Por: Luciano Gallas | 24 Janeiro 2014
“Para as classes populares, o direito a ter acesso a bens como educação, saúde, habitação confunde-se semanticamente com consumo (compra de uma mercadoria). A inclusão social se dá através da dimensão do consumo”, descreve a antropóloga.
Foto: Nina Ramos/iG Rio |
“O contexto social e econômico desses jovens de periferia realmente aponta para um universo marcado pela escassez de recursos, mas nossa pesquisa mostra que, através do consumo, é possível (na visão desses jovens) inverter essa realidade, pois, ao aflorar abundância e riqueza material, eles fazem do ato de se vestir uma ação que subverte a ordem estabelecida e dada (qual seja, de pobreza e discriminação)”, afirma a antropóloga Lucia Mury Scalco. Ela lembra a frase de um dos garotos ouvidos durante a elaboração da sua pesquisa para exemplificar a análise feita: “Eu não sou o jovem pobre, favelado, sem perspectiva. Eu tô podendo”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a pesquisadora avalia as motivações dos jovens para realizar os chamados rolezinhos, passeios em grupo organizados nos shoppings para fazer compras e experimentar sensações de prestígio e de poder. “Ficou evidente, na etnografia que realizei junto com a colega Rosana Pinheiro-Machado, que a prioridade deles não era meramente vestir-se bem, mas simplesmente existir: ser visto, ser reconhecido e ter prestígio. O interessante é que, ao invés de haver uma contradição entre miséria e ostentação, descobrimos que estávamos diante de duas categorias complementares, em que a segunda era fruto da primeira”, pondera a autora. “A marca da roupa é muito valorizada pelo grupo, contribuindo para o processo de identificação e classificação. Neste sentido, tênis, calça jeans, bonés, roupas e objetos são sinônimos de status e de prestígio”, complementa.
Lucia Mury Scalco é socióloga e antropóloga. Possui mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, quando desenvolveu pesquisas com os títulos "FaLa K É NóIs": etnografia de um projeto de inclusão digital entre jovens de classes populares em Porto Alegre e O Consumo das novas tecnologias pelas classes populares, respectivamente. Atualmente, realiza investigações sobre os temas classes populares, inclusão digital, novas formas de apropriação das informações e do conhecimento, juventude e consumo.
Confira a entrevista.
Lucia Mury Scalco. Foto: arquivo pessoal. |
IHU On-Line – Há especificidades regionais ou há uma identidade comum entre os jovens que participam de rolezinhos nos shoppings em cidades diversas do país?
Lucia Mury Scalco - Acredito que as práticas culturais juvenis combinam elementos do capitalismo global com a cultura local. Naturalmente os jovens do Morro da Cruz, em Porto Alegre, principal local onde desenvolvo minhas pesquisas, são influenciados pelo que o sociólogo Renato Ortiz denominou de mundialização da cultura; nesse sentido, os tênis, bonés e seu vestuário são referências importantes para os jovens. Essas referências, que o autor chamou de “desterritorializadas”, fazem parte de uma nova gramática compartilhada entre todos os jovens do mundo. Porém, esses símbolos e objetos são ressignificados localmente, e o território, o local, também atua como definidor para o pertencimento a um grupo, bem como na construção da sua identidade.
IHU On-Line – Qual sua avaliação sobre as motivações destes jovens para participar dos rolezinhos?
Lucia Mury Scalco - As motivações para os rolezinhos são, além das dimensões de prestígio e de poder, uma clara estratégia para exercer o poder de circular nos shoppings, como normalmente fazem os outros jovens da mesma idade. Ficou evidente, na etnografia que realizei junto com a colega Rosana Pinheiro-Machado, que a prioridade deles não era meramente vestir-se bem, mas simplesmente existir: ser visto, ser reconhecido e ter prestígio. O interessante é que, ao invés de haver uma contradição entre miséria e ostentação, descobrimos que estávamos diante de duas categorias complementares, em que a segunda era fruto da primeira.
IHU On-Line – Os rolezinhos são frequentados apenas pela juventude da periferia? Não haveria a participação também de jovens de classe média?
Lucia Mury Scalco - Acredito que os jovens de classe média também marcam encontros nos shoppings, comemoram o final de semestre, como o vídeo que circula na internet, e a palavra “rolé” é uma gíria usada por muitos jovens, que significa passear, dar uma volta, se divertir. Mas o que tem despertado tanto medo e rancor é, isto sim, os rolezinhos organizados pela juventude da periferia.
IHU On-Line – Se estes jovens usam roupas de marcas e grifes, eles (suas famílias) possuem um certo poder aquisitivo. É possível então identificar estes jovens com grupos integrantes das classes C e D que estão em ascensão econômica?
Lucia Mury Scalco - Sim, acredito que é possível associar esses jovens da periferia como membros das chamadas classes C e D e também relacionar esse aumento de consumo a políticas públicas de distribuição de renda e ao aumento da linha de crédito, cujo efeito mais aparente e imediato é a ampliação do poder de compra. Mas na nossa etnografia encontramos jovens muito pobres, que se encaixariam perfeitamente numa classe D. Ressalto que, para a antropologia, essa classificação quantitativa é pouco representativa, pois adotamos uma perspectiva mais abrangente — a de cultura popular, que não é definida apenas pelo capital econômico (poder de compra ou faixa salarial), mas também pelo capital simbólico e social desse jovem.
IHU On-Line – Sendo assim, até que ponto pode-se afirmar que os rolezinhos são um fenômeno decorrente das políticas públicas de distribuição de renda implementadas no Brasil nos últimos governos?
Lucia Mury Scalco - Não acredito nessa afirmação. Os rolezinhos são frutos da grande desigualdade social que vivemos no país. Eles expressam o desejo dos jovens da periferia de participarem da nossa sociedade, de frequentarem os mesmos lugares e territórios que os demais jovens. O abismo social que vivemos é tão estrutural e arraigado que as classes médias e altas nem o percebem. Acredito que seria uma simplificação ligar o Bolsa Família, por exemplo, que tem o seu valor em torno de 150 reais, com o consumo de marcas por parte dos jovens da periferia. Isso revela claramente o pensamento moralista e conservador que impera na nossa sociedade, que pressupõe que, para os pobres, o consumo é (ou deveria ser) norteado somente pela utilidade, pela necessidade e a sobrevivência. Todo o gasto que foge disso é supérfluo e, consequentemente, irracional. O consumo ostensivo de marcas caras ou as longas prestações no crediário transformam-se, nesta visão, em alternativas incorretas. Não há muitas saídas para o consumidor de classes populares: ele deve apenas alimentar sua prole.
IHU On-Line – O que significa para esses jovens utilizar roupas de marca? Que valores estes jovens apreenderam da sociedade de consumo?
Lucia Mury Scalco - O vestuário tem uma dimensão central para os jovens que pesquisamos, e podemos afirmar que, literalmente, o ser e ter se fundem para esses jovens. Por exemplo, ao questionarmos sobre a importância das roupas e o quanto se paga por elas, um rapaz respondeu: “Custa muito caro, mas vale. É diferente de comida, come e acaba; roupa não. Roupa é importante. Aparência é tudo, mostra quem tu é”; “Tu não é ninguém sem marca — a roupa que tu está usando mostra quem tu é —, na vida se é o que se tem”.
Os valores que eles apreendem da sociedade de consumo é que é preciso “estar na moda” para serem incluídos socialmente, e que vale a pena, sim, realizar grandes sacrifícios para conseguirem esse fim.
Eles acreditam que o consumo material pode transmutar exclusão em inclusão. Sob essa perspectiva, acreditamos que o consumo de roupa de marca pelos jovens da periferia deve ser tratado como uma forma de agência, empoderamento e cidadania.
IHU On-Line – Qual o significado do shopping para estes jovens, tendo em vista que eles poderiam se reunir em praças ou outros locais públicos?
Lucia Mury Scalco - Sempre existiram encontros de jovens em shoppings. Os motivos são muitos: conforto, segurança, praticidade, lazer, praça de alimentação, etc. São lugares centrais para o consumo, e onde acontece a sociabilidade. É muito mais um espaço de encontro, é um lugar simbólico que confere prestígio e que agora, cada vez mais, os jovens das classes populares querem ocupar e usufruir.
IHU On-Line – Nesta linha, o que estes jovens nos revelam sobre os valores e os preceitos de nossa própria sociedade?
Lucia Mury Scalco - Que o consumo é uma categoria central para o entendimento da modernidade e que a Antropologia traz muitas contribuições para o entendimento desse fenômeno, uma vez que dá voz e tenta entender as motivações e lógicas dos sujeitos. Observamos que, para os jovens, a marca da roupa é muito valorizada pelo grupo, contribuindo para o processo de identificação e classificação.
Neste sentido, tênis, calça jeans, bonés, roupas e objetos são sinônimos de status e de prestígio. Especificamente sobre consumo popular, a Antropologia do Consumo contribui chamando a atenção para a dimensão simbólica presente no ato da compra, refutando a visão simplista do pensamento puramente economicista, onde a escassez, a necessidade e a lógica da sobrevivência seriam categorias para explicar o consumo dessa parcela da população brasileira, em que a necessidade é a variável explicativa da demanda.
Portanto, ao nos depararmos com jovens que vestem marcas originais literalmente dos pés à cabeça, mas cujas famílias muitas vezes passam fome, há uma tendência reducionista de classificar esse ato como irracional e supérfluo. Porém, como atestam as etnografias e a teoria antropológica, sabemos que as dimensões simbólicas do consumo se sobrepõem às práticas, na medida em que um símbolo socialmente valorizado é tão vital para a existência humana quanto o alimento. Finalizando, para as classes populares, o direito a ter acesso a bens como educação, saúde, habitação confunde-se semanticamente com consumo (compra de uma mercadoria). A inclusão social se dá através da dimensão do consumo.
IHU On-Line – Participar de um rolezinho no shopping tem algum caráter de enfrentamento, de ocupação, ou possui mais este desejo de ser incluído na sociedade?
Lucia Mury Scalco - Acho perigosas as generalizações sem um aprofundamento etnográfico, mas pelo que acompanhei acredito que sim, existe um caráter de enfrentamento e de ocupação, talvez ainda impulsionado pelas manifestações do ano passado. Mas, paradoxalmente, não é um movimento de protesto contra os shoppings, contra o consumo, e sim uma adesão a essas práticas.
IHU On-Line – Estes jovens, como de resto a nossa sociedade como um todo, carecem de uma formação política consolidada. Este fato pode favorecer sua manipulação com fins partidário-eleitorais?
Lucia Mury Scalco - Acredito que não exista esse risco, pois o nosso sistema político tradicional (partidário-eleitoral) está tão em crise que não possui representatividade e legitimidade para esses jovens. Não penso que haja espaço para algum tipo de manipulação e não concordo com a avaliação feita de que os jovens não têm uma formação política consolidada. É uma ampla discussão, porém somente esse distanciamento que vivemos com as classes políticas já é um posicionamento e um recado para a classe política: “vocês não nos representam”.
IHU On-Line – É possível conceber uma relação entre o comportamento dos jovens que querem ter acesso aos bens de consumo e o comportamento das elites que almejam compartilhar os hábitos de consumo europeus e estadunidenses? Este comportamento de viés consumista não é observado em todas as camadas sociais?
Lucia Mury Scalco - Sim, com certeza o consumo é uma categoria central para o entendimento da modernidade, como eu disse antes. Consumo existe em todas as classes sociais, e especificamente os jovens da periferia não podem ser reduzidos a meros consumistas desenfreados, eles não podem ser vistos somente pela lente econômica, que sempre põe em relevo as suas penúrias e carências. Não é só reprodução. Existe agência, protagonismo e escolhas. O consumo entre esses jovens é um ato que negocia custo—benefício, razões práticas e simbólicas, dinheiro e amor, efemeridade e duração.
IHU On-Line – Vivemos a sociedade da exclusão, que mede o valor da pessoa pelas suas posses e trata com autoritarismo, violência e preconceito aqueles que não geram riqueza econômica. Ao querer fazer parte desta lógica, estes jovens não são contrários à transformação social?
Lucia Mury Scalco - Acredito que o movimento é paradoxal e foge um pouco daquelas velhas dicotomias com as quais estamos acostumados a refletir a realidade. Não é um movimento de protesto tradicional, de revolta e crítica, é de adesão, de inclusão. Mas a novidade está em que agora mais incisivamente procuram e reivindicam espaço e direitos.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
Lucia Mury Scalco - O contexto social e econômico desses jovens de periferia realmente aponta para um universo marcado pela escassez de recursos, mas nossa pesquisa mostra que, através do consumo, é possível (na visão desses jovens) inverter essa realidade, pois, ao aflorar abundância e riqueza material, eles fazem do ato de se vestir uma ação que subverte a ordem estabelecida e dada (qual seja, de pobreza e discriminação). Termino com uma frase de um dos meninos com o qual conversamos: “Eu não sou o jovem pobre, favelado, sem perspectiva. Eu tô podendo”.
(Por Luciano Gallas)
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“Eu não sou o jovem pobre, favelado, sem perspectiva. Eu tô podendo”. Entrevista especial com Lucia Mury Scalco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU