17 Janeiro 2014
"O que realmente agride, o choque de gosto, hoje, é ocupar de maneira organizada e organizar-se para ocupar: a capacidade de gerar sentidos sem passar pelas mediações da grande imprensa, do mercado de consumo ou da esquerda convencional, escreve Bruno Cava, escritor, em artigo publicado no blog Quadrados Loucos, 15-01-2014.
Segundo ele, "não é verdade que predomine o desejo de adaptação, que predomine a lógica do “pequeno branco” ou do “mestiço comportado”. A periferia se testemunha enquanto tal, sem hesitar em usar o funk e apropriar-se da esfera do consumo, como um manifesto pela própria existência e senso coletivo".
Eis o artigo.
A ideia do “shopping lotadão” não é nova. Em agosto de 2000, para protestar contra o apartheid social, um grupo de favelados fez uma visita surpresa ao shopping Rio Sul, um dos mais frequentados pelos moradores dos bairros nobres da cidade. O rolê foi narrado sete anos mais tarde no documentário Hiato, em que são usadas filmagens do evento e depoimentos colhidos posteriormente.
Surpreende que as reprovações mais escandalizadas não tenham partido de playboys e patricinhas da zona sul, mas dos próprios funcionários, vendedores e seguranças do shopping. Nesse documentário, embora a distância social entre rolezeiros e funcionários não seja grande, talvez minúscula, a simples existência dessa distância — trabalhadores que, de modo postiço, tentam imitar os gestos e a cosmética da classe dominante a quem servem x os pobres que, sem maquiagem, se afirmam como tais — parecia consistir num signo irrenunciável de orgulho e status, convertido em desdém contra quem estaria imediatamente “embaixo” na pirâmide.
É o fenômeno do “pequeno branco”, aquele pobre que se compraz em invocar alguma origem europeia e forjar laços de identidade, apenas para diferenciar-se da “negrada” — ou então o “mestiço” que se julga superior, um negro que se constrói menos negro, como gesto discreto de adaptação à sociedade brancocêntrica. O racismo, afinal, é modulado em vários níveis e proporções, e o fascismo não se ordena de outra forma que não por uma escadinha de preconceitos, onde o andar superior se contenta em desaguar suas frustrações pisando no de baixo, até o final da escala (pode ser o judeu, o imigrante árabe, o negro, o indígena).
Hoje, com a democratização das redes sociais e o generalizado empoderamento que as jornadas de junho escandiram, os rolês ganharam escala e se tornaram um grande problema. Nas últimas semanas, os rolezinhos tomaram o noticiário nacional e começaram a proliferar. Passando a problematizar não só as contradições do capitalismo no Brasil, com todos seus micro e macroapartheids, como também o contexto de ascensão da classe sem nome, dita “nova classe média” ou “Classe C”, dessa classe selvagem, rude e pagã que tanto incomoda os formuladores do gosto, do bom tom e da “consciência de classe”.
Algo mudou entre 2000 e 2014, entre a invasão brancaleônica do Rio Sul e os rolezinhos funkeiros. O que mudou foi a sociedade. Entre 2000 e 2014, teve o lulismo: a possibilidade de milhões de pessoas conquistarem alguma renda, acesso a consumo e perspectiva de futuro. Em 2000, a distância entre os clientes e os favelados era um abismo intransponível. Na época, a resistência favelada se dava, diretamente, oferecendo os próprios corpos desdentados, semianalfabetos e mal-vestidos, como gesto anticolonial de denúncia. Em 2014, o que aparece são corpos talhados com roupas de marca, cordões e relógios dourados, alegremente cantando funk.
Em Hiato, os pobres levam pão com mortadela para conseguir almoçar na praça de alimentação. Hoje, os jovens ocupam o Mac Donald´s. Entram nas lojas e não apenas apalpam a mercadoria: compram. E se porventura forem desdenhados por clientes mais ricos ou pelos funcionários, hoje não tenho dúvida usariam da mesma linguagem do consumo para desdenhar de volta. “Pagar de favela” não é a mesma coisa do que antigamente. Nessa década e meia, a periferia e a favela já foram reconhecidas, em alguma medida, como usinas de criação e tendência — cobiçadas para além da mera condição de mercado consumidor e de trabalho barato.
O fato é que a polícia não tem protocolo para lidar com a nova situação. Confusa diante de uma composição social nova, segue a cartilha histórica: na dúvida, reviste os negros. Negros com poder de consumo, até pouco tempo atrás, era sinônimo de traficante. Quem não lembra da cena de Tropa de elite quando capitão Nascimento decide torturar um adolescente da favela porque tinha tênis de marca em casa? (lamentavelmente, a narrativa fílmica, logo em seguida, confirma esse nexo). O negro consumidor era criminalizado duas vezes.
A grande mídia corporativa tampouco sabe o que fazer. A tentativa de rotular “arrastão” nos rolezinhos foi desmentida pela ação rápida das redes sociais e mídias alternativas. A imprensa precisa cuidar para que o próprio racismo não saia do armário. O que ela quer mesmo é colocar Mandela na coleira para passeá-lo como cachorrinho de sua boa consciência.
O que agride a ordem não é o fato de ocupar shoppings. Isso a classe sem nome já vem fazendo, também em restaurantes, aeroportos, pet shops, salões de beleza e charmosas cidades in da Europa ou Estados Unidos. O que realmente agride, o choque de gosto, hoje, é ocupar de maneira organizada e organizar-se para ocupar: a capacidade de gerar sentidos sem passar pelas mediações da grande imprensa, do mercado de consumo ou da esquerda convencional. Não é verdade que predomine o desejo de adaptação, que predomine a lógica do “pequeno branco” ou do “mestiço comportado”. A periferia se testemunha enquanto tal, sem hesitar em usar o funk e apropriar-se da esfera do consumo, como um manifesto pela própria existência e senso coletivo.
Acusados todavia de despolitização, por meramente desejar zoar, consumir, ostentar e pegar alguns(as) meninos(as), juntos em grandes ocupações os jovens acabam politizando tudo. Quem pode dizer o que eles realmente querem, reduzindo a multiplicidade de possibilidades à reafirmação de um óbvio interessado? A obviedade de que nada nunca mude sob o sol? A histeria repressiva da polícia, do shopping e da grande imprensa apenas reforça o caráter político da coisa toda. Inspiram a resistência, convocam alianças e provocam a articulação de contranarrativas.
Não é caso de romantizar os pobres (romantizar porra nenhuma aliás) e, mais realista do que o rei, enxergar “consciência de classe” onde só haveria alienação e autoafirmação adolescente. Mas não se pode negar, por outro lado, que algo está fora da caixa, que um processo novo, potente, e com possíveis desdobramentos políticos, está em curso.
No terreno comum, e tão confuso, onde a linguagem da opressão e da libertação se misturam, no limiar em que perdemos os referenciais e precisamos nos reorientar — o rolezinho é mesmo um ato de força. Banhados de marca, mas também da pele, da voz, do vigor da música. Quando confinados por todo tipo de rótulo, preconceito e desdém pela alteridade, é um evento assim que estimula a continuar lutando e disputando por afetos e territórios.
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Pra onde vão os rolezinhos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU