Por: Jonas | 02 Março 2015
“No que se refere à suposta ‘fidelidade doutrinal’ da Igreja africana frente à suposta decadência da catolicidade em países europeus, penso que nisto existe muito de mito. É preciso levar em consideração que uma grande diferença cultural entre a Europa e a África é a falta de espírito crítico. As igrejas da África, em muitos casos, refletem suas culturas e suas sociedades, onde não existe o debate e não se pode contrariar quem manda (bom, exceto se é o Papa Francisco que diz “quem sou eu para julgar os gays”)”, escreve o teólogo e jornalista José Carlos Rodríguez, em artigo publicado pelo blog En clave de África, 27-02-2015. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Por razões de espaço, o título deste artigo é incompleto. Deveria ser: “O mito de uma Igreja africana fiel... versus uma Igreja europeia supostamente infiel”. Esta parece ser a ideia que ultimamente apresentam alguns setores da Igreja que poderíamos qualificar como muito conservadores e que expressam seu espanto diante de declarações de bispos de países como Alemanha e Holanda sobre temas como a homossexualidade ou a comunhão aos divorciados, entre outros. Diante de tamanha traição, argumentam alguns, a barca de Pedro se salvará de se afundar graças à fidelíssima ortodoxia dos prelados da África, continente apresentado de forma bastante simplista como a reserva espiritual de um mundo corrompido.
Tenho minha própria opinião sobre tudo isto. Antes de qualquer coisa, acredito que há muito que ponderar. Vivo há 24 anos na África entre Uganda, República Democrática do Congo, República Centro-Africana e Gabão, e conheço de visitas mais ou menos breves outros 13 países africanos. Trabalhei a maior parte do tempo em instituições da Igreja ou ligadas a ela e cada vez estou mais convencido de que é muito arriscado falar de “Igreja africana”; existem muitíssimas Igrejas católicas locais com grandes diferenças entre elas: algumas com cinco séculos de existência como Angola e Moçambique, outras com uma grande inserção na maioria da população, como é o caso de Congo-Kinshasa, Uganda, Burundi ou Gabão; em outros países a Igreja representa uma minoria em torno de 15 a 20%, mas com bastante influência social, como ocorre em Mali ou em Chade. E há outros casos de menção especial, como Etiópia e Eritreia, onde os católicos são uma minoria em meio a uma sociedade majoritariamente ortodoxa, ou África do Sul, com um catolicismo também minoritário em um meio predominantemente protestante. E não se pode esquecer os países africanos de maioria muçulmana onde a presença católica é testemunhal, algo que por certo determinados defensores da “Igreja africana fiel” veem como algo bastante inútil.
Depois, há uma grande variedade de situações sociais e eclesiais. Há Igrejas locais católicas bastante acomodadas, cujas hierarquias parecem não se interessar pelos graves problemas sociais que afetam seus países e se alinham com o poder, como ocorre na Guiné Equatorial. Em outros países africanos, a Igreja católica há muitos anos encara ditaduras e clama pela paz e a dignidade humana, como ocorre na República Democrática do Congo, onde em 1996 foi assassinado o arcebispo Munzihirwa, de Bukavu, e onde há não muito tempo o cardeal de Kinshasa clamou contra as forças da ordem para que deixassem de matar os que protestavam nas ruas (por algo muito parecido balearam dom Romero, em El Salvador). Neste blog, muitas vezes, escrevi sobre o comportamento heroico do arcebispo de Bangui, dom Nzapalainga, e uma boa parte do clero, tanto local como expatriado, que deram suas vidas para salvar as dos mais fracos, inclusive muçulmanos. No norte de Uganda vivi durante cinco anos com dom Odama, um bispo que adentrava nas matas para conversar com os rebeldes do LRA e que dormiu vários dias nas ruas de Gulu junto às milhares de crianças que fugiam todas as noites dos ataques da guerrilha.
A Igreja africana, pela qual tenho um grande afeto pessoal, possui grandes fortalezas. A África é o continente onde com maior rapidez cresce o número de fiéis e também de vocações. O sentido religioso, muito presente nas culturas tradicionais, é notado em celebrações litúrgicas em que as pessoas rezam com fervor e sem pressa. Em muitos países onde falta de tudo, as instituições sociais da Igreja funcionam bem e se voltam aos mais necessitados. A Igreja está presente nos lugares mais afastados, isolados e difíceis, e muitas vezes quando há situações de perigo e conflito pessoal costuma ser a que melhor conhece a situação e é a última a se retirar, se é que alguma vez se retira. Em muitas comunidades, são leigos os líderes que – quase sempre sem receber nenhuma remuneração – animam suas comunidades como catequistas, nos conselhos de paróquia ou em comunidades eclesiais de base.
Na África nem tudo são rosas pois as dioceses africanas também possuem suas fragilidades: é certo que os católicos crescem, mas não é menos certo que paralelamente há uma verdadeira sangria de católicos para as novas seitas evangélicas e é possível que dentro de alguns anos nos lamentemos, como agora fazemos com a Igreja latino-americana. Os seminários estão repletos, certo, mas qualquer um que tenha sido formador em algum deles dirá imediatamente que em muitíssimos casos é muito difícil detectar as verdadeiras motivações. Em numerosas Cáritas e outras obras sociais não raramente falta clareza nas contas e são numerosas as dioceses em que os doadores europeus ou norte-americanos jogaram a toalha. O clero costuma ter uma ideia de seu ministério muito ligada ao poder e isso explica que muitas vezes na pastoral prime a lei do mínimo esforço e falte compromisso para atender os fiéis mais distantes. A vida contemplativa é mínima, o que eu interpreto como um sintoma de que às vezes falta profundidade espiritual. Como também falta consistência entre o que se diz e o que se faz. Em Uganda vi documentos muito bonitos do episcopado sobre a corrupção... e também bispos que ajudam a abençoar a mansão nova de um superministro de todos conhecido por ter enchido os bolsos de dinheiro público.
Continuemos com mais algumas contradições. Os leigos dão o sangue trabalhando em suas comunidades, mas na hora de tomar decisões prima o clericalismo mais rançoso (e se isso acontece com os homens, imaginem com as mulheres). Durante os últimos anos, o Vaticano – com uma política que deu um giro importante a partir de Bento XVI – dispensou de forma discreta, mas muito firme, os bispos de dioceses africanas que levavam uma vida dupla, que esbanjavam dinheiro (como ocorreu no ano passado com o arcebispo de Yaoundé) ou que encobriram abusos sexuais de uma parte de seu clero.
Este último tema, por certo, com toda sua carga de hipocrisia, é um dos que pessoalmente mais me exasperava. Não recordo quantas vezes ouvi padres africanos dizer que em suas dioceses não existia a “degradação homossexual” como na Europa ou nos Estados Unidos, enquanto se atiravam com toda tranquilidade em jovens adolescentes que trabalhavam nas suas paróquias ou em jovens para quem pagavam a escola... em troca de algo.
No que se refere à suposta “fidelidade doutrinal” da Igreja africana frente à suposta decadência da catolicidade em países europeus, penso que nisto existe muito de mito. É preciso levar em consideração que uma grande diferença cultural entre a Europa e a África é a falta de espírito crítico. As igrejas da África, em muitos casos, refletem suas culturas e suas sociedades, onde não existe o debate e não se pode contrariar quem manda (bom, exceto se é o Papa Francisco que diz “quem sou eu para julgar os gays”). Na África não encontraremos, como ocorre na Alemanha ou na Áustria, as faculdades de Teologia onde há mais estudantes leigos do que sacerdotes ou religiosos. Em países centro-europeus um pároco pode se deparar, em seu conselho paroquial, com leigos que sabem mais Teologia do que ele. Isto o obriga a afinar muito as coisas quando prepara a homilia, problema que não costuma existir na África.
Durante os 20 anos em que vivi em Uganda, nunca encontrei um seminário ou instituto teológico no qual os leigos tivessem acesso às aulas. Quando muito, nos cursos para catequistas (em geral, homens).
Na Europa existem bispos teólogos de um nível mais do que respeitável, como é o caso do alemão Walter Kasper, alvo hoje das iras de católicos tradicionalistas. Na África houve uma primeira geração de bispos teólogos como foram os casos dos já falecidos cardeal Malula, de Kinshasa, e o arcebispo de Yaoundé, Jean Zoa. Houve teólogos pesquisadores que tiveram uma enorme influência entre os setores mais críticos de suas sociedades, como foi o caso dos já desaparecidos Engelbert Mveng, Meinrad Hegba (ambos assassinados nos anos 1990) e Jean Marc Éla, todos eles por certo camaroneses. Um companheiro camaronês do escritório da ONU, onde atualmente trabalho, em Libreville, muitas vezes me fala sobre como, quando ele estudava na Universidade, as missas de Jean Marc Éla se enchiam até transbordar de pessoas críticas à sua sociedade, que bebiam do Evangelho e da verdade sobre a realidade social de seu país.
Depois, veio uma geração de um clero que apenas pesquisou, de seminários e faculdades teológicas que foram simples caixas de ressonância do que dizia Roma. As teses de licença ou de doutorado em dogma, moral e Direito Canônico, escritas durante os últimos anos, parecem muitas vezes copiadas no mesmo padrão, e sem contribuir com nada de novo, nem por suposto questionar nada. Sei do que falo: estudei meu último ano de Teologia no seminário nacional de Gaba, em Uganda, onde era mal visto fazer perguntas e onde questionar as teses do professor poderia significar receber um rápido bilhete de expulsão.
Um exemplo, entre muitos, desta preguiça mental, no que se refere a temas teológicos e pastorais, observei a respeito do tema do uso do preservativo por casais discordantes, onde um dos cônjuges está infectado e o outro não, um caso pastoral muito frequente na África. Recordo algumas declarações do cardeal ugandês Emmanuel Nsubuga que dizia que em tal caso a mulher deveria sacrificar sua vida para satisfazer seu marido infectado, mas sobre o uso de preservativo nem pensar. Muita fidelidade doutrinal, mas não esclareceu se os filhos de um casal como este têm o direito de esperar que seus pais se mantenham com vida.
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O mito de uma Igreja africana “fiel” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU