31 Dezembro 2023
"Aqui os refugiados são eternamente refugiados, estão aqui desde 1948: justamente porque para o Egito não quiseram ir. Porque em cada família, de geração em geração, transmitiram a esperança e o seu símbolo, a chave de retorno às casas de onde foram expulsos já durante a Nakba. Primeiro de outros refugiados: os judeus da Europa que não os queria, depois da guerra", afirma Roberta De Monticelli, professora de Filosofia na Universidade San Raffaele, Milão, em artigo publicado por il manifesto, 24-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma família de refugiados, em Belém, no Natal. Talvez isso lhes lembre algo. Mas aqui tudo é mais feroz e irracional do que nos tempos de Herodes e dos romanos quando, de acordo com o evangelho de Mateus, José "levantou-se, tomou o menino e sua mãe e foi à noite para o Egito", para escapar do massacre dos inocentes.
Aqui os refugiados são eternamente refugiados, estão aqui desde 1948: justamente porque para o Egito não quiseram ir. Porque em cada família, de geração em geração, transmitiram a esperança e o seu símbolo, a chave de retorno às casas de onde foram expulsos já durante a Nakba. Primeiro de outros refugiados: os judeus da Europa que não os queria, depois da guerra.
Depois, gradualmente ao longo das décadas, e maciçamente após os acordos de Oslo (1993-95), por qualquer um do mundo da diáspora judaica que quisesse mudar-se para os assentamentos coloniais cada vez mais enormes construídos pelas empresas de construção israelenses com o apoio econômico e militar do Estado de Israel, que têm os nomes de Deus para o marketing imobiliário, a ocupação e os muros para a feroz normalidade das usurpações.
Aqui está, a família de Belém. Aquela de Munther Amira, que acabaram de prender. Com violência, como sempre. Uma irrupção na sua casa, no campo de refugiados de Aida, perto de Belém, às três da manhã. E bateram nele, enquanto trancavam sua esposa e filhos em um quarto.
E o arrastaram para a rua, amarrado e vendado.
Mas primeiro esfaquearam a camiseta de um de seus filhos adolescentes, para rasgar o mapa da Palestina que estava impresso nela. No fragmento do vídeo que alguém conseguiu filmar e divulgar, ouve-se a voz da filha pequena, límpida. Ela grita para seu pai que o ama.
Nada mais.
Precisamente de Munther, presidente do Centro para a Juventude de Aida, ativista do Comitê de Coordenação Luta Popular (resistentes não violentos), aprenderam essas coisas muitos italianos que ao longo dos anos fizeram uma “viagem de conhecimento” à Palestina, por exemplo com a AssopacePalestina.
É ele quem acolhia os visitantes sob o arco que dá acesso ao campo, encimado pela grande chave que ele próprio havia forjado: “Para que ninguém se esqueça da promessa de retornar”, explicava. Lembro-me vividamente dele, enquanto ele ilustrava o muro com os nomes das 600 crianças trucidadas em Gaza, de um total de 2.600 vítimas civis, em 2014. Havia na sua voz e no seu olhar uma melancolia cuja luz me impressionava. Na época só entendi sua substância trágica: falava da “armadilha” que havia sido a transformação das pobres tendas de 1948, primeiro em abrigos com telhado de zinco, depois em casas de concreto, amontoadas uma em cima da outra – mas algumas até bonitas, dizia ele. Só havia sobrado isso para a sua gente: a dignidade de refugiados e o sonho “legal” do retorno. No entanto, eram tantos os trabalhadores palestinos que ganhavam a vida e um pouco de bem-estar construindo as casas dos colonos – e sua aniquilação civil. Precisamente por essa razão Munther forjara a grande chave, para que o sonho não fosse esquecido.
Mas a substância dos sonhos não é diferente daquela das ideias, como paz e justiça. E não é diferente daquela do espírito, que sopra onde quer e não onde estão os seus templos. Eis aqui um aspecto do apocalipse, a "revelação", hoje em curso em Gaza. Raniero La Valle o vislumbrou: se Israel é o “estado-nação do povo judeu”, então “para os palestinos não há lugar, exceto como privados dos direitos e subjugados, e como isso não é indefinidamente possível, devem ser expulsos, induzidos ou forçados a ir embora. A guerra de Gaza é um momento de realização política, isto é, efetiva, desse modelo jurídico" (Costituenteterra.it, 21 de dezembro).
Isso era o não dito nos olhos de Munther. Agora vejo que era mais que melancolia. Aquele homem nobre era literalmente crucificado no paradoxo de um sonho eternizado no concreto – e esvaziado de espírito profético. Mas o que é o espírito senão a transvaloração da substância trágica?
E por que o Nazareno, chamado a ler uma passagem do profeta Isaías (Lucas 4,18-19), corta-a onde o anúncio da libertação dos oprimidos, que inaugura o “ano da graça”, torna-se o anúncio da “vingança de Deus”?
Em 1950, a Assembleia Geral da ONU aprovou a resolução 377, "Unindo para a Paz", segundo a qual, se o Conselho de Segurança não for capaz de manter a paz e a segurança internacional, poderia ser a Assembleia Geral a assumir um papel de suplência e a intervir. É claro que só o Conselho de Segurança pode impor “obrigações jurídicas”. Mas dá para ver: as obrigações jurídicas não significam nada se as potências que decidem as anulam com seus vetos. Em vez disso, em nome da "unidade pela paz", a enorme maioria dos Estados que votaram a favor do cessar-fogo (e retirariam ao Estado judeu a autoridade exclusiva na gestão do futuro) dariam às ideias de paz e justiça a força da legitimidade. Como um coro imenso, uma polifonia que devolveria voz ao espírito, hoje áfono.
Havia luz e não apenas melancolia no olhar de Munther Amira. Agora que os capangas de Herodes Antipas o acorrentaram, talvez eu veja o significado daquela luz, onde o desespero se transvalorava em esperança – sonho, lei, espírito. Só nos resta orar, cada um à sua maneira.
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O sonho eternizado na chave do retorno. Artigo de Robeta De Monticelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU