12 Janeiro 2015
"Mantive o silêncio por dois anos e meio desde a minha remoção, mas acho que agora é o momento de esclarecer algumas coisas sobre o Banco Vaticano."
Ettore Gotti Tedeschi, ex-presidente do Instituto para as Obras de Religião (IOR), conhecido popularmente como Banco Vaticano, de 2009 a 2012, conta pela primeira vez a sua versão dos recentes fatos financeiros da Santa Sé.
O artigo foi publicado no jornal Catholic Herald, 08-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Com respeito e devoção, gostaria de fazer uma pergunta à Sua Eminência Reverendíssima o cardeal George Pell, que, como prefeito da Secretaria para a Economia, está gerindo a reforma das finanças da Santa Sé.
Sua Eminência, o senhor tem certeza de ter sido suficientemente informado sobre a recente história do Banco Vaticano, do qual fui presidente a partir de 2009 até ser demitido depois de um voto de não confiança em 2012?
Em um artigo para o Catholic Herald no mês passado, o cardeal Pell explicou por que ele acredita que as finanças da Santa Sé estão em um bom estado e que agora tudo está finalmente sob controle. Ele também explica que a situação financeira do Vaticano é muito mais saudável do que se pensa, já que vieram à tona centenas de milhões de euros que não apareciam nos balanços oficiais do Vaticano.
O artigo do cardeal certamente deve ter tranquilizado os fiéis que fazem sacrifícios econômicos substanciais para apoiar a Igreja e também deve ter dado conforto às tantas organizações religiosas que confiam nesses recursos para chegar ao fim do mês. No entanto, o artigo parece não ter acalmado o porta-voz da Sala de Imprensa vaticana, que "corrigiu" o cardeal Pell, em vez de pedir para que ele mesmo fizesse esclarecimentos diretamente, dizendo que não são fundos "ilegais, ilícitos ou mal administrados" aqueles que ficaram de fora dos balanços oficiais.
O cardeal me citou explicitamente no artigo, destacando que os últimos anos do pontificado de Bento XVI foram muito turbulentos para o Instituto para as Obras de Religião (IOR), conhecido coloquialmente como Banco Vaticano. "O presidente do banco, Ettore Gotti Tedeschi, foi destituído pelo conselho laico", escreveu Pell, "e uma luta de poder no Vaticano resultou no regular vazamento de informações".
Essa declaração permitiria imaginar que era o conselho laico que queria a minha expulsão e que isso também estava ligado a "lutas de poder". Se isso fosse verdade, por que não foi imediatamente nomeada uma comissão de inquérito?
Portanto, gostaria de sugerir algumas reflexões que eu espero que possam ser úteis para o cardeal, assim como para a Igreja inteira, embora cada vez mais eu tenho a impressão de que se quer esquecer esses fatos "passados", que para mim são parte importante da minha vida que, a partir desses mesmos fatos, foi tragicamente mudada. Mantive o silêncio por dois anos e meio desde a minha remoção, mas acho que agora é o momento de esclarecer algumas coisas (somente algumas).
O cardeal Pell absolutamente tem razão ao dizer que a Santa Sé tem como principal desejo respeitar os padrões internacionais de transparência financeira. Isso é exatamente o que Bento XVI tinha decidido fazer quando lançou a grande reforma das finanças do Vaticano.
Esses novos padrões são tão importantes que eu mesmo os defini em um documento como "os Pactos Lateranenses do século XXI". Eles querem encaixar a Santa Sé em um contexto de transparência segundo as normas financeiras internacionais, que nenhuma organização pode mais ignorar depois dos fatos de 11 de setembro de 2001, nem mesmo por razões de suposta confidencialidade ou "sigilo".
Foi Bento XVI que me pediu para chegar a esse objetivo de modo "exemplar", para poder garantir a credibilidade da Igreja como autoridade moral universal. Assim, fizemos iniciar esse processo, junto com o cardeal Attilio Nicora, presidente da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica e com os maiores especialistas externos e internos ao Vaticano.
No seu artigo, o cardeal Pell mencionou o famoso sequestro dos 23 milhões de euros do Banco Vaticano por parte do Banco da Itália. Ele disse que o dinheiro foi congelado porque "as autoridades que supervisionam o Banco Vaticano não se moveram rápido o suficiente" na aplicação das leis internacionais contra a lavagem de dinheiro.
O sequestro ocorreu logo que eu fui nomeado presidente do Banco Vaticano e logo que eu comecei a implementar as reformas ordenadas pelo Papa Bento XVI. Antes da minha nomeação, o nível de transparência do banco era considerado totalmente insuficiente.
O sequestro dos 23 milhões de euros e a sucessiva investigação do Ministério Público de Roma foram consequência da falta de uma lei antilavagem de dinheiro, de procedimentos adequados em curso e de autoridades dedicadas que supervisionassem todas as questões de transparência financeira. Essas garantias foram requeridas a todos os bancos que operam nos países que querem ser incluídos na chamada "white list" – ou seja, os países comprometidos a combater o terrorismo e a lavagem de dinheiro sujo.
Com a explícita aprovação do secretário de Estado e presidente da Comissão Cardinalícia, o cardeal Bertone, decidi me fazer interrogar pelo Ministério Público de Roma, junto com o diretor do instituto. Era uma coisa insólita para uma autoridade vaticana, mas estávamos determinados a demonstrar que, a partir daquele momento, não queríamos ter nada a esconder e não queríamos esconder nada. O Papa Bento XVI havia pedido uma transparência total.
O dinheiro apreendido, assim, foi liberado à disponibilidade do instituto – contanto que buscasse observar as normas sobre a transferência de fundos – graças às capacidades e à credibilidade da minha advogada, a professora Paola Severino, que mais tarde tornou-se ministra da Justiça. Ela foi capaz de convencer o Ministério Público em relação à determinação da Santa Sé de alcançar três objetivos tangíveis até o fim de 2010: a aprovação de uma lei contra a lavagem de dinheiro, a introdução de procedimentos internos ao Banco Vaticano (e às outras instituições interessadas da Santa Sé) e a criação de um órgão de supervisão geral, a Autoridade de Informação Financeira Vaticana (AIF).
No dia 31 de dezembro de 2010, Bento XVI assinou o motu proprio com que ratificava a lei antilavagem de dinheiro, constituiu a AIF e nomeou o cardeal Nicora como seu presidente.
O cardeal Pell não pode imaginar quanto esforço, quantos conflitos e quantas dificuldades encontramos em 2011, quando começamos a implementar a lei antilavagem de dinheiro e quando a AIF começou a sua operação. Esses esforços foram reconhecidos quando os encarregados do Moneyval, o órgão de monitoramento do Conselho da Europa, fizeram a visita de primeira avaliação em novembro de 2011, e os resultados foram muito positivos. Os encarregados do Moneyval até expressaram surpresa diante do nosso compromisso e da nossa eficiência.
Suspeito que o cardeal Pell não esteja a par do que aconteceu imediatamente depois. Em dezembro de 2011, logo depois da visita positiva do Moneyval, foi realizada com surpreendente pressa um esboço de uma nova lei que modificaria a lei antilavagem de dinheiro e o papel da AIF.
Fui informado das mudanças apenas em janeiro de 2012 pelo presidente da AIF, mas só depois que o esboço de lei estava preparado. Em suma, o ponto-chave dessas modificações, além de alguns artigos modificados, estava no fato de que a AIF deixava de ser um órgão independente para acabar sob a supervisão da Secretaria de Estado, confundindo o papel de controlado com o de controlador.
Isso colocou em grande dificuldade o cardeal Nicora, o Conselho da AIF e eu mesmo. O presidente da AIF, então, escreveu um memorando de discordância e de perplexidade ao cardeal Bertone, que, depois, foi misteriosamente publicado por um dos principais jornais italianos.
O sistema bancário internacional ficou muito perplexo com a súbita aplicação posterior da nova lei, que impedia a necessária troca de informações, e considerou isso como uma mudança de rumo em relação ao caminho de transparência concordado e em relação aos resultados tangíveis prometidos. Como resultado, o Moneyval fez a segunda visita no início de 2012 e expressou fortes dúvidas sobre a situação – especialmente sobre a perda de independência da AIF.
O Moneyval, então, escreveu o segundo pré-relatório no dia 27 de abril de 2012, em que destacava que tinha sido dado um "passo atrás". O cardeal Pell foi adequadamente informado desses eventos?
Como resultado da mudança da lei, o sistema bancário internacional foi forçado a interromper as atividades com o Banco Vaticano. Dois dos maiores bancos italianos fizeram com que chegasse diretamente a mim, por escrito, a sua perplexidade. O cardeal Pell teve acesso a essas explicações documentadas? Ou, se já foi informado, realmente acredita que essas informações são irrelevantes?
Depois, quando o presidente da AIF pediu que o secretário de Estado suspendesse a ratificação das mudanças, que, por parte da AIF, eram consideradas como prejudiciais e arriscadas, tais mudanças foram imediatamente ratificadas pela Secretaria de Estado, quase um mês antes do prazo formal de três meses. Não é curiosa toda essa velocidade?
Agora, gostaria de esclarecer, novamente em prol do cardeal Pell, a relação entre o Banco Vaticano e o chamado escândalo Vatileaks, em que o camareiro do papa, quando foi sentenciado, vazou documentos confidenciais dos muros vaticanos. Os jornais italianos publicaram um documento interno do Banco Vaticano (sobre a relação entre a AIF e o IOR) e o referido documento escrito pelo cardeal Nicora para o secretário de Estado.
A fim de minar a minha credibilidade, me acusaram de ser o "corvo" e de ter vazado os documentos. Isso era obviamente falso, e, por isso, pedi uma imediata investigação. Não aconteceu nada. Posteriormente, provou-se que os documentos tinham sido vazados pelo camareiro do papa.
Depois, foram dadas nove razões enganosas para minha posterior remoção. Dentre elas, fui acusado de não ter cumprido o meu dever, de não ter mantido informado o Conselho do IOR e de ter mantido uma má relação com a administração. Uma das razões se referia também ao vazamento dos documentos, apesar de ter sido demonstrado, depois, que a responsabilidade era de outra pessoa.
O cardeal Pell, provavelmente, também precisa ser informado sobre aquela que eu considero ser uma razão que poderia explicar, em parte, o voto do Conselho do IOR de não confiança em mim.
Em abril de 2012, a Comissão Cardinalícia reconfirmou a minha nomeação, mas, no dia 24 de maio, o Conselho me expulsou. Nunca me foi dada a possibilidade de explicar isso, mas acho que a razão de tal gesto foi a minha decisão (antecipada a quem se devia) de apresentar ao Conselho uma proposta que mudaria completamente o governo do banco. Essa mudança era absolutamente necessária, dados os eventos anteriores.
No entanto, o cardeal Pell poderia não saber que a Comissão Cardinalícia não ratificou o voto de não confiança em mim por parte do Conselho do IOR. Alguns cardeais, de fato, me apoiavam nos meus esforços e no meu profissionalismo, e se recusaram a aprovar tal decisão.
Talvez, ele também não saiba que nunca me foi concedido responder pessoalmente às nove razões de desconfiança, apesar dos inúmeros pedidos da minha parte e apesar de uma nota escrita por mim a respeito, e que nunca foi levada em consideração.
O cardeal Pell é conhecido pelas suas capacidades, pela sua coragem e pela sua honestidade intelectual e moral. É por isso que eu tenho certeza de que nunca teve acesso aos documentos e às explicações que são essenciais para entender os eventos que aconteceram antes que eu fosse nomeado em Roma.
Entre esses documentos, destaco três em particular:
• O pré-relatório do Moneyval de abril de 2012, sobre o Relatório de 4 de Julho (veja acima);
• Diversos relatórios da Deloitte [empresa de auditoria e consultoria, n.d.t.] de 2011, que dizem respeito aos obstáculos à implementação dos novos procedimentos;
• O relatório sobre as razões para o fechamento da conta da JP Morgan (março de 2012).
Se o cardeal Pell pudesse ler esses documentos, entenderia qual responsabilidade pesou sobre as minhas costas durante aquele período. Se pudesse ler a minha nota em resposta às nove razões de desconfiança, poderia compreender a verdadeira natureza do meu sofrimento. Sofrimento que cresceu nos últimos tempos, graças à indiferença em relação à minha súplica de busca da verdade.
Gostaria de encorajar Sua Eminência a ler a entrevista do secretário do papa, o arcebispo Georg Gänswein, concedida ao jornal Il Messaggero em outubro de 2013, em que ele diz que Bento XVI ficou "muito surpreso" com o voto de não confiança e que me considerava com "grande estima". Também deveria saber o que o secretário de Estado me disse pessoalmente por parte de Bento XVI no dia 7 de fevereiro de 2013: o papa tinha decidido reabilitar imediatamente a minha figura – uma decisão que nunca foi implementada depois da renúncia de Bento XVI. Gostaria também que Sua Eminência soubesse como eu sinto falta do Papa Bento...
Por fim, acredito que o cardeal Pell deveria revelar esses quatro mistérios, mesmo que eu tenha certeza de que já é tarde demais, ao menos para mim:
1) Quem mudou a lei antilavagem de dinheiro do Vaticano em dezembro de 2011 e por quê?
2) Quem realmente decidiu que eu devia ser removido do Conselho laico como presidente do Banco Vaticano no dia 24 de maio de 2012 e por quê?
3) Quem foi que desobedeceu Bento XVI, que queria a minha reabilitação?
4) Quem decidiu ignorar os pedidos suplicantes de ser interrogado sobre os fatos acima? Quem não quer tomar conhecimento da minha versão da verdade e por quê?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A minha versão sobre as finanças da Santa Sé. Artigo de Ettore Gotti Tedeschi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU