26 Dezembro 2023
"Aqui está uma lição que poderíamos tirar do mito cristão do nascimento de Jesus: A vida humana se torna cheia de alegria não quando atinge um ideal (impossível) de felicidade, mas quando faz tudo o que pode. Não tanto com a força de vontade, com o fortalecimento da própria determinação, com a disciplina do comportamento, mas no acolhimento do próprio mistério da vida contida no nascimento, em viver plenamente o nosso ser entregue à vida", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano, em artigo publicado por La Repubblica, 24-12-2023.
O Natal celebra a festa do nascimento de Jesus, do Deus que se faz homem, que mergulha na vida quebrada que é a nossa vida, a vida de todos os seres humanos.
A mensagem cristã não é, de fato, o de abandonar esta vida para alcançar outra vida, uma vida que ele nunca conheceria nem nascimento nem morte, uma vida atemporal, perfeitamente realizada, eterna, removida do inferno de este mundo. Pelo contrário, é continuar a nascer nesta vida, nascer de novo, de nunca deixar de nascer.
Trata-se de abraçar plenamente o desafio da vida, da sua insegurança, da sua carência, da uma vida espedaçada. Isto é o que Freud não entende quando reduz a vida cristã a uma vida que gostaria de escapar da dureza do mundo, para uma vida que se protege da turbulência da vida graças ao escudo oferecido por Deus, muito pelo contrário: desde o seu nascimento o ser humano encontra a sua vulnerabilidade e sua insuficiência. A vida cristã não é uma vida assegurada, protegida e garantida, mas vida que experimenta o abandono, a perda, a perplexidade.
O homem de fé não é poupado, não é subjugado por um instinto de segurança, não tende a escapar da dureza da vida, mas ele sempre se vê lançado, como Paulo sublinhou vigorosamente, na "estreiteza", na “perseguição”, na “fome”, na “nudez”, no “perigo” (Rm 8, 35). No caso de nascimento de Jesus, o divino se rebaixa e se esvazia de todo poder sobrenatural para se tornar homem. É a humildade do estábulo, da palha, da manjedoura, do hálito dos animais que aquece a criança que veio do céu. É o desenraizamento de uma vida que não tem casa, nem alojamento, nem residência, nem títulos, nem poder. Até parece
a divisão que atravessa a criatura humana descrita pela Torá que foi aqui radicalmente assumida.
Sendo imagem e semelhança de Deus, encarnando o esplendor da criação e, ao mesmo tempo, ser pó destinado a voltar ao pó. A vida afirma-se na sua força nua e, ao mesmo tempo, em sua fragilidade igualmente nua.
É isso que sempre nos surpreende no espetáculo do nascimento. Acontece com um gatinho, com uma flor ou para uma criança. Luz e poeira parecem comprimidas em um único espasmo. Nascer novamente, continuamos a nascer, não apesar, mas precisamente porque a nossa vida é feita de pó e é destinado a voltar ao pó. No caso do nascimento, a verdade da vida manifesta-se como vontade de viver. Por esta razão, Sartre acreditava, paradoxalmente, que se deve optar por nascer para realmente nascer. Isso significa que o evento de vida que nasce não pode ser cumprido como um simples acontecimento da natureza, mas exige um ato singular de adesão à vida.
Se o Deus cristão nasce como qualquer ser humano, se o seu lar não for mais aquele glorioso no céu, mas o muito humilde de uma caverna remota em Belém, sinaliza que o acontecimento da vida é em si, onde quer que aconteça, um acontecimento alegre. Porém, se conseguirmos não confundir a alegria com o ideal de felicidade, sobre a qual, neste caso com razão, Freud dedicou palavras definitivas reconhecendo que parece completamente estranho ao programa da criação.
Se de fato a busca pela felicidade como uma vida harmoniosa, um estado de ser que exclui carência e dor, sofrimento e a inquietação parece ser uma verdadeira ilusão religiosa, pois a vida humana é sempre vida frágil, a alegria é uma possibilidade que não está fechada para nós.
Por esta razão Deleuze para definir a alegria certa vez propôs um exemplo aparentemente contra-intuitivo. Vamos imaginar um moribundo, sem esperança de recuperação, exausto em sua cama de hospital. E imaginemos que em determinado momento um raio de luz o ilumina. Eis, comenta o filósofo, o que é a alegria. A alegria nada mais é do que esse encontro com um raio de luz inesperado.
Este homem não está, naquele momento, comprimido pela dor, dedicado à oração, empenhado em fazer o balanço da sua vida de. Em vez disso, ele pode experimentar plenamente a simples alegria de um raio de luz.
Naquele momento ele faz tudo que pode. Ele ainda nasce, mesmo que apenas por um momento.
Aqui está uma lição que poderíamos tirar do mito cristão do nascimento de Jesus: A vida humana se torna cheia de alegria não quando atinge um ideal (impossível) de felicidade, mas quando faz tudo o que pode. Não tanto com a força de vontade, com o fortalecimento da própria determinação, com a disciplina do comportamento, mas no acolhimento do próprio mistério da vida contida no nascimento, em viver plenamente o nosso ser entregue à vida.
O moribundo não consegue recuperar as forças dos seus vinte anos, não consegue libertar-se da doença, mas pode entregar-se a esse raio de luz que ainda o surpreende. Cada vez que alguém nasce para a vida é como se fôssemos tocados por aquela luz. No caso de cada nascimento, a vida se mostra somente a si mesma, não se refere a nada além de sua força e sua fragilidade. Cada vez que algo nasce lá a verdade da vida se mostra para além de qualquer conhecimento erudito da verdade. Não há verdade nenhuma sem que uma vida nasça.
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O nascimento de Jesus é o desafio da vida. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU