17 Janeiro 2007
A última edição de 2006 da revista da IHU On-Line procurou, através de diversos depoimentos, responder o título desta entrevista: Por quê ser cristão hoje?
Uma das vozes ouvidas foi o ministro Patrus Ananias, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e à Miséria. Ele respondeu as questões que seguem por e-mail para a IHU On-Line.
IHU On-Line - Por que ainda ser cristão hoje? Quais as razões de ainda ser cristão numa sociedade permeada pela técnica e pela ciência, além da secularização que é característica da pós-modernidade?
Patrus Ananias - Não só minha formação religiosa, mas também toda minha formação política tem uma referência fundamental na figura do Cristo, de Jesus de Nazaré, esse personagem que me fascina. Percebo em sua figura uma perfeita coerência entre o que ele pregou e o que ele viveu. Palavra e vida, palavra e ação se integravam de maneira harmoniosa e muito forte. É também uma forte referência sua capacidade de unir a dimensão da vida pública com o recolhimento e o silêncio. É um notável exemplo, esse de conciliar o lado prático da vida, o convívio com o público e a ação com um valioso cuidado com a reflexão, meditação e contemplação. Ele também nos legou a dimensão da profunda indignação diante da impunidade, das injustiças; mas ao mesmo tempo, muito terno e isso fica muito claro na sua relação com as mulheres, com as crianças, com os pobres, com as pessoas com deficiência, com os excluídos de sua época. Também está claro em sua relação com pessoas ricas (Nicodemos, José de Arimatéia, Zaqueu, cobradores de impostos) com as quais certamente ele não concordaria em muitos aspectos e procedimentos e alguns, como Mateus, levou à conversão.
"Jesus vem marcando presença"
Por esses princípios, por essas qualidades, Jesus vem marcando presença através dos tempos de tal modo que o cristianismo se enraizou e é sempre um fator de inquietação, é um fermento no mundo. Uma presença que ultrapassa os tempos, se revigora e alimenta muitas mudanças no mundo. Mesmo quando a igreja católica e, posteriormente, as igrejas cristãs não católicas andaram em desacordo com os melhores desafios e possibilidades da modernidade como a emergência das idéias e procedimentos democráticos, dos direitos humanos; mesmo quando a tradição cristã abençoou a escravidão, o genocídio contra povos e culturas indígenas, o colonialismo ainda hoje tão forte, o pecado do eurocentrismo, a presença do Cristo inspirou muitas pessoas e movimentos que deram importantes contribuições para revigorar o cristianismo.
Até uma obra laica como a História Geral da Civilização, organizada por Maurice Crouzet, resgata neste período pós-renascentista a contribuição anônima de religiosos e leigos que discretamente mantiveram vivos os grandes ideais do cristianismo. Foram períodos marcados pelo que podemos chamar de um certo encolhimento do melhor da tradição cristã, principalmente no centro da igreja católica, intimidada com as novas descobertas científicas, tecnológicas e mesmo com os novos pensamentos e concepções filosóficas. Ainda assim, a mensagem de Jesus continuou fecundando o mundo por meio do testemunho de muitos cristãos que continuaram praticando sua pregação através dos tempos.
Esses movimentos possibilitaram a retomada dos grandes valores cristãos no século XIX. Mesmo sem fazer o debate teórico, fizeram a caridade e retomaram o diálogo com a democracia, a liberdade e os direitos humanos: Lacordaire, Frederico Ozanan, a encíclica de Leão XIII, Rerum Novarum, Jacques Maritain, no século XX A presença de Jesus na História se dá também através e a partir das pessoas, entidades, movimentos e espaços que testemunham fundamentalmente essa dimensão dele, como, por exemplo a pessoa singular de João XXIII, bispos como Dom Hélder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom José Maria Pires, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Fragoso, Dom Estevão Cardoso de Avelar, além de religiosos, leigos, vicentinos, comunidades eclesiais de base, grupos de fé e política, agentes pastorais e tantos outros. Assim, foi o exemplo da prática do Cristo que fez a igreja evoluir.
Valores
Meu cristianismo é muito isso e penso que aí reside boa parte da importância de reviver ainda hoje os valores cristãos. O Evangelho é um elemento fundante na minha vida e creio que de muitos que procuram compreender a palavra do Cristo. Isso é por seu mistério, mas também pela prática. Jesus deixou um código de ética possibilitador, que vemos no Sermão da Montanha, na história do Bom Samaritano, no capítulo 25 de São Mateus – "eu tive fome e de deste de comer" –, na parábola do filho pródigo. Jesus promoveu um corte na cultura da humanidade e instituiu uma nova ética, profundamente comprometida com a vida, com a dignidade, com o combate à exclusão. Ele inverte a tradição porque manda amar os inimigos.
Exemplo de Jesus
O exemplo de Jesus prossegue sempre se renovando. O Evangelho não é um texto acabado, pronto, está sempre aberto a novas leituras, em função das novas realidades que se colocam. Na medida em que compreendemos mais sobre nós mesmos, quanto mais abrimos os horizontes na possibilidade do conhecimento, mais a compreensão da figura do Cristo e do Evangelho ganham novas exegeses.
Presença de Jesus
Por isso é tão forte a presença de Jesus. Primeiro pela dimensão mística, pela dimensão da fé. Jesus se insere na tradição mais espiritual do ser humano, ninguém falou de Deus com tanta intimidade. Mas, além disso, se torna forte por sua dimensão concreta. É perfeitamente possível ser cristão sem ser um crente, ser cristão a partir da adesão de valores éticos, sociais, políticos, culturais e civilitatórios do Evangelho e da tradição cristã. Lembremos do ilustre alemão Alberto Schweitzer, médico, filósofo, teólogo e musicista que, ao perder a fé transformou o Cristo numa referência fundamental para ele e partiu para cuidar dos pobres e doentes da África.
IHU On-Line - Por que acreditar em Jesus?
Patrus Ananias - Acreditar em Jesus por sua presença definidora na história. Ele dividiu a história; é uma pessoa que atravessa os tempos, servindo de inspiração de pessoas e grupos e movimentos. Uma personalidade absolutamente singular, que desperta o bem nas pessoas das mais diversas crenças. Podemos resgatar Gandhi, para ilustrar essa sua característica, quando ele diz: "gosto do Cristo, mas não gosto dos cristãos porque não se parecem com o Cristo". É valioso o exemplo de Gandhi especialmente por sua dimensão ecumênica: fazia três orações por dia, uma na tradição do budismo, do hinduismo, tradições religiosas da Índia, do Oriente, outra na tradição do islã e outra, na do cristianismo. Entretanto, em Roma, não foi recebido pelo Papa e, ao ver a imagem de Jesus, chorou copiosamente. A presença de Jesus se manifesta por si mesma. No mundo atual, mesmo nas contradições, seu exemplo desperta referências, esperanças.
Teologia
Preciso ponderar que não sou um teólogo, embora leia e estude teologia e tenha bons mestres na área, como o padre João Batista Libânio, Leonardo e Clodovis Boff, Comblin, exegetas bíblicos como Carlos Mesters, Johan Konings. Minha religiosidade é uma experiência interior, de fé, que herdei dos antepassados, que herdei, nos estudos da bíblia; mas é uma experiência muito centrada na pessoa do Cristo, do Evangelho e com toda adesão ao mistério da santíssima trindade. Sempre tive uma fé mais para fora, comprometida, engajada. E penso que a Igreja, para comunicar-se com o jovens de hoje deve apresentar sobretudo a figura de Jesus homem. É por meio do contato de Jesus homem e Evangelho que as pessoas vão encontrar o mistério. No convívio com o homem, com a perfeita coerência entre ação e palavra, é que descobrem que há algo mais. Penso que o discurso hoje já começa pelo fim. Já começa apresentado aos jovens um Jesus deificado. Não o que viveu aquele processo que converteu os apóstolos e levou à experiência da ressurreição. "Humano assim, só Deus mesmo", é a frase de um teólogo que se tornou referência para todos os cristãos. Apresentamos Jesus descontextualizado historicamente, quando o traço forte da tradição cristã reside nessa historicidade. Se Deus desceu à terra, o homem também se elevou à condição de Deus pelas virtudes mais profundas da condição humana; se elevou à condição de Deus pelo amor, pela compaixão, pela solidariedade, pela disponibilidade. Acredito que é a partir desse exemplo, desse conhecimento, que vamos nos confrontar com o mistério.
IHU On-Line - Em que medida os valores do cristianismo nos ajudam a conviver melhor com os outros seres humanos, com os animais e com a natureza? Como as lições de Jesus contribuem para compreenderemos melhor a sociedade em que vivemos?
Patrus Ananias - Aí é que está realmente a força civilizatória, que aponta para o mistério, para Deus. A dimensão da convivência solidária, fraterna, dialogante. Jesus nos apresenta de forma muito vigorosa a questão do outro. Por isso o cristianismo torna-se universal. Aponta para os excluídos numa perspectiva de inclusão nacional e mundial, cósmica. A questão do outro, do pobre do retirante, é muito forte em Jesus. Também é muito forte a relação dele com a natureza, expressa nos seus momentos de recolhimento para reflexões e orações. São Francisco recuperou de maneira vigorosa essa dimensão ambiental. Em suas pregações, Jesus recorria a imagens muito ligadas à natureza, como o semeador, os pássaros. Jesus era um homem muito atento a si mesmo. Muito atento ao outro e muito atento à natureza. Observava as pessoas. Lembramos quando comentou a esmola dada por uma mulher pobre dizendo que era a maior de todas as esmolas porque não foi tirada do supérfluo. Nessa linha, mora o atemporal, o permanente da figura do Cristo. As características e princípios fundamentais do cristianismo nos permitem alcançar a compreensão mais elevada e possibilitadora da humanidade.
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Por que ainda ser cristão hoje? Entrevista especial com Patrus Ananias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU