29 Agosto 2014
“Não se pode interpretar diretamente que os suicídios sempre representem mortes relacionadas à depressão na medida em que se estima que cerca de 50% dos suicídios estão relacionados à depressão e o restante a outras causas”, adverte o psiquiatra.
Foto: www.adalagoas.com.br |
Os dados divulgados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde – DATASUS, indicando que o número de mortes relacionadas com depressão cresceu 705% nos últimos 16 anos, reiteram que “a depressão já é considerada um problema de saúde pública em todo o mundo tanto pela frequência com que se manifesta entre as pessoas como pela incapacidade que nelas provoca”, pontua Miguel Roberto Jorge, na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail. Apesar do número de mortes ser surpreendente, o psicanalista esclarece que ainda não há “uma comprovação das causas do aumento de casos de depressão observado nas últimas décadas”.
Segundo ele, “diversos fatores são citados como contribuintes para este aumento, dentre os quais se destacam: o fato de que hoje em dia se fala mais abertamente de doenças mentais, pessoas com depressão procuram mais os serviços de saúde, os profissionais de saúde estão mais atentos para identificar os sintomas da depressão, as pessoas vivem mais estressadas e submetidas a maior competição em grandes centros urbanos, há individualismo, as mulheres estão mais sobrecarregadas por dupla jornada de trabalho (familiar e profissional) e frente a ideais de beleza feminina, há mais abuso de substâncias psicoativas, maior instabilidade política e econômica. Observa-se mais frequentemente a dissociação dos núcleos familiares e menor tempo de convivência entre pais e filhos, menos religiosidade e crença em vida após a morte, e até mesmo o maior consumo de produtos industrializados que podem conter neurotoxinas são suspeitos de se relacionarem com depressão”.
Miguel Roberto Jorge pontua ainda que apesar de a situação em relação às doenças mentais ter melhorado nas últimas décadas, “o estigma” em torno delas “ainda contribui para a dificuldade de acesso das pessoas afetadas aos serviços de saúde. As pessoas ainda se preocupam em não serem tomadas por ‘loucas’”. A depressão está entre as doenças mais estudadas nas últimas décadas pela medicina e pela psiquiatria, na tentativa de encontrar tratamentos mais seguros e eficazes, contudo, “muito progresso foi feito no que diz respeito aos tratamentos, mas o diagnóstico ainda se baseia quase exclusivamente em seus sintomas, com base em critérios confiáveis, mas não validados, e sua etiologia ainda não foi elucidada”, pondera.
Miguel Roberto Jorge é Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, onde formou-se em Medicina e completou a Residência Médica em Psiquiatria. Doutorou-se em Psicofarmacologia pela EPM e cursou pós-doutorado no Western Psychiatric Institute and Clinic da Universidade de Pittsburgh, EUA. É membro do "Panel of Experts" em Psiquiatria, Saúde Mental e Abuso de Substâncias da Organização Mundial da Saúde desde 1994. Ocupou a Diretoria de Relações Internacionais da Associação Médica Brasileira no período 2008-2014.
Foto: www.bv.fapesp.br |
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Segundo dados do Datasus, em 16 anos o número de mortes relacionadas à depressão cresceu 705%. Como o senhor interpreta esse dado e o que ele significa?
Miguel Roberto Jorge - Não se pode interpretar diretamente que os suicídios sempre representem mortes relacionadas à depressão na medida em que se estima que cerca de 50% dos suicídios estão relacionados à depressão e o restante a outras causas. Por exemplo, em termos de doenças mentais, além de depressão grave, estão associados com suicídio o transtorno bipolar, a esquizofrenia, o transtorno de personalidade borderline, a anorexia nervosa, o alcoolismo e o abuso de drogas.
IHU On-Line - É possível vislumbrar as razões do aumento da depressão na população, especialmente nos grandes centros, como o senhor evidencia?
Miguel Roberto Jorge - Não temos ainda uma comprovação das causas do aumento de casos de depressão observado nas últimas décadas. Diversos fatores são citados como contribuintes para este aumento, dentre os quais se destacam: o fato de que hoje em dia se fala mais abertamente de doenças mentais, pessoas com depressão procuram mais os serviços de saúde, os profissionais de saúde estão mais atentos para identificar os sintomas da depressão, as pessoas vivem mais estressadas e submetidas a maior competição em grandes centros urbanos, há individualismo, as mulheres estão mais sobrecarregadas por dupla jornada de trabalho (familiar e profissional) e frente a ideais de beleza feminina, há mais abuso de substâncias psicoativas, maior instabilidade política e econômica. Observa-se mais frequentemente a dissociação dos núcleos familiares e menor tempo de convivência entre pais e filhos, menos religiosidade e crença em vida após a morte, e até mesmo o maior consumo de produtos industrializados que podem conter neurotoxinas são suspeitos de se relacionarem com depressão.
IHU On-Line - O senhor menciona que hoje, como o assunto é mais discutido e há mais procura por parte dos pacientes, é possível diagnosticar mais casos de depressão do que antigamente. Nesse sentido, houve alguma mudança em relação ao diagnóstico feito hoje com o de 16 anos atrás? Trata-se simplesmente de uma maior procura por parte dos pacientes, ou há outras causas relacionadas à depressão e ao diagnóstico da doença?
Miguel Roberto Jorge - Os sintomas de depressão não se modificaram de forma significativa nas últimas décadas, ainda que, hoje em dia, estamos mais capacitados para identificar casos que não sejam típicos. O conhecimento sobre os sintomas, as causas e fatores de risco para a depressão estão mais disseminados não apenas entre os profissionais de saúde, mas também na população em geral, o que contribui enormemente para mais identificação de casos da doença.
IHU On-Line - Como os pacientes lidam com a doença hoje comparando com 16 anos atrás? É mais fácil identificar a doença e procurar ajuda nos dias de hoje, ou de modo geral os pacientes ainda encontram dificuldades para identificar os sintomas e buscarem ajuda médica?
Miguel Roberto Jorge - Ainda que a situação tenha melhorado muito nas últimas décadas, o estigma em relação às doenças mentais ainda contribui para a dificuldade de acesso das pessoas afetadas aos serviços de saúde. As pessoas ainda se preocupam em não serem tomadas por “loucas”.
IHU On-Line - Como é feito o diagnóstico da depressão? Essa doença se confunde com outras, por exemplo, por ter uma série de sintomas parecidos?
"Muito haveria o que falar sobre a relação entre depressão e cultura, mas em síntese há um consenso entre especialistas de que a cultura molda a apresentação dos sintomas"
Miguel Roberto Jorge - O diagnóstico de depressão é realizado fundamentalmente através do reconhecimento dos seus sintomas. Os mais importantes são o humor deprimido e a perda de interesse ou prazer em atividades que anteriormente eram prazerosas para o indivíduo.
Não há necessidade de se apresentar os dois, mas pelo menos um deles é necessário juntamente com alguns outros sintomas acessórios como mudanças no apetite ou no peso, distúrbio do sono, agitação ou lentificação motora, fadiga ou perda de energia, sentimentos de inutilidade ou de culpa, dificuldade de raciocínio, de concentração e em tomar decisões, pensamentos de morte e suicídio ou tentativa de suicídio, estes últimos presentes apenas em casos mais graves de depressão. Há necessidade de os sintomas estarem presentes por pelo menos duas semanas e provocarem uma mudança (para pior) no funcionamento do indivíduo. A existência de uma causa identificada para a depressão — como uma doença física grave ou uma perda importante — deve ser considerada, mas de forma alguma compreender a depressão afasta a necessidade de tratamento.
IHU On-Line - Quais são as respostas da psiquiatria à depressão, que parece ser o mal do século? Como esse tema tem sido tratado na área?
Miguel Roberto Jorge - A depressão, assim como as doenças mentais em geral, tem sido objeto de muito estudo nas últimas décadas, tanto do ponto de vista de se identificarem suas causas como dos tratamentos mais seguros e eficazes. Muito progresso foi feito no que diz respeito aos tratamentos, mas o diagnóstico ainda se baseia quase exclusivamente em seus sintomas, com base em critérios confiáveis, mas não validados, e sua etiologia ainda não foi elucidada.
IHU On-Line - Como a depressão tem sido tratada?
Miguel Roberto Jorge - O tratamento mais eficaz da depressão, cientificamente validado por pesquisas, é aquele que associa a administração de medicamentos antidepressivos com uma abordagem psicossocial, particularmente a psicoterapia.
IHU On-Line - O tratamento da depressão causa dependência química? Nesse sentido, quais são e como o senhor avalia os tratamentos oferecidos hoje em dia? É eficaz utilizar instrumentos padronizados para tratar uma doença como essa?
Miguel Roberto Jorge - Os antidepressivos não são medicamentos que causam dependência química. Em relação ao uso de instrumentos padronizados para diagnosticar a depressão, tais instrumentos sistematizam a pesquisa dos critérios definidos para identificar-se a doença, mas, a meu ver, não suplantam a experiência de um bom clínico ao considerar a presença e relevância dos sintomas apresentados pelos pacientes.
IHU On-Line - É possível estabelecer alguma relação entre o aumento de mortes por depressão e o aumento do suicídio no país que, segundo o Mapa da Violência, aumentou 62,5% entre 1980 e 2012?
Miguel Roberto Jorge - Na medida em que se estima que metade dos suicídios se deve à depressão, o aumento de casos de depressão explica pelo menos parcialmente o aumento observado no número de suicídios.
"Os critérios diagnósticos ora prevalentes em todo o mundo são baseados em padrões ocidentais de comportamento que influenciam a identificação de casos e, consequentemente, a frequência da doença em diferentes populações" |
IHU On-Line - No caso de mortes relacionadas à depressão, os maiores índices estão concentrados em pessoas com mais de 60 anos e depois dos 80 anos, segundo os dados do Datasus. O que essa faixa etária evidencia?
Miguel Roberto Jorge - Antigamente observava-se um pico na frequência de suicídio entre pessoas mais idosas. Nos últimos anos, outro pico se acrescentou na faixa etária correspondente à adolescência. Como a expectativa de vida tem crescido nas últimas décadas, mais pessoas têm se tornado idosas e apresentado doenças próprias desta faixa etária, em geral crônicas e incuráveis, doenças estas que se relacionam com um sentimento de desesperança que podem explicar boa parte dos suicídios observados nesta faixa etária. Já na adolescência, há indícios de que um dos fatores importantes para os suicídios observados relaciona-se ao abuso de drogas.
IHU On-Line - Em que consiste uma análise transcultural da depressão? Nesse sentido, há diferenças nos casos de depressão no Brasil e em outros países do mundo?
Miguel Roberto Jorge - Muito haveria o que falar sobre a relação entre depressão e cultura, mas em síntese há um consenso entre especialistas de que a cultura molda a apresentação dos sintomas — por exemplo, a depressão em populações de países anglo-saxões se manifesta mais através de sintomas de natureza psicológica, enquanto em países latino-americanos e não ocidentais através de sintomas físicos — e que os critérios diagnósticos ora prevalentes em todo o mundo são baseados em padrões ocidentais de comportamento que influenciam a identificação de casos e, consequentemente, a frequência da doença em diferentes populações.
IHU On-Line - A depressão já é entendida como um problema de saúde pública? Nesse sentido, quais os principais desafios para tratar a doença?
Miguel Roberto Jorge - A depressão já é considerada um problema de saúde pública em todo o mundo tanto pela frequência com que se manifesta entre as pessoas como pela incapacidade que nelas provoca.
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“Não há uma comprovação das causas do aumento de casos de depressão observado nas últimas décadas”. Entrevista especial com Miguel Roberto Jorge - Instituto Humanitas Unisinos - IHU