais amplos aos parceiros que estão pensando em se unir.
Sobre a primeira questão, o bispo queniano disse que os casamentos tradicionais africanos envolviam, em geral, muito mais do que o simples “Sim, aceito”, que fornece o consentimento entre os cônjuges nos casamentos cristãos. No passado, segundo ele, o consentimento entre os pares se dava ao longo dos anos – com os parceiros vivendo juntos e com suas famílias passando, aos poucos, a considerá-los como tal.
“Podemos ainda hoje falar de uma forma universal de matrimônio, onde o único consentimento – ‘Sim, aceito’, proveniente de uma cultura latina, alemã – será suficiente para sancionar um casamento?”, perguntou Dom Emanuel Barbara.
Ainda segundo o prelado, “no contexto africano, [o matrimônio] costumava passar por estágios. Ele costumava envolver as duas famílias antes que a união viesse a ser alguma coisa. É válido, ainda hoje, insistir em nossa própria cultura, em nosso ambiente aqui, que basta dar um passo à frente, em direção ao padre ou ministro, e dizer: ‘Sim, aceito’?”
O queniano bispo também disse que o ensinamento da Igreja sobre o emprego de métodos anticoncepcionais e a fertilidade se concentram muito especificamente sobre a definição de um comportamento pecaminoso.
“É muito simplista falar que os nossos casais cristãos africanos podem, simplesmente, aprender sobre os efeitos bons ou negativos dos métodos anticoncepcionais, da infertilidade ou da fertilidade com base na categoria do que é pecaminoso ou não”, disse Emanuel Barbara. “Isso é simplista demais para uma cultura onde a fecundidade é um dos elementos mais importantes no casamento”.
Katongole, teólogo ugandense, apresentou sete desafios sociais que, segundo ele, a Igreja africana enfrenta e que “pedem por ideias teológicas renovadas sobre o que a Igreja na África precisa ser, deveria ser e como ela pode responder a estes desafios”.
Ao trazer o fato de que a África subsaariana é a região que possui o índice de crescimento populacional mais alto do mundo, o professor citou a estatística segundo a qual mais de 50% dos jovens são analfabetos e estão desempregados.
“Isso vai pressionar a Igreja na África”, disse Katongole. “Que tipo de Igreja teremos? Acho que, na resposta a este desafio, a Igreja africana irá se aproximar da visão eclesiológica do Papa Francisco, de uma Igreja dos pobres para os pobres”.
Liderança exercida por um “chefe”
No entanto, o teólogo também disse que um dos principais problemas enfrentados pela Igreja na África é certa tendência a espelhar, nas suas estruturas, um tipo de liderança popular dos governos africanos, onde uma figura-chave exerce o poder como um “grande homem” ou um “chefe”.
“Em geral, a liderança na Igreja tem, infelizmente, espelhado e irradiado o mesmo estilo de liderança, onde o bispo e – em menor escala – o sacerdote exercem uma chefia e um senhorio inquestionáveis sobre os seus liderados”, disse Katongole. “Da mesma forma, as instituições da Igreja se caracterizam pelas mesmas – e em alguns casos ainda piores – formas de corrupção e opacidade”.
O teólogo pediu aos bispos que “recuperem a visão de Igreja” fundamentada no chamado de Jesus para que sejamos servos.
A teóloga queniana Philomena Mwaura identificou a violência contra as mulheres e a falta de pais estáveis nos países africanos como problemas que o Sínodo de outubro deve debater.
Professora na Universidade Kenyatta, instituição pública do Quênia, Mwaura disse haver uma “crise” de paternidade em seu continente, citando dados de que apenas 3% dos africanos dizem ter um bom relacionamento com os pais.
“O desafio da família africana moderna, hoje, é a presença dos pais”, disse ela. “Os meninos não têm a presença do preceptor; eles não têm esta figura que lhes sirva de modelo”.
O evento de Nairóbi foi convocado pelo reitor da Hekima University College, o padre jesuíta Agbonkhianmeghe Orobator. Natural da Nigéria e que recentemente terminou um mandato como superior provincial da Província da África oriental de sua ordem, Orobator organizou as três edições do colóquio teológico com temas distintos.
O tema deste ano foi: “Uma Agenda para Vaticano III: Ideias, Problemas e Recursos da África para a Igreja Mundial”. Além de sessões focadas no Sínodo sobre a família, houve outras que se centraram nas questões como a ecologia, a violência religiosa e os chamados problemas morais prementes em todo o continente.
A edição do evento neste ano também foi marcada por uma quantidade incomum de diálogos abertos em torno de assuntos teológicos. As apresentações ficaram limitadas a 10 minutos de forma que os participantes pudessem ter tempo para debater ideias juntos.
Durante a sessão de abertura no dia 16 de julho, os participantes elogiaram o ciclo de três anos de estudo e debates, dizendo que ele permitiu expandir seus horizontes ao aprenderem sobre a diversidade de experiências existentes em todo continente.
Dom Antoine Kambanda, o bispo ruandês, mencionou que havia sido nomeado para o seu cargo há dois anos e que achou muito oportuna a sua participação nestes colóquios.
“Para mim, como bispo novo na diocese participar destes momentos foi providencial”, disse ele, acrescentando que recém havia ajudado no lançamento do processo para se criar um novo plano pastoral para a sua diocese, no sudeste do Ruanda.
“Aqui aprendi teologia prática”, disse Kambanda. “Teologia na prática, que me inspirou neste plano pastoral”.
Dom Kevin Dowling, o bispo sul-africano, disse saber que muitos teólogos enfrentam dificuldades com a liderança em suas dioceses na realização de seu trabalho.
“Vocês enfrentam desafios sistêmicos na Igreja e eu estou ciente disso”, contou ele ao grupo. “É muito importante que vocês saibam que alguns de nós, na condução da Igreja, não só gostamos de vocês, mas também os apoiamos totalmente”.
“O papel de vocês é ir além das fronteiras, por mais difícil que isso possa ser”, disse Kevin Dowling.
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