07 Mai 2015
Neste ano, o mundo se lembra do 16º centenário do martírio de Hipátia, a filósofa bizantina assassinada em Alexandria do Egito pelas milícias fundamentalistas cristãs do bispo Cirilo na primavera de 415, pouco antes da Páscoa.
A análise é da filóloga e bizantinista italiana Silvia Ronchey, professora da Universidade Roma Tre. O artigo foi publicado no jornal La Stampa, 01-05-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Embora não exista um martirológio laico, em muitas partes e de vários modos, discretamente, quase subterraneamente, o mundo se lembra neste ano do 16º centenário do martírio de Hipátia, a filósofa bizantina assassinada em Alexandria do Egito pelas milícias fundamentalistas cristãs do bispo Cirilo na primavera de 415, pouco antes da Páscoa.
Uma mostra no Museu do Cálculo de Rimini (415-2015. Ipazia matematica alessandrina, até o dia 30 de agosto) recorda essa mulher proeminente, amada pelos seus discípulos pagãos e cristãos, expoente de uma moderação de pensamento confirmada por "uma franqueza de palavra", narram os historiadores, pela qual ela "dirigia-se face a face aos poderosos e não tinha medo de aparecer nas reuniões dos homens, que, dada a sua extraordinária sabedoria, eram totalmente deferentes a ela e a olhavam com temor reverencial".
Na Lua
Sobre Hipátia, mestra de ciência e de sabedoria, mas também de empenho cívico, ícone da liberdade de pensamento, a mostra de Rimini oferece aos visitantes uma documentação essencial: documenta a sua cultura científica (estão em exposição, junto com antigos instrumentos de cálculo astronômico, as obras de Euclides, Apolônio, Diofanto e, especialmente, de Ptolomeu, do qual ela comentou as Tabelas simples e reviu o Almagesto) e testemunha a devoção que, ao longo de 16 séculos, toda a cultura ocidental lhe tributou, da pintura (por exemplo, o célebre embora discutido retrato segredo de Rafael, na Escola de Atenas [imagem acima]) à literatura (acima de todos, a homenagem de Leopardi na História da astronomia), até a ciência moderna, que intitulou a ela a cratera lunar Hipátia, não muito longe do ponto do pouso da Apollo 11, como evidencia a última vitrine.
Nestes tempos em que o Oriente Médio é sacudido pelo terror do integralismo islâmico e ensanguentado por episódios maciços e cruéis de perseguição religiosa, não é fácil, mas é importante lembrar que a Igreja cristã, nos seus primórdios, manchou-se com uma violência integralista de muitos modos afim, como a dos parabolanos, os monges-maqueiros, de fato, milicianos clericais que massacraram Hipátia, fizeram-na aos pedaços e lançaram os seus restos às chamas.
É unânime o testemunho das fontes contemporâneas e depois bizantinas segundo as quais foi o bispo Cirilo o mandante desse assassinato, que refletia não tanto um conflito religioso ou uma luta pela supremacia confessional, já assegurada pelos decretos teodosianos (que haviam acabado de proclamar o cristianismo como religião de Estado), mas sim uma estratégia precisa e circunstanciada de apropriação do poder estatal, em uma perspectiva teocrática.
O bispo Cirilo
O proselitismo armado de Cirilo contradizia plenamente a ideia de tolerância defendida 100 anos antes pelo Edito de Constantino de 313, assim como a tendência conciliadora do cristianismo com o paganismo de elite que o primeiro imperador cristão havia apoiado politicamente e sancionado juridicamente.
Ele reivindicava o acesso da Igreja à condução da política: um verdadeiro poder temporal, mais afim ao modelo do papado romano do que à rigorosa separação dos poderes sancionada pelo chamado cesaropapismo bizantino.
Também por isso, talvez, a posição oficial da Igreja de Roma, apesar das desculpas e dos pedidos de perdão dispensados um pouco a todos no fim do século XX e início do século XXI, e apesar da gravidade e da natureza quase terrorista do antigo assassinato de Hipátia, nunca quis pôr Cirilo, a sua santidade, a sua probidade, em discussão.
Ainda no fim do século XIX, Leão XIII o proclamou Doutor da Igreja (Doctor Incarnationis). Na celebração que fez a ele no dia 3 de outubro de 2007, Bento XVI elogiou a "grande energia" do seu governo eclesiástico "sem gastar duas linhas", como foi observado, "para absolvê-lo da sombra que a história fez pesar sobre ele".
Embora alguns intelectuais católicos tenham convidado – mesmo que não à descanonização – à cautela, uma igreja de São Cirilo Alexandrino foi recentemente edificada em Roma, em Tor Sapienza.
E eis que, nesta Páscoa de 1.600 anos após a sanguinária Quaresma de 415, em que se consumou o assassinato de Hipátia, uma surpreendente iniciativa foi tomada pela Associação Toponomástica Feminina e por uma ampla e diversificada série de associações civis romanas, que se constituíram em comitê e apresentaram ao escritório toponomástico do município de Roma um abaixo-assinado para lhe dedicar um adequado espaço urbano na cidade de Pedro: Una piazza per Ipazia [Uma praça para Hipátia] coletou mais de 1.500 assinaturas, que se somam às de outros pedidos já apresentados e à proposta de uma intitulação justamente em Tor Sapienza, na área da nova igreja de São Cirilo.
Tolerância laica
Não é uma provocação, ao contrário, quer ser uma pacificação. A tolerância laica certamente não impede que se continue incluindo entre os santos do calendário o "terrível bispo", como o chama a História eclesiástica de Sócrates.
Mas os fiéis cristãos também têm o direito de recordar a sua antiga vítima e o ensinamento que a história tem a nos dar sobre os perigos do fanatismo religioso, nestes difíceis tempos de lutas e perseguições.
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Hipátia, a filósofa pagã morta pelos talibãs cristãos. Artigo de Silvia Ronchey - Instituto Humanitas Unisinos - IHU