Semana de 22: juntar as ruínas do passado e reconstruir o inimaginável moto modernista contra o mito fundador. Entrevista especial com Eduardo Sterzi e Veronica Stigger

Os pesquisadores retomam o evento no Theatro Municipal de São Paulo, em 1922, para pensar como se deu a complexa construção da memória deste que é um dos mais marcantes acontecimentos culturais do Brasil

Mário de Andrade, Anita Malfatti, Oswald de Andrade e Heitor Villa-Lobos – Fotomontagem e arte: Ana Júlia Maciel/Jornal da USP

Por: Ricardo Machado | 03 Mai 2022


Como diria Jorge Luis Borges, recordado por Eduardo Sterzi nesta entrevista, “o tango não deve ser importante; sua única importância é a que lhe damos”. O que o escritor e poeta argentino nos inspira e provoca é sobre como os fatos históricos ligados à cultura de um país, de um povo, de um grupo, repousam sobre uma dialética que se assenta e constrói com os cacos do tempo, a um gosto bastante benjaminiano.

 

“Eu acrescentaria [à frase de Borges]: sobretudo às coisas da cultura, essas coisas a um só tempo tão importantes (definem a própria existência, ou possibilidade de existência, de um povo como tal) e tão desimportantes (desimportância de que dá testemunho o desprezo constante pelas artes e pela cultura, desprezo que só se acentua, mas está longe de começar aqui, em fases de colapso da democracia, como o que estamos vivendo no Brasil pelo menos desde o golpe de 2016). Em resumo: ‘Historicamente, a Semana não deve ser importante; sua única importância é a que lhe damos’. O problema ― para os inimigos da cultura, mesmo para aqueles infiltrados nas trincheiras artístico-culturais (e há tantos) ― é que o sujeito implícito deste ato de dar importância é vasto no tempo e no espaço”, provoca Eduardo Sterzi, em entrevista por e-mail, juntamente com Veronica Stigger, à Revista IHU On-Line.

 

A “Semana”, grafada desta forma sintética, mas que nós, tão acostumados ao termo, já sabemos que se trata da Semana de Arte Moderna de 1922, é o tema em debate desta entrevista e do livro que será lançado por esta dupla no segundo semestre deste ano. Intitulado A Semana e o século: nas ruínas de 22, a obra sai pela editora paulista Todavia.

 

“Mas voltemos para o núcleo da questão: se a Semana importa como origem, é menos pelo mito que tudo explicaria do que pelo movimento ― o moto contra o mito ― que tudo transtorna e transforma. Daí que estudar a Semana, hoje, passe por encontrar algum equilíbrio entre o necessário deslocamento para a data ― para tentar apreender, sempre com alguma dose de imaginação, como as coisas se deram ― e a imprescindível atenção a pelo menos algumas das reiteradas reivindicações da Semana ao longo do século. A Semana, isto é, tem de ser vista simultaneamente como evento e como acontecimento, no sentido forte da palavra: como um evento que não cessa de acontecer”, complementa Sterzi.

 

Nesta mesma toada, Veronica ressalta que a Semana de Arte Moderna teve um caráter, sobretudo, de abertura ao debate sobre o que foi o modernismo no Brasil, inclusive traçando uma diferença crucial da vanguarda brasileira em relação às outras vanguardas modernistas do continente europeu. “Não se queria fechar a questão, mas, pelo contrário, abri-la. E talvez nada seja mais indicativo disso do que o fato de que, ao contrário dos movimentos das vanguardas europeias, a Semana de Arte Moderna não lançou manifesto, texto através do qual os artistas costumam apresentar as balizas da arte que defendem, geralmente contra todas as outras formas de expressão artística. Não houve manifesto na Semana. Houve nos anos subsequentes. É como se a Semana tivesse funcionado como uma abertura de inquérito”, recorda.

 

Eduardo Sterzi (Foto: Arquivo pessoal)

 

Eduardo Sterzi é professor de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Publicou, entre outros, A prova dos nove: alguma poesia moderna e a tarefa da alegria e Por que ler Dante. Organizou Do céu do futuro: cinco ensaios sobre Augusto de Campos. É autor também dos livros de poesia Prosa, Aleijão e Maus poemas e das peças teatrais reunidas em Cavalo sopa martelo. Foi um dos curadores das exposições Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo (montada no Brasil, na Alemanha e em Portugal) e Caixa-preta (Fundação Iberê Camargo).

 

Veronica Stigger (Foto: Eduardo Sterzi / Divulgação Todavia)

 

Veronica Stigger é escritora, curadora independente, crítica de arte e professora universitária na pós-graduação em Histórias das Artes na Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP. Foi curadora, entre outras, das exposições Maria Martins: metamorfoses e O útero do mundo, ambas no MAM-SP, nos anos de 2013 e 2016. Juntamente com Eduardo Sterzi, foi curadora da exposição Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo (montada no Brasil, Alemanha e Portugal, entre 2015 e 2019) e, com Eucanaã Ferraz, de Constelação Clarice (Instituto Moreira Salles, 2021).

É autora de mais dez livros de ficção, entre os quais estão Opisanie świata (Cosac Naify, 2013), Sul (Editora 34, 2016) e os infantis Dora e o sol (Editora 34, 2010) e Onde a onça bebe água (Cosac Naify, 2015, em coautoria com Eduardo Viveiros de Castro). Com Opisanie świata, seu primeiro romance, recebeu os prêmios Machado de Assis, São Paulo (autor estreante) e Açorianos (narrativa longa). Com Sul, angariou o Prêmio Jabuti. Seu livro mais recente é Sombrio Ermo Turvo, lançado em 2019 pela Editora Todavia, e foi finalista dos prêmios Oceanos, Jabuti, Minuano e AGEs.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Qual a importância da Semana de Arte Moderna para a história cultural do Brasil nesses cem anos?

 

Eduardo Sterzi – O escritor argentino Jorge Luis Borges, no Evaristo Carriego, tem uma resposta boa para esta questão da importância de fatos culturais: “Musicalmente”, diz ele, “o tango não deve ser importante; sua única importância é a que lhe damos”. Ele logo acrescenta, num lance retórico muito borgiano (isto é, que expande sua reflexão a virtualmente todo o universo, ao mesmo tempo que a rebaixa a quase nada, a algo da ordem da tautologia ou do truísmo), que “a reflexão é justa, porém talvez aplicável a todas as coisas”. Fiquemos, portanto, com a primeira proposição, e justamente porque a reflexão ali sintetizada pode se aplicar “a todas as coisas” ― mas eu acrescentaria: sobretudo às coisas da cultura, essas coisas a um só tempo tão importantes (definem a própria existência, ou possibilidade de existência, de um povo como tal) e tão desimportantes (desimportância de que dá testemunho o desprezo constante pelas artes e pela cultura, desprezo que só se acentua, mas está longe de começar aqui, em fases de colapso da democracia, como o que estamos vivendo no Brasil pelo menos desde o golpe de 2016). Em resumo: “Historicamente, a Semana não deve ser importante; sua única importância é a que lhe damos”. O problema ― para os inimigos da cultura, mesmo para aqueles infiltrados nas trincheiras artístico-culturais (e há tantos) ― é que o sujeito implícito deste ato de dar importância é vasto no tempo e no espaço.

Isto é, ao longo dos cem anos que nos separam de 1922, foram muitos os artistas, das mais variadas artes e das mais variadas regiões do país (e mesmo de fora dele), que sentiram necessidade de invocar, de um modo ou de outro, a Semana e os escritores, pintores, escultores, músicos, intelectuais etc. com ela identificados, encontrando nela e neles, se não uma fonte, da qual teria emanado o influxo que eles cristalizariam em suas ideias e obras, pelo menos um redemoinho que, colocando-se no meio do rio-oceano de palavras e imagens que nunca para de correr do passado em direção ao futuro, levou para o fundo algumas dessas palavras e imagens, e trouxe à tona outras.

É, aliás, exatamente com essa imagem da violência renovadora do redemoinho contra a suposta placidez da fonte que Walter Benjamin ilustra sua redefinição do conceito de origem (Ursprung) no seu magistral livro sobre o drama barroco (Trauerspiel) alemão, elaborado em 1916, escrito em 1925 e publicado em 1928 ― mesmo ano do Macunaíma e do Manifesto antropófago, o que poderia ser só uma coincidência, se não participassem os três textos de um mesmo horizonte de renovação das relações entre o presente e certos passados determinados e se, neste esforço, não compartilhassem procedimentos metodológicos e textuais, sendo o principal a montagem ou colagem de citações.

Mas voltemos para o núcleo da questão: se a Semana importa como origem, é menos pelo mito que tudo explicaria (e que, por isso mesmo, é tão combatido por alguns de seus críticos) do que pelo movimento ― o moto contra o mito ― que tudo transtorna e transforma. Daí que estudar a Semana, hoje, passe por encontrar algum equilíbrio entre o necessário deslocamento para a data ― para tentar apreender, sempre com alguma dose de imaginação, como as coisas se deram ― e a imprescindível atenção a pelo menos algumas das reiteradas reivindicações da Semana ao longo do século. A Semana, isto é, tem de ser vista simultaneamente como evento e como acontecimento, no sentido forte da palavra: como um evento que não cessa de acontecer.

Regressando a Borges, podemos lembrar que, no mesmo Evaristo Carriego há pouco citado, ele sugere que, por mais que possamos descrever os fatos concernentes à formação e tradição daquele gênero musical, é o seu “segredo” ― aquilo que escapa, por exemplo, às definições de dicionários ou às eventuais discussões apenas intelectuais ― que mais interessa. Em alguma medida, é em busca desse segredo da Semana, disperso nas obras produzidas ou oferecidas ao público em 1922 e nos anos imediatamente anteriores e imediatamente posteriores, mas também nessas invocações extemporâneas a que me referi, que nós estamos escrevendo o nosso livro.

 

IHU On-Line – O livro que vocês estão escrevendo se chamará A Semana e o século: nas ruínas de 22. Parece haver no título uma alusão a Walter Benjamin. Faz sentido? Como a noção de “ruína” é importante como chave de leitura da história e, por consequência, deste evento?

 

Eduardo Sterzi – Benjamin, que acabo de mencionar, é apenas um dos autores ― certamente um dos mais importantes, claro (e pessoalmente importante para mim, que sempre tive nele um dos meus heróis intelectuais) ― que viram nas ruínas uma figura central para a reflexão sobre a modernidade. Antes dele, houve, claro, Baudelaire, cujos poemas sobre Paris, de que Benjamin foi o maior intérprete, partem justamente da destruição da velha cidade medieval pelas reformas urbanas do Barão Haussmann. E, para um estudioso das letras e das artes do Brasil (e da história do Brasil através dessas letras e artes), antes de Benjamin e Baudelaire, há Euclides da Cunha escrevendo sobre a redução da “Troia de taipa” de Canudos à terra arrasada, Lima Barreto contra o desmonte do Morro do Castelo, Mário de Andrade sobre o “tangolomângolo” que dizimou a “tribo Tapanhumas”, Drummond sobre a redução do Pico do Cauê a minério de ferro e cratera etc. ― numa linha que, infelizmente (do ponto de vista dos fatos) e felizmente (do ponto de vista da criação artística), vem até o presente. Rever a Semana à luz dessa tradição é um modo de ressaltar o que havia de negatividade crítica por dentro da positividade criativa da Semana. E essas ruínas são também humanas, como vemos exemplarmente na trajetória de Alma: mulher livre impelida pelas circunstâncias sociais da época à prostituição, personagem central do primeiro tomo de Os condenados, que Oswald de Andrade publicou exatamente em 1922, vítima de um verdadeiro assassinato político cometido pela sociedade patriarcal, como o escritor frisa no próprio livro.

 

Veronica Stigger – Acrescento que, na mesma época de Benjamin, Flávio de Carvalho também estava pensando a partir da ruína, não a fim de melhor compreender o passado, mas justamente seu contrário: como um modo de apreender o presente. Em Os ossos do mundo, livro de 1936 que resultou de sua viagem a vários países da Europa entre 1934 e 1935 e no qual desenvolveu algo como uma arqueologia filosófica da cultura ocidental, afirmava: “A luz sobre o passado é a única luz capaz de iluminar o presente, e de ajudar a derreter o véu da cegueira”. Décadas depois, em 1967, Flávio iria mais longe ao dizer: “Acho que a consideração daquilo que apareceu no passado é sempre um gráfico daquilo que vai aparecer no futuro”. Para ele, o homem imerso em sua própria civilização se acha isolado pelos fatos: falta-lhe distância para ser capaz de compreender realmente o que está à sua volta. Por isso, seu fascínio pelas ruínas, por aquilo que chama de “ossos do mundo”, e pelas coleções dos museus. Segundo Flávio de Carvalho, ruínas e coleções possibilitam penetrar nas várias camadas de história que formaram o indivíduo e que, ao serem recuperadas, são capazes de nos ajudar a entender o presente e também o futuro.

O que está em questão aí não é o conhecimento do passado como passado; o passado só interessa enquanto força passível de ser ativada no presente. Há, portanto, uma concepção transversal da história ― concepção esta que também está ativa na antropofagia de Oswald de Andrade. Não esqueçamos que, uma década e meia depois do livro de Flávio, Oswald propunha, em A crise da filosofia messiânica, que se criasse uma Errática, isto é, uma “ciência do vestígio errático”. Em certa medida, é um movimento análogo que buscamos no desenvolvimento do livro. Daí, nosso interesse maior em recuperar certos textos, trabalhos plásticos e até mesmo imagens do entorno daquele ano de 1922.

 

IHU On-Line – Tarsila do Amaral, quando morava em Paris, recebeu de Anita Malfatti uma carta sobre a Semana de Arte Moderna. Ela conta essa história em um vídeo em 1972, por ocasião de uma celebração dos 50 anos da SAM, mas ressalta que perdeu a missiva. Em que sentido o extravio desta carta é uma alegoria que ajuda a explicar os ecos da Semana de Arte Moderna?

 

Eduardo Sterzi – Este episódio foi o ponto de partida do meu texto “A carta perdida: a Semana, sua transmissão e seus extravios”, publicado na edição mais recente da Revista Rosa e que integra o primeiro capítulo de A Semana e o século. Não saberia dizer melhor do que já disse lá:

Podemos ver nesse episódio da perda da carta algo como uma alegoria da própria Semana: afinal, atualmente, a Semana ― nesta fórmula sintética um tanto reificada e hipostasiada (isto é, espetacular) que o tempo lapidou, com a elipse do qualificativo ‘de Arte Moderna’ ― designa não apenas o evento que ocorreu nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, mas a relação entre este evento e a sua transmissão ao longo dos anos posteriores, uma transmissão que, como a alegórica carta perdida, é a um só tempo notícia e extravio, memória e esquecimento, desejo de conhecimento e contingência do não-saber, construção e ruína. Não surpreende, portanto, que a própria Tarsila, nesta mesma ocasião em que conta não ter estado presente no evento, seja saudada pelo seu entrevistador ― sem que nem ela nem ele assinalem o paradoxo ― como ‘musa inspiradora de 22’ e ‘uma das pessoas mais importantes, uma das grandes personalidades da Semana de 22’. Numa outra entrevista realizada por ocasião do cinquentenário da Semana, concedida a Leo Gilson Ribeiro e publicada na revista Veja, Tarsila também relembra o episódio da carta, acrescentando: ‘Embora eu estivesse na Europa, eu acho que participei da Semana de 22 pela carta que a Anita Malfatti me mandou, contando tudo, com todas as minúcias’. Ou seja, para a própria Tarsila, a notícia do evento ― sua transmissão no tempo e no espaço ― teve o dom de alterá-lo a posteriori, conferindo presença a quem lá não estava.

Podemos, por respeito à simetria, concluir que, se isso é plausível, talvez o contrário igualmente tenha se dado ― isto é, a um olhar retrospectivo, alguns dos que estavam presentes, e muitas vezes com destaque, foram se tornando, de pouco em pouco, ausentes. Ou, no caso dos protagonistas evidentes e inegáveis ― um Mário, um Oswald, uma Anita , um Di, um Villa-Lobos ―, se não eles, suas obras é que sofreram, em alguma medida, esse lapso de transmissão: quando recontamos a história da Semana, tendemos a salientar nela aspectos que, muitas vezes, dizem respeito sobretudo a obras que seus autores só produziriam e publicariam depois, ao mesmo tempo que não damos a devida atenção às obras efetivamente ali apresentadas. O Macunaíma e o Manifesto antropófago, as Bachianas brasileiras e, para não perdermos de vista a presença in absentia de Tarsila, o Abaporu são bem posteriores à Semana ― e, quando surgiram, eram mesmo antitéticos, em certa medida, com relação ao que esteve em questão no evento. Porém, tantas vezes, sobretudo na imprensa, são apresentados como representativos da Semana e do ideário supostamente discernível nela. Mais do que apenas censurar ou corrigir quem assimila, retroativamente, tais obras ao modernismo inicial e àquele que seria seu evento de afirmação e divulgação, é preciso compreender os motivos dessa assimilação.

Todo ruído e todo equívoco na transmissão dos fatos da cultura têm valor de sintoma e, portanto, demandam interpretação ― e acabam por ser, para a posteridade, outros fatos dessa mesma transmissão. De um ponto de vista crítico, se a Semana, hoje, é o evento e a sua transmissão, não faz sentido apenas tentar reparar o lapso, para presumivelmente restituir a verdade dos fatos: o próprio lapso é já inseparável da transmissão; e o mais proveitoso talvez seja aprender a se deslocar entre a presença dos ausentes e a ausência dos presentes, esforçando-nos por compreender as razões e, especialmente, os efeitos, de uma e outra. Em suma, recontar hoje a história da Semana é se empenhar em ler aquela carta perdida ― as muitas cartas perdidas ― não apenas na esperança de sua possível reconstituição, mas conscientes da potência extravagante da perda como instância “reconfiguradora”.

 

IHU On-Line – Há na SAM um jogo de ausência-presença que embaralha a própria história do evento. Isto é, há gente que não participou da exposição e palestras – como o caso de Tarsila – que é lembrada como “participante” e outros que participaram, mas foram esquecidos. Como juntar os cacos dessa história para recontar esse evento hoje?

 

Eduardo Sterzi – Antes de tudo, partindo da consciência de que recontar a história passa sempre por juntar cacos, ou seja, é sempre um trabalho de reconstrução, de montagem. Isso não é exclusivo da história da Semana de Arte Moderna ou do modernismo, embora, nesse caso, o caráter de montagem ou remontagem da reconstrução histórica talvez fique ainda mais evidente, ou mesmo se acentue, pela presença de consciência semelhante nos próprios objetos com que estamos trabalhando. O que quero dizer com isso? Que, por exemplo, basta olharmos com alguma atenção livros característicos do modernismo brasileiro, sobretudo aqueles do momento que foi chamado de “primeiro tempo modernista” (ainda que toda primeiridade ou primazia, quando se trata de cultura, seja um tanto enganosa: há sempre um primeiro anterior, e outros ainda anteriores...), para percebermos que eles também ― penso especialmente em Pau-Brasil de Oswald de Andrade ou Macunaíma de Mário de Andrade ― são trabalhos elaborados a partir dos fragmentos da história; e mesmo quando a história, ou seus testemunhos, chegaram àqueles escritores com alguma inteireza, eles mesmos trataram logo de recortá-los, ou mesmo explodi-los, de modo a extrair alguma nova verdade ― e alguma verdade nova ― da falsidade do todo.

É exemplar quanto a isso a primeira seção de Pau-Brasil, intitulada «História do Brasil», em que algumas poucas frases dos primeiros textos produzidos sobre o país ― da carta de Caminha em diante ― são pinçadas e, por meio de uma técnica genial de corte e, digamos, costura, são transformadas em versos. Corte e costura, aliás, que podem parecer práticas restritas ao mundo da moda (mas foi a Semana da Moda de Deauville que, graças à sugestão de Marinette Prado, serviu de modelo para a Semana de Arte Moderna), estão presentes também naquela arte em que os próprios modernistas ― por exemplo, no editorial-manifesto de Klaxon, a revista que publicaram em 1922 ― reconheceram o grande exemplo de renovação técnica para as demais artes: o cinema. O que é a montagem cinematográfica senão uma prática radical de corte e costura?

Em suma, a melhor inspiração para o modo de remontagem da história do modernismo, a partir deste acontecimento mítico, mas também, em alguma medida, profético que foi a Semana, acha-se nas próprias configurações formais mobilizadas ou inventadas pelos modernistas para lidar com a história. É por aí que, acredito, podemos chegar a alguma sintonia trans-histórica sem a qual provavelmente perderíamos de vista o que de mais importante ali ocorreu, isto é, aquilo que, embora tenha ocorrido num momento muito determinado, continuou a ressoar ao longo do século, por razões que esperamos iluminar, pelo menos em parte, no nosso livro.

 

Veronica Stigger – Não teria muito mais a acrescentar ao que disse o Eduardo. Talvez apenas lembrar que, num dos capítulos que desenvolvo, detenho-me justamente numa imagem que evoca a montagem, o fragmento, a construção a partir dos pedaços: refiro-me à capa de Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade, que, por sua vez, sugere a roupa do Arlequim, uma figura que vem atravessando os tempos.

 

IHU On-Line – Quais os significados mais profundos e ricos da capa da primeira edição de Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade, com seus losangos de Arlequim? Como isso ajuda a compreender certas dimensões do modernismo e da SAM?

 

Veronica Stigger – Como disse, a capa da primeira edição de Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade, evoca a roupa do Arlequim, aquela roupa toda feita de losangos coloridos. Originalmente, a roupa desse personagem, que é o mais livre e mais indomável dos personagens da Commedia dell’Arte, era confeccionada a partir de retalhos de tecidos costurados – daí, como também mencionei, ser da ordem do fragmento e da montagem. A figura do Arlequim orienta, em certa medida, a leitura dos poemas de Pauliceia desvairada. Dele, Mário extrai o adjetivo que se repetirá ao longo do livro – arlequinal –, com o qual ele qualifica São Paulo, mas que também funciona quase como uma interjeição, como no poema “Noturno”: “Arlequinal! Arlequinal!”. Numa crônica de 1921, Mário de Andrade deixa claro que, para ele, o Arlequim representa a “audácia vertical” em contraposição à “leve tristura de Pierrot”, seu antagonista. À imagem do Arlequim, Mário associa a loucura, que ele compreende como uma nova forma de expressão. Daí o adjetivo desvairada com que qualifica a Pauliceia no título de seu livro. Um adjetivo que se desdobra em movimento estético, ainda que fictício ou virtual: nas primeiras linhas do “Prefácio Interessantíssimo”, adverte o leitor: “Está fundado o Desvairismo”. Na roupa do Arlequim, os losangos — isto é, a geometrização — são uma forma de ordenação da loucura, sem deixarem de conter, pelo contraste e irregularidade das cores, também eles algo de desvairado.

Minha proposta é tomar a capa de Pauliceia desvairada como uma “imagem dialética” (olhem o Benjamin aí, de novo), que lança luz tanto sobre determinadas obras plásticas anteriores e posteriores à Semana, fazendo surgir diante de nossos olhos uma constelação talvez imprevista, na qual se conectam, em forma de imagem, momentos distintos e até mesmo antitéticos da modernidade brasileira, como o lançamento do traje masculino de verão, concebido e apresentado em 1956 por Flávio de Carvalho, e as obras geométricas exibidas naquele mesmo ano na I Exposição Nacional de Arte Concreta.

 

IHU On-Line – Em que sentido, observando desde a programação do evento, a SAM, em sentido restrito, e o Modernismo, em sentido mais amplo, foram, antes de qualquer afirmação ou consagração de uma ideia coesa sobre o modernismo, um momento de dúvida, procura e de experimentação da renovação artística no Brasil?

 

Eduardo Sterzi – Talvez seja necessário, como ponto de partida, ter clareza quanto a um ponto: o modernismo ― como movimento singular, marcadamente distinto de outras possíveis aproximações ao “moderno”, mas, também, sobretudo, como desejo organizado (isto é, desejo consciente do seu objeto e dos procedimentos para buscar alcançá-lo) ― não preexiste à Semana. É mesmo, pode-se dizer, um dos seus efeitos. Dito de outro modo: mais do que uma manifestação do “movimento modernista”, que já supusesse uma síntese do que fora previamente estabelecido, a Semana foi algo como seu making of, o documentário em tempo real de uma poética em emergência, ainda longe de qualquer consolidação.

Uma evidência anedótica, mas forte disso é que, no recibo de aluguel do Theatro Municipal para a realização da Semana, o evento está registrado como “Semana de Arte Futurista”, e não “de Arte Moderna”. O que pode ser interpretado como evidência de não haver consenso ou clareza, dentro do próprio grupo que promoveu a Semana, quanto à denominação a adotar. Claro que se poderia tomar os dois termos ― moderno e futurista ― como sinônimos (e, de fato, por algum tempo, houve uma sinonímia, ainda que não integral, até porque, como sabemos, nenhuma sinonímia o é); mas equiparar as duas coisas, ainda hoje, só faria sentido se ignorássemos que um dos tópicos recorrentes em artigos e entrevistas dos modernistas, desde muito cedo, foi a afirmação de suas diferenças com relação ao futurismo.

 

Veronica Stigger – Parece-me, aliás, que não se queria chegar a uma ideia coesa e única sobre o que seria a “arte moderna”. Não se queria fechar a questão, mas, pelo contrário, abri-la. E talvez nada seja mais indicativo disso do que o fato de que, ao contrário dos movimentos das vanguardas europeias, a Semana de Arte Moderna não lançou manifesto, texto através do qual os artistas costumam apresentar as balizas da arte que defendem, geralmente contra todas as outras formas de expressão artística. Não houve manifesto na Semana. Houve nos anos subsequentes. É como se a Semana tivesse funcionado como uma abertura de inquérito. O mais importante, como o Eduardo já destacou, foi o encontro, o acontecimento, a abertura ao debate. Nesse sentido, há algo também de experimental nela.

 

IHU On-Line – Há, às vezes, uma leitura demasiadamente crítica – quando não reducionista – da Semana de 1922 por parte de intelectuais e pesquisadores brasileiros. O que explica esse “ranço”? Quais são os imaginários em disputa, no sentido de que “conhecer é imaginar”? (aqui refiro-me, como em outras questões, a este texto)

 

Eduardo Sterzi – Há inúmeras leituras da Semana, muito diversas ― e vale frisar, de início, que as apologéticas podem ser tão equivocadas quanto as “demasiadamente críticas”, até porque, a rigor, falta a umas e outras justamente a crítica. Infelizmente, a demasia, aqui, não é desmesura, alguma forma de hybris que nos fizesse querer ir além, mas, pelo contrário, mesquinharia, o conforto meio ridículo de quem tem certezas sobre o que está falando, quando, muitas vezes, não se deixa sequer afetar pelo que os artistas que estuda realmente dizem ― e, sobretudo, pelo que eles fazem. Ou seja, não falta só crítica, mas falta também, e sobretudo, o que eu chamaria, em sentido etimológico (mas também técnico), de filologia: isto é, aquela atenção verdadeira aos textos e demais objetos produzidos pelos modernistas e em torno a eles, sem a ilusão acomodatícia de que sabemos já, por acúmulo de leituras nossas ou alheias, exatamente qual é o nosso objeto.

Voltar aos textos, sempre; voltar aos quadros, desenhos, esculturas, peças musicais, textos jornalísticos e peças publicitárias, cartazes e programas, mapas (do centro de São Paulo, por exemplo) e plantas (do Theatro Municipal) etc. A humildade do pesquisador, em suma ― que, curiosamente, não é antitética com relação à hybris da formulação de hipóteses inovadoras e da invenção de métodos novos (ou mobilização de métodos esquecidos). É essa combinação de humildade e desmesura que falta a quem, por exemplo, reificando e hipostasiando o conceito de Moderno (e preferindo ignorar que, no Brasil, a própria consolidação deste conceito dependeu da Semana e do grupo que a promoveu), propõe que ele teria se realizado mais plenamente, antes da Semana, em outros lugares e momentos. Falta humildade, porque não retornam aos textos de sua preferência para realmente provar que o Moderno e, mais exatamente, o modernismo já estavam ali em questão, contentando-se, muitas vezes, com vagas sensações e intuições. E falta desmesura, porque parecem não ter a coragem de afirmar a singularidade daquilo que estudam, necessitando da alavanca da Semana para elevar seus objetos de interesse a um novo patamar ― os quais, aliás, muitas vezes não dependeriam de operação semelhante, valendo pelo que valem, tendo feito o que fizeram.

 

IHU On-Line – Como as reivindicações posteriores ao evento, sobre o que seria o “verdadeiro” sentido da SAM (como se isso fosse possível), não raras vezes contraditórias entre si, acabaram criando uma certa indeterminação sobre os significados do modernismo brasileiro?

 

Eduardo Sterzi – Acho que é preciso aqui distinguir entre, digamos, a “boa” indeterminação ― isto é, aquela inerente à crítica que merece este nome, por meio da qual os sentidos e efeitos do acontecimento se multiplicam ― e a “má” indeterminação ― aquela que, por ignorância e ressentimento, deixa de apreender sua singularidade e, portanto, também a sua multiplicidade. A diferença entre uma e outra não está no seu caráter posterior ao evento ― toda leitura é retrospectiva, mesmo um texto ou obra que fosse produzido em tempo real diante dos nossos olhos exigiria um intervalo, ainda que mínimo, para sua percepção e cognição por leitores, espectadores etc. O problema não está, pois, nem na localização a posteriori das reivindicações, nem no seu caráter contraditório. Pelo contrário, sem distância histórica e sem perspectiva dialética é que a Semana pode ser confundida, por algum gaiato (ou mal-intencionado), com uma mera quermesse localizada e provinciana.

 

IHU On-Line – Como e por que a SAM continuou reverberando nas décadas seguintes? Qual a importância de se delimitar com maior rigor quais movimentos são ecos deste evento e quais não são?

 

Eduardo Sterzi – Não acho necessária essa delimitação rigorosa, pelo contrário: cada um sabe o que lhe toca. Mas considero urgente compreendermos (ou pelo menos tentarmos compreender) por que tantos artistas e intelectuais, ao longo deste século que nos separa de 1922 (e que também nos liga a 1922), sentiram necessidade de invocar a Semana como modelo positivo ou negativo; digamos, como totem ou como tabu (e estes, sem a manha antropofágica de converter o tabu em totem). Esse esforço nos levará talvez à compreensão de que, a cada reivindicação diferente, uma nova Semana surgiu, com um novo sentido para o modernismo. O modernismo dos concretistas não é o modernismo dos tropicalistas, que não é o modernismo da geração mimeógrafo, que não é o modernismo do BRock ou dos pintores da chamada Geração 80, que não é o modernismo dos escritores periféricos e dos rappers, que não é o modernismo dos artistas indígenas contemporâneos, que não é o modernismo dos antropólogos, sociólogos, historiadores, filósofos, críticos etc. que tentaram e tentam compreender tudo isso enquanto ia ocorrendo. Mas tudo isso também pode ser a Semana, na medida em que se percebe ou é percebido como um efeito dela ― e se dá a ver como um desdobramento da sua potência.

 

Veronica Stigger – É curioso como a Semana de Arte Moderna começa a ser evocada (para o bem e para o mal) já nos anos seguintes, e menções a ela se tornam ainda mais frequentes nas décadas posteriores. Na inauguração da I Bienal de Artes de São Paulo, em 1951, por exemplo, tanto Francisco Matarazzo Sobrinho, fundador do Museu de Arte Moderna de São Paulo e da Bienal, quanto os políticos ali presentes estabelecem uma relação direta entre a criação da megaexposição e a Semana. Talvez não seja casual que Victor Brecheret, um dos artistas que expôs em 1922 durante o evento no Theatro Municipal, leve o prêmio de escultura nesta primeira Bienal, e que Di Cavalcanti, um dos idealizadores da Semana, tenha ganhado ali uma sala especial.

 

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