“Um local mágico”. É assim que oceanógrafo Marcos Alaniz Rodrigues define o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, uma fina faixa de terra alagadiça que fica entre o Oceano Atlântico e um mosaico de lagoas no Rio Grande do Sul, na altura dos municípios de Tavares e Mostardas. E não é por menos, mesclando os biomas Pampa e Mata Atlântica, o local é um verdadeiro viveiro natural com abundância em fauna e flora. Não obstante, pesquisadores intitulam o Parque como um grande restaurante para aves migratórias que cruzam o sul do continente americano. Mas, apesar da natureza, a área está longe de ser, na prática, um paraíso, dados os conflitos que existem na região com agricultores, pecuaristas e até mesmo pescadores. “O Parque foi criado por decreto em 1986 e ainda não foi totalmente regulamentado. Isto causa uma brecha jurídica que permite que os proprietários ainda não indenizados possam seguir exercendo suas atividades de pecuária e agricultura”, explica Marcos.
Ele atuou no Parque e recorda que os desafios são os mesmos: combater “a pesca ilegal e o mau uso das terras, como quando eram executadas obras sem o aval do Parque”. Longe de ser um problema novo, observa que “o grande entrave é o processo de indenização e de transferência das terras para a união, o que garante a unidade do Parque, e a sua preservação”.
Enquanto isso não se resolve, as tensões na região são constantes. Recentemente, a notícia de que o Governo Federal quer nomear a agrônoma Maira Santos de Souza para a direção do Parque acirrou a tensão entre ambientalistas e proprietários de terras, pois sua família é uma das proprietárias da região e ela vem atuando nessas fazendas. “Os servidores concursados têm bastante tempo para se familiarizar com estas questões, e acredito que desempenhariam a função com maior eficiência. Dito isto, desejo bom trabalho para a nova gestora, e espero que a nomeada realize um belo trabalho, que prevaleça o espírito da preservação de uma unidade de conservação de grande importância biológica”, pontua o oceanógrafo.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Marcos apresenta o Parque e insiste na importância de regulamentação para preservação da região. “O Parque abriga amostra de ecossistemas importantes para fins de preservação, o que garante um local seguro de interferências externas para que as espécies que residem, ou que utilizam as áreas da Lagoa do Peixe em determinadas épocas do ano, possam realizar seus processos ecológicos”, enfatiza. Ele também demonstra preocupação com a gestão ambiental do Governo Bolsonaro.
“Nossa legislação ambiental é uma conquista muito importante, e deve servir de base para as ações dos governos. Devemos, então, sempre atentar para que a legislação seja cumprida à risca, sob pena de iniciarmos um processo irreversível de perda de direitos ambientais, que são conquistas que não pertencem somente a este momento, mas a todas as gerações futuras”, avalia. Segundo ele, “preservar o meio ambiente deve ser pensado como uma construção coletiva e permanente. Governos vão e vêm, mas o meio ambiente deve ficar”.
Marcos Alaniz Rodrigues (Foto: Arquivo pessoal)
Marcos Alaniz Rodrigues é professor substituto e pesquisador no Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Atuou como bolsista do Projeto Áreas Marinhas e Costeiras Protegidas - GEF Mar, programa do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, no Parque Nacional da Lagoa do Peixe. Biólogo, graduado em Ciências Biológicas, com licenciatura e bacharelado, também é mestre e doutor em Oceanografia pela FURG.
IHU On-Line – Gostaria que iniciasse descrevendo em que consiste o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, a que bioma pertence e que tipos de animais e vegetação se desenvolvem ali.
Marcos Alaniz Rodrigues – O Parque Nacional da Lagoa do Peixe é uma das principais unidades de conservação costeira do sul do Brasil [sua área compreende os municípios de Tavares (80%), Mostardas (17%) e São José do Norte (3%)]. Tem aproximadamente 65.000 hectares. O Parque protege uma variedade de áreas úmidas continentais, estuarinas e marinhas, garantindo a sobrevivência de uma ampla diversidade de espécies de vários grupos de organismos, inclusive de espécies ameaçadas de extinção. Além de aves migratórias (como o maçarico-de-peito-vermelho, maçarico-acanelado, batuíra-de-coleira, batuíra-de-coleira-dupla, batuiruçu), roedores (o ameaçado de extinção tuco-tuco), mamíferos carnívoros (gato-do-mato-grande).
O Parque pertence ao bioma Pampa, mas tem resquícios também do bioma Mata Atlântica. Há centenas de espécies de aves já identificadas para a região (o número exato varia, mas cerca de 180 espécies já foram catalogadas para a área), sendo muitas residentes, e muitas que utilizam o Parque como ponto de parada em suas rotas migratórias.
(Mapa: ICMBio)
IHU On-Line – Qual a importância do Parque para a fauna e flora da região sul do continente?
Marcos Alaniz Rodrigues – O Parque abriga amostra de ecossistemas importantes para fins de preservação, o que garante um local seguro de interferências externas para que as espécies que residem, ou que utilizam as áreas da Lagoa do Peixe em determinadas épocas do ano, possam realizar seus processos ecológicos.
IHU On-Line – Por que o Parque também é importante para o desenvolvimento de espécies migratórias e como um desequilíbrio no ecossistema desse local pode impactar a vida dessas espécies?
Marcos Alaniz Rodrigues – O Parque funciona como ponto de parada para espécies que realizam migrações de longas distâncias como o maçarico-acanelado, que voa anualmente cerca de 10 mil km de distância, entre as Américas do Sul e do Norte. Na Lagoa do Peixe, espécies conseguem energia da grande quantidade de organismos que funcionam quase como um restaurante a céu aberto. Algumas espécies conseguem acumular cerca de 30% de seu peso, para continuar suas viagens de ida e volta.
Maçarico-acanelado é uma das espécies que usam a Lagoa do Peixe como restaurante | Foto: ICMBio
IHU On-Line – O Parque é uma Unidade Nacional de Conservação. Em que consiste essa denominação?
Marcos Alaniz Rodrigues – Segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC, em seu artigo 11, a Lagoa do Peixe se caracteriza como um Parque Nacional, este tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico. Apesar dessas atividades permitidas, o uso extensivo é proibido no local.
IHU On-Line – Como se dá a relação e o manejo do Parque com as populações humanas que vivem na região?
Marcos Alaniz Rodrigues – O Parque foi criado em uma zona que já estava previamente ocupada por populações que viviam no local. Existem proprietários de terras que foram anexadas ao Parque que ainda não foram indenizados, quando da criação do Parque Nacional. Também há pescadores cadastrados para realizar atividades de pesca artesanal. Estes pescadores são cadastrados pelo Parque, e têm permissão específica para desenvolver esta atividade no interior da Unidade.
IHU On-Line – De que forma se dá a pesca na região?
Marcos Alaniz Rodrigues – Como eu disse acima, a pesca permitida no Parque é artesanal e somente os permissionados têm liberação para realizar a atividade, durante a safra do camarão, que vai geralmente de dezembro a abril ou maio, dependendo do ano. A liberação da pesca está a cargo do ICMBio, que realiza medições nos camarões no período que antecede a pesca, para assegurar que a maior parte do camarão seja maior do que 9 cm de comprimento.
Esta medida visa permitir que as populações de camarão-rosa se mantenham, visto que o local é um grande criadouro e fornece larvas de camarão para o estoque adulto no oceano aberto. Os maiores riscos para a preservação são a pesca ilegal e o uso de artes não permitidas, como redes de arrasto e berimbau. Estas artes de pesca são altamente predatórias e também causam impacto no fundo da Lagoa, causando prejuízo inclusive para outras espécies.
(Fonte: Google Maps | Arte: Ricardo Machado - IHU)
IHU On-Line – De que forma podemos compreender os conflitos envolvendo o Parque e as populações da região?
Marcos Alaniz Rodrigues – O Parque foi criado por decreto em 1986 e ainda não foi totalmente regulamentado. Isto causa uma brecha jurídica que permite que os proprietários ainda não indenizados possam seguir exercendo suas atividades de pecuária e agricultura. O direito ao exercício de suas atividades é garantido por lei, então, o grande entrave é o processo de indenização e de transferência das terras para a união, o que garante a unidade do Parque e a sua preservação.
IHU On-Line – Quais as questões de fundo em torno das disputas por terras na região do Parque da Lagoa do Peixe? Por que os ruralistas insistem em manejar terras do Parque?
Marcos Alaniz Rodrigues – Como dito antes, a questão de parte das terras da Lagoa do Peixe ainda não terem sido indenizadas e transferidas para a união, permite que os proprietários sigam exercendo suas atividades no interior da área do Parque. Durante o inverno, o local se torna uma planície inundada, principalmente pelo excesso de chuvas e o fechamento da conexão da Lagoa do Peixe com o Mar. Esta planície inundada tem uma riqueza energética bastante importante, e quando da abertura da barra da Lagoa do Peixe, este local se torna extremamente produtivo, inclusive para engorda de gado.
A conexão da Lagoa com o mar tem sido aberta artificialmente, e esse manejo, conhecido como abertura da barra, ocorre há mais de 150 anos com a finalidade de reduzir o volume de água que inunda os campos adjacentes à Lagoa do Peixe. A abertura artificial da barra permite a entrada de larvas de camarão-rosa e siri-azul, e também a redução da água na planície de inundação que aumenta a área de pastejo para o gado. Os impactos biológicos e ambientais da abertura da barra são pouco estudados com relação à biodiversidade que habita a área do Parque.
O processo de abertura artificial da barra da Lagoa do Peixe tradicionalmente é feito na época da Primavera, época propícia para a entrada das larvas de camarão-rosa e siri-azul, e também onde predominam os ventos de nordeste, que permitem o deságue mais eficiente. A abertura feita antes da época pode causar desequilíbrios biológicos, tanto na fauna de micro-organismos recicladores de matéria orgânica, quanto na flora de macrófitas, essenciais ao equilíbrio da Lagoa do Peixe.
IHU On-Line – Numa perspectiva histórica, como se deu a ocupação por populações humanas na região da Lagoa do Peixe?
Marcos Alaniz Rodrigues – O local em que o Parque foi criado é de grande produtividade tanto de peixes quanto de camarões. As primeiras ocupações datam de muito tempo, fato comprovado pela existência de Sambaquis [Sambaquis ou concheiros são depósitos construídos pelo homem, constituídos por materiais orgânicos e calcários (de origem marinha, terrestre ou de água salobra) que, empilhados ao longo do tempo, vêm sofrendo a ação das intempéries)]. Devido à importância biológica do local, foi criado o Parque para a proteção de amostras destes ecossistemas de fundamental importância.
IHU On-Line – Você atuou junto ao Parque. Como avalia a estrutura na época? Quais eram os maiores desafios para conservação do ambiente?
Marcos Alaniz Rodrigues – Atuei no Parque como pesquisador do Projeto GefMar, financiado pelo Banco Mundial. Juntamente com a equipe do Parque, auxiliei na organização de duas edições do Festival Brasileiro das Aves Migratórias, em 2017 e 2018; pessoas do mundo inteiro vêm para o local para ter a chance de visualizar espécies que raramente veriam em outros locais. Também auxiliei com pesquisas sobre a deriva de materiais na praia, principalmente de plásticos e outros materiais provenientes de embarcações que navegam em águas oceânicas próximas ao Parque. Cabe ressaltar aqui a grande quantidade de material proveniente de embarcações de outros países que foi encontrada durante esses monitoramentos. Também auxiliei no monitoramento de encalhes de animais marinhos, censos e contagem de avistamento de aves, e palestras para a comunidade, com o objetivo de divulgar ações ambientais e do Parque.
A estrutura do Parque na época tinha plenas condições de realizar as atividades de conservação e pesquisa, apoiando projetos de interesse científico e social. O Parque contava com 4 analistas ambientais, 4 servidores terceirizados, 2 pesquisadores e 1 auxiliar de limpeza, além do serviço de vigilância. Os maiores desafios na época eram a pesca ilegal e o mau uso das terras, como quando eram executadas obras sem o aval do Parque.
Espécies raras encontradas na Lagoa do Peixe | Foto: Parque Nacional da Lagoa do Peixe
IHU On-Line – A nomeação da agrônoma Maira Santos de Souza para a chefia do Parque tem gerado revolta de servidores do Parque e de ambientalistas. Que leitura o senhor faz desse episódio? O que representa essa nomeação?
Marcos Alaniz Rodrigues – Não conheço a agrônoma que foi nomeada para a função. Acredito que a chefia de um Parque Nacional, como de outras unidades de conservação previstas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação, deve ser realizada por pessoal capacitado e que tenha conhecimento da função de chefia, a fim de lidar com todas as questões burocráticas que envolvem um órgão federal.
Os servidores concursados têm bastante tempo para se familiarizar com estas questões, e acredito que desempenhariam a função com maior eficiência. Dito isto, desejo bom trabalho para a nova gestora, e espero que a nomeada realize um belo trabalho, que prevaleça o espírito da preservação de uma unidade de conservação de grande importância biológica.
IHU On-Line – Como analisa, a partir da realidade concreta do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, as ações do atual governo no que diz respeito às questões ambientais?
Marcos Alaniz Rodrigues – Vejo com grande preocupação quaisquer movimentos que venham a diminuir proteção ou retirar áreas de preservação. Nossa legislação ambiental é uma conquista muito importante e deve servir de base para as ações dos governos. Devemos, então, sempre atentar para que a legislação seja cumprida à risca, sob pena de iniciarmos um processo irreversível de perda de direitos ambientais, que são conquistas que não pertencem somente a este momento, mas a todas as gerações futuras. Preservar o meio ambiente deve ser pensado como uma construção coletiva e permanente. Governos vão e vêm, mas o meio ambiente deve ficar.
IHU On-Line – Quais imagina serem as consequências da política ambiental que vem sendo empregada pelo atual governo nacional?
Marcos Alaniz Rodrigues – Se mantivermos esse ritmo de aumento de desmatamento na Amazônia (como revelam os dados do Inpe), e enfraquecimento das ações de fiscalização, temo pelo futuro da política ambiental no Brasil.
IHU On-Line – Como associar desenvolvimento econômico e social da região com a preservação do Parque da Lagoa do Peixe?
Marcos Alaniz Rodrigues – Acredito que o fortalecimento do diálogo com os pescadores locais, e mesmo com os proprietários de terra, produtores rurais, só pode melhorar o cenário na Lagoa do Peixe. O local tem um potencial turístico enorme, ainda pouco explorado, e que pode vir a ser uma fonte de renda constante para os moradores da região, interessados em potencializar e fomentar o turismo de observação de aves, turismo regional e de contemplação, que vem crescendo bastante ao redor do mundo nos últimos anos.
Pessoas pagam por experiências, e a experiência do Parque é inesquecível. Qualquer um que tenha consciência ambiental e visite o local vira um defensor do Parque Nacional da Lagoa do Peixe.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Marcos Alaniz Rodrigues – Visitem o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, vocês vão se encantar com suas belezas naturais, é um local mágico.
Nome da Unidade: Parque Nacional da Lagoa do Peixe
Área: 36.721,71 hectares
Diploma Legal de Criação: Dec. nº 93.546 de 06 de novembro de 1986
Coordenação regional: CR9 – Florianópolis/SC
Endereço: Praça Pref. Luis Martins, 30 - Mostardas/RS
CEP: 96.207-000
Telefone: (51) 3673-2435
Acesse o site oficial aqui. Acesse a página do parque no Facebook aqui.