05 Dezembro 2020
Há quase nove meses após o início da pandemia no Amazonas, em 13 de março, o Estado ainda registra uma média diária superior a 500 casos de Covid-19, apesar da redução das mortes. Em Manaus, não se vê mais ambulâncias paradas nas portas de hospitais ou aglomerações em áreas de triagem. Cessaram também os relatos de pessoas morrendo sem ar ou por falta de atendimento médico. Mas o controle da situação é apenas aparente. A atual ocupação dos leitos de UTI é de 81,33% na rede pública. Em outubro, quando as pessoas imaginavam que o pior já tinha passado, o hospital público Delphina Aziz voltou a ter lotação total, o que obrigou o governo a ampliar o número de leitos.
A reportagem é de Izabel Santos, publicada por Amazônia Real, 02-12-2020.
Autoridades se apressam em negar uma segunda onda de contágios do novo coronavírus por todo o país. Em alguns estados, como Rio de Janeiro e São Paulo, o número de internações vem aumentando, enquanto em outros, como Roraima e Amapá, é o aumento de mortes que preocupa. Em novembro, 987 pessoas foram hospitalizadas no Amazonas. Até o último dia 30, o Delphina Aziz, única unidade referência no tratamento do novo coronavírus no estado, tinha uma média de 32 leitos para tratamento da doença ocupados todos os dias. O hospital é também o que tem o maior número de leitos de UTIs para a Covid-19.
Os números acumulados nesses quase nove meses indicam o risco de se entrar em uma segunda onda. O Amazonas registrou até essa quarta-feira (2 de dezembro) um total de 179.963 casos confirmados da doença e 4.912 mortes, segundo o Boletim Diário Covid-19 da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM).
A redução do isolamento social tem sido encarado pelas autoridades em saúde como o principal fator para o aumento recente do número de casos. A retomada das atividades sociais como frequentar festas, balneários e participar de aglomerações tem transformado os jovens como vetores de transmissão. No Amazonas, o índice de isolamento social chegou a 60,2% em 19 de abril, caiu para 34% em 8 de setembro e hoje está em 45,6%. Os dados são da plataforma In Loco, que monitora a situação em todo o Brasil.
Aglomeração de passageiros em ônibus em Manaus. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
“Ainda não nos parece adequado afirmar que Manaus viveu uma segunda onda de Covid-19, mas não é uma situação de tranquilidade”, alerta o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenador do Infogripe, Marcelo Gomes. Ele adianta que a Covid-19 permanecerá entre a população por muito tempo, talvez para sempre. Gomes defende que se acompanhe atentamente a tendência da pandemia, se as curvas de contágio estão em crescimento, estabilização ou queda. “É importante que a gente baseie nossas ações sem contar com a vacina.”
O governo do Amazonas, que desde o início da pandemia anunciava medidas para nunca serem integralmente cumpridas, renovou restrições de alguns serviços, mas flexibilizou outras atividades. Na semana passada, autorizou a abertura de flutuantes para restaurantes, espaços de lazer comum na cidade de Manaus que recebem grandes aglomerações em dias de calor.
Países que permitiram a retomada das atividades procuraram, antes, se assegurar de que seria possível haver testagem em massa. No Amazonas, só 10% dos 4,2 milhões de habitantes foram testados para o novo coronavírus.
Até o dia 20 de novembro foram realizados 52.729 RT-PCR e 395.758 testes rápidos em todo o estado. O ideal para se considerar a pandemia sob controle é que o índice de positividade fique abaixo dos 5% e que o número de casos registrados seja quase zero.
De maio à primeira quinzena de agosto, Manaus passou por um período de estabilização de casos e mortes. Porém, qualquer aumento, por menor que seja, gera problemas na rede de atendimento hospitalar. “Isso é muito sério, pois quer dizer que só vamos ter tranquilidade quando atingirmos um número de casos semanais relativamente baixos e em momento algum isso aconteceu. Isso é mais importante do que eventuais classificações de segunda onda ou não”, completou Marcelo Gomes.
A dona de casa Ana Cleide Magalhães Menezes, de 51 anos, contou à reportagem da Amazônia Real que, mesmo tomando todos os cuidados recomendados, perdeu um irmão e o marido para Covid-19. Os dois contraíram o novo coronavírus após a elevação do número de casos da doença que aconteceu no segundo semestre.
O primeiro a morrer foi o seu irmão, Paulo Ferreira Magalhães, de 33 anos. Ele era agricultor no município de Presidente Figueiredo, distante a 107 quilômetros de Manaus, onde vivia em um sítio da família com o pai. No início de setembro, Paulo se envolveu em uma briga e foi hospitalizado com várias fraturas pelo corpo no Pronto Socorro 28 de Agosto, na capital amazonense.
“Meu irmão não teve o atendimento adequado, jogaram ele feito um bicho dentro de uma ambulância e mandaram pra cá (Manaus). Mandaram ele do jeito que estava: todo sujo de lama, sangrando e com os ferimentos expostos. Mas ele estava vivo, logo se recuperou e ficou empilhado em uma enfermaria do 28 à espera de uma cirurgia”, contou Ana Cleide. “Não sei como foi e nem se foi lá, mas ele pegou Covid. Pelo menos é o que diz o atestado de óbito dele”, acrescentou. Paulo morreu em 24 de setembro após ser levado para a UTI depois de passar mal.
Ana disse não se lembrar das datas exatas, mas que depois que o irmão já estava internado sentiu mal-estares. “Tive febre, falta de ar e até cheguei a desmaiar antes de ir ao médico. Não tenho certeza de que foi Covid-19, porque não fiz o teste”, relatou.
Em seguida, foi a vez do marido dela começar a se sentir mal. Em 23 de setembro, Ana levou Lucas Lima Menezes, que tinha 69 anos, para o Serviço de Pronto Atendimento (SPA) do bairro Galiléia. “Depois que chegamos no SPA, em mais ou menos duas horas conseguiram uma vaga no Delphina Aziz, foi bem rápido. Ele foi direto pra sala rosa, porque já estava com 50% dos pulmões comprometidos”, lembrou Ana.
Ana conseguiu ver o marido uma vez por televisita “após muita insistência” do filho mais velho de Lucas. Dias depois, ela receberia uma ligação de que o marido havia sido entubado, mas que não resistiu e morreu. Já instruíram que levasse os documentos para o atestado de óbito. “Eu e meus filhos não tivemos a oportunidade de nos despedir”, desabafou. “Se tivesse a oportunidade de dizer algo às nossas autoridades, diria que elas tratem com mais humanidade os familiares e as pessoas atingidas por essa doença.”
Em torno de 5% dos infectados por Covid-19 apresentam sintomas graves e precisam de internação. Mas a ocupação dos leitos nos hospitais depende do tempo de permanência dos pacientes. “É um leito que fica ocupado por três a quatro semanas, ou seja, não tem alta rotatividade”, avaliou o infectologista e conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado do Amazonas (Cremam), Marcus Vinícius Guerra.
Hospital e Pronto Socorro 28 de Agosto, em Manaus. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
A Secretaria de Estado de Saúde (SES-AM) não revela o tempo de permanência e quantos são os pacientes mais antigos no Delphina Aziz, mas diz que existem pessoas hospitalizadas há mais de 20 dias por causa da doença. Entre o fim de outubro e começo de novembro, o governo estadual revelou que 60% dos pacientes internados no Delphina Aziz permaneciam na unidade devido a sequelas da Covid-19. Por isso, foi criado um ambulatório para o atendimento exclusivo a essas pessoas.
Marcus Vinícius Guerra é um dos fundadores da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado. Especialista no tratamento de pacientes do HIV, ele passou a fazer parte do contingente de profissionais convocados para o front de batalha contra o coronavírus. À Amazônia Real, ele revelou que só viu situação parecida com a atual em 1974, durante a epidemia de meningite que atingiu o Brasil. “Foi uma situação muito grave e só o hospital tropical atendia esses casos. São memórias que não se apagam. Os médicos mais novos nunca viram aquilo”, contou.
O fisioterapeuta Fernando Val foi orientado por Guerra em seu doutorado. Até a Covid-19 chegar a Manaus ele se dedicava à pesquisa e recuperação de pessoas gravemente afetadas por doenças tropicais antes da pandemia. Hoje, trabalha com pacientes com sequelas da Covid-19.
Val explicou que complicações da fase aguda da doença podem aparecer até 45 dias depois da infecção e podem ser de leves a críticas, mas todas precisam de atenção. “Estudos recentes têm mostrado que algumas alterações clínicas e laboratoriais permanecem nessas pessoas após semanas, e até meses, da infecção aguda, mesmo naqueles que tiveram uma infecção com apresentação clínica leve”, explicou.
Uma pesquisa realizada pela Fiocruz Amazônia mostrou que no Amazonas circulam pelo menos oito linhagens do Sars-CoV-2, sendo que quatro delas só são encontradas no estado. A situação evidencia que o novo coronavírus entrou pelo menos oito vezes no estado e por rotas diferentes.
O doutor em Medicina Tropical Wuelton Marcelo Monteiro avalia que essas várias entradas do vírus até junho provocaram uma disseminação rápida da doença e agora se vive um período de estabilização. Mas ele alerta que os amazonenses ainda vão conviver por muito tempo com o novo coronavírus, assim como acontece com as viroses sazonais. “A tendência é que o número de casos e de mortes continue um pouco alto, mas começará a apresentar uma regressão, sem crescimento, até os números começarem a cair pouco a pouco. Talvez não cheguemos ao zero nunca mais, ou apenas após muito tempo. Ainda é cedo para se chegar a essa conclusão”, opinou, depositando suas esperanças na chegada de uma vacina.
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Pandemia segue fora de controle no Amazonas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU