O sabor da vida: o canto das coisas. Artigo de Faustino Teixeira

Foto: Captura de tela | "Sabor da Vida" (2015)

25 Outubro 2023

"Toda a obra de Naomi Kawase expressa a preocupação de criar vínculos, num trabalho minucioso e atento para interrogar o puro presente e as entranhas do real. Ela não deixa escapar o que é efêmero e contingente, numa dinâmica que traduz de forma bela o gesto de acariciar a imagem", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

No percurso realizado até agora no Filmes em Perspectiva é a primeira vez que nos deparamos com a diretora japonesa Naomi Kawase (1969). As imagens de seus filmes ficam densificadas na memória em razão de tanta beleza e delicadeza que acompanham os seus trabalhos. Ela foi responsável por filmes singulares como O bosque do luto (2007), que ficou consagrado com o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes; O segredo das águas (2014); Vision (2018); e Esplendor (2018).

Não há muitas referências sobre a biografia de Naomi Kawase. O que se sabe é que seu pai biológico abandonou a família e ela foi criada pelos tios-avós. Num de seus Documentários, Céu, vento, fogo e água (2001), ela presta homenagem póstuma a seu pai, num filme marcado por imagens enigmáticas e preciosas. Em seu trajeto de vida ocorreu também a perda de um irmão e de um filho. A sua cidade de origem, Nara, é cenário de muitos de seus trabalhos, ocupando um lugar de destaque no seu olhar sobre o mundo. Com sua delicadeza peculiar, ela passeia em vários trabalhos pelos pequenos vilarejos que circundam sua cidade natal, que chegou a ser capital do Japão antigo, entre 710 e 794, e que em 2010 comemorou 1300 anos [1].

A paixão da diretora pelo cinema a acompanha desde jovem, quando aos 18 anos saiu com sua câmera de 8 mm para realizar o seu primeiro trabalho. Dotada de sensibilidade particular, sua atenção voltava-se para diversas coisas, que ganhavam brilho particular com o seu olhar, de modo muito particular a água, o corpo e a casa [2]. Há muita chuva nos filmes da diretora. As sensações dos expectadores são tocadas pelo ritmo do tempo, sobretudo nos momentos em que  “o vento, as cores e os cheiros ficam mais fortes e perceptíveis, enquanto todo o restante da natureza parece se calar a espera do inevitável” [3]. Seus trabalhos guardam um toque autobiográfico bem específico.

A diretora Naomi Kawase. (Foto: Wikimedia Commons)

Em notas da própria diretora, ela sublinha que seus filmes situam-se na fronteira entre documentário e ficção. A vida, com todos os seus delineamentos, brota com singeleza em seu olhar atento. Como ela disse:

A vida é uma série de aventuras milagrosas desconhecidas. Enquanto vivermos, sempre continuaremos encontrando tantos elementos e emoções da vida; adversidade, dificuldades, alegria, felicidade etc. Encontramos todos esses elementos simplesmente porque estamos vivendo nossas vidas de milagre. O que desejo é expor e expressar esses sentimentos e elementos fundamentais da vida por meio da mágica do cinema” [4].

O cinema de Naomi Kawase é pontuado pelo toque da sensibilidade. Há em seu olhar uma generosidade única, que aborda temas de fronteira como o nascimento e a morte, exemplificados nos filmes Nascimento/Maternidade (2006), quando filma o próprio parto, ou na Carta de uma cerejeira amarela em flor (2002), onde aborda os últimos meses do fotógrafo, crítico e editor de fotografia, Kasuo Nishi, com singular sensibilidade. O seu cinema está todo tomado pelo clima de seu entorno, na atenção ao ciclo da vida. Não há como entender a sua obra, destacando essa singularidade. São interesses “atravessados pela intensidade da presença física das pessoas no seu dia a dia, assim como por uma atmosfera de cumplicidade entre elas, que nos remete aos sentidos profundos da vida, mas também à sua dimensão física, cotidiana, banal” [5].

Em carta da pensadora e mística Simone Weil ao amigo Joe Bousquet, de 13 de abril de 1942, ela sublinhou que “a atenção é a forma mais rara e mais pura da generosidade” [6]. É o que vemos no trabalho de Naomi Kawase. Para utilizar uma expressão do filósofo Ortega y Gasset, para que se possa ver a dor, é necessário interromper o fluxo da doença e se converter num vidente [7]. Há um “xamanismo da intimidade” no  cinema de Kawase, uma atenção especial à feminilidade, como se pode observar nos contrastes que estão presentes no seu olhar, que se debruça tanto sobre aquela que gera vida como na anciã nonagenária, que vive o desgaste de sua corporalidade no filme Nascimento/Maternidade [8].

Toda a obra de Naomi Kawase expressa a preocupação de criar vínculos, num trabalho minucioso e atento para interrogar o puro presente e as entranhas do real. Ela não deixa escapar o que é efêmero e contingente, numa dinâmica que traduz de forma bela o gesto de acariciar a imagem. Seus filmes não se prendem às convenções ou à lógica do mercado. É pura delicadeza. Há o cuidado em retratar as transformações e perdas, com um vínculo singular com o tempo.

A diretora “se preocupa muito com uma relação de proximidade participativa que a câmera estabelece com aquilo que é filmado – pessoas, objetos, natureza” [9]. São filmes que tratam do “eu, agora, aqui”, com o foco na intensidade das experiências. A diretora sublinha que seus filmes têm como traço o “reencontro com o passado”, como em Caracol (1994), que desperta e provoca um coração atento. São trabalhos atravessados pelo ciclo vital, pontuando ausências, partidas, morte, perda e luto. Em seu trabalho de atenção ao cotidiano, com repetidas inserções no espaço doméstico, a diretora busca “colecionar durações” e captar com vitalidade as emoções da vida. São filmes com marcada dimensão contemplativa.

Kavase faculta ao expectador atender aos sentidos mais profundos da vida, mesmo quando defrontado com a experiência da morte, como no filme Carta de uma cerejeira amarela em flor. Responde  com destreza de artista a filmagem da “morte para fazer um elogio à delicadeza da vida – e à delicadeza da vida no tempo” [10].

Voltando-nos agora ao objeto da reflexão, que é o filme O sabor da vida, de 2015, vemos a diretora retomar os grandes temas de suas reflexões. O título original do filme é An, que é a tradução de uma pasta de feijão azuki adocicada e muito saborosa para os japoneses. Trata-se de uma produção japonesa, francesa e alemã, dirigida por Naomi Kawase e roteiro da própria diretora e Tetsuya Akikawa. Na base da produção está também o romance de Durian Sukegawa, que tem o mesmo título do filme, An, e que inspirou o roteiro. Toda a sensibilidade da diretora volta-se aqui para três personagens complexos, com atores experientes e consagrados no Japão, para retratar três gerações unidas pela solidão. O filme foi classificado na seleção oficial Un certain regard do festival de Cannes e recebeu o prêmio de melhor ficção internacional da 39ª Mostra de Cinema de São Paulo (Prêmio do Público).

Como sublinha Fabio Belik, em resenha sobre o filme publicada em janeiro de 2012,

Eis aqui um filme delicado e ao mesmo tempo denso, realizado com sensibilidade artística e notável expressão lírica. Trata-se de cinema maduro, que nos traz uma história emocionante, mas sem perseguir as cenas lacrimejantes – embora em certos momentos o encontro com nossas próprias emoções torne o choro inevitável. É construído com uma simplicidade narrativa comovente, como se nos oferecesse uma sucessão de haicais. É realizado com virtuosismo no trato das imagens e dos sons – o universo sonoro, aliás é um espetáculo à parte! Enfim, é um filme sobre o qual só consigo derramar elogios” [11].

Somos desde o início tocados pela maravilhosa e delicada trilha sonora e paisagens únicas de cerejeiras em flor, favorecendo um exemplar cenário para o desdobramento do roteiro.

O filme coloca-se na trilha de outros grandes trabalhos que tiveram como tema a comida, dentre os quais destacam-se A festa de Babete  (1987), Chocolate (2000) e Simplesmente Marta (2001). No elenco de O sabor da Vida temos Kirin Kiki, no papel de Tokue, Masatoshi Nagase, no papel de Sentaro e Kyara Uchida, interpretando a adolescente Wakana.

São, como vimos, três gerações unidas pela solidão. A história dos laços que se tecem entre os três é feita com grande cuidado e singeleza, que despertam o carinho do expectador logo no início da película. Estamos no âmbito de uma cidade grande, com o movimento apressado de seus carros e trens, com as pessoas que circulam na busca de êxito e realização, e ao mesmo tempo, as imagens das cerejeiras que balançam ao vento no ritmo das estações e o sabor delicado dos feijões sendo cozidos e irradiando pelos ângulos da cidade sabores que são intensos e desejados. Há um virtuosismo peculiar no trato das imagens e dos sons. Na fotografia destaca-se a atuação brilhante de Akiyama Shigeki.

A narrativa é simples e comovente, já com o destaque no início para o contraste entre o barulho do mundo e o ritmo cotidiano do trabalho quase artesanal de Sentaro em sua pequena loja onde prepara o tradicional dorayaki, que é feito com a pasta de feijão azuki [12]. O rapaz de cerca quarenta anos trabalha ali cotidianamente, mas tem os olhos tristes, marcados pelas dificuldades do passado. As imagens captam no início do filme os seus pés cansados, arrastando-se no terraço de sua casa para fumar sozinho, antes de começar a tarefa cotidiana em sua lojinha. No âmago de seu ser o que há é um vazio que não se explica, e ele vive sua rotina quase que indiferente ao movimento da vizinhança.

Em torno à sua loja, cuja proprietária é uma arrogante japonesa, circulam as crianças das escolas da redondeza, e entre elas, Wakana, uma adolescente também solitária. O silêncio da jovem contrasta com o rumor de outros jovens das redondezas, que são efusivos e brincalhões. Ela carrega consigo as marcas de uma vida difícil, e um relacionamento complexo e doloroso com sua mãe. Para a sua companhia tem apenas um canário, Marvy, que a anima com seus belos trinados. Wakana frequenta a loja de Sentaro e demonstra interesse em atuar ali contribuindo para a feitura dos dorayaki. O silêncio de Wakana é também revelador de seu mundo interior, e manifesta sua presença solitária, com breves saudações e agradecimentos.

Tudo começa a se transformar quando entra em cena uma senhora japonesa, Tokue, que mora num asilo para pessoas que sofrem ou sofreram com a hanseníase. Há que recordar que no Japão, até meados de 1996, havia uma lei de prevenção à hanseníase que isolava os doentes em asilos distantes, mesmo depois de curados, como era o caso de Tokue.

Tokue buscava preencher os seus dias com passeios pelos parques e redondezas, e sua alegria era nítida ao ver as belezas da vegetação, das flores e árvores. Na primavera, então, seu coração vibrava de alegria com o florescimento das cerejeiras. E foi justamente uma delas, aliada ao aroma do dorayaki, que a fez aproximar-se da loja onde trabalhava Sentaro. Atraída por um anúncio de emprego na porta, ela aproximou-se delicadamente manifestando o seu interesse em trabalhar ali. Tinha uma grande familiaridade com os dorayaki desde seus tempos de jovem, e sua vontade era a de abrir uma loja parecida com aquela. Vinha de uma experiência de 50 anos com o preparo dos feijões. Em razão dos reveses da hanseníase, nos tempos da adolescência, tinha as mãos defeituosas. Apesar do empecilho expressou para o rapaz a vontade de trabalhar ali.

A frágil senhora oferece seu serviço, mas em razão da idade vem sutilmente rejeitada por Sentaro. A seu ver, seria um trabalho muito pesado para alguém de 76 anos de idade. Com seu jeito simples, Tokue insiste em seu pedido. Não vendo reação positiva ela retira-se da loja para a sequência de sua caminhada, mas pede antes ao “chefe” para pensar com carinho na ideia. Despede-se também da grande cerejeira florida que ornamenta a paisagem ao redor. A jovem Wakana, que acompanhou a cena, manifestou a Sentaro sua vontade de trabalhar ali como ajudante.

Não ficando satisfeita com a solução, Tokue retorna posteriormente à loja e deixa para Sentaro uma amostra de seu tradicional molho para a feitura do dorayaki. Da primeira vez que esteve na loja, ela fora presenteada com um dorayaki, e agora pôde relatar o que achou da iguaria. Sublinhou para o rapaz que a massa estava muito boa, mas a pasta de feijão podia estar melhor. O rapaz não deu tanta atenção, mas aceitou um potinho com o molho que ela deixou para ele. Ao final do expediente ele olha o frasco com o recheio, sem tanta animação, mas depois experimenta-o. Com grande surpresa percebe que havia ali um algo de muito especial.

Quando ela retorna, vem finalmente aceita para o trabalho e os dois passam a colaborar mutuamente. Todas a minúcias envolvidas no preparo da iguaria são passados para Sentaro, num trabalho cuidadoso que se inicia antes mesmo do raiar do “Senhor sol”, exigindo uma “paciente escuta e apreciação”.  Em sua resenha sobre o filme, Isabela Boscov relata uma linda cena dos dois preparando juntos a iguaria:

A cena em que eles preparam junto a pasta de feijão pela primeira vez é um belíssimo exemplo de como, geração após geração, os cineastas japoneses consolidam sua imensa tradição visual: o preparo da pasta toma horas a fio, inclui uma dezena de etapas e exige certas delicadezas que Sentaro nunca imaginara existir – e Naomi Kawase encena essa longa sequência quase como uma coreografia em que Sentaro e Tokue ora trocam de lugar seguidas vezes na cozinha minúscula, ora nada têm a fazer senão esperar. As mudanças na luz (eles começam antes do amanhecer) correspondem às mudanças na aparência dos feijões e na postura dos dois personagens (que estão cada vez mais cansados).  É quase como ver uma partitura virar música: ao final, essa atividade toda se transmuta em um instante de deleite, quando eles experimentam a pasta pronta e suspiram.” [13]

Tokue, com seu jeito singelo e sua alegria infantil, passa a contagiar o ambiente com festa e maravilhamento. Era de fato alguém muito feliz, apesar das dificuldades que viveu no passado. Sua marca particular era o dom do olhar, sempre encantador, bem como o seu dom para o humor. Tudo para ela era motivo de admiração, sobretudo o canto das coisas e a beleza da natureza. Era um encanto que igualmente se derramava sobre o preparo do feijão. A pequena cozinha da loja ganha nova vida com sua presença, que também contagia Sentaro e Wakana. Cria-se um lindo laço de afetividade entre os três. Tokue dizia que tudo que ocorria no mundo tinha uma história para contar.

Para prejudicar a alegria da festa e do laço que unia os três personagens do filme, o passado de Tokue acabou sendo divulgado para os que frequentavam a loja, por um deslize de Wakana, que comentou o fato com sua mãe e a partir daí outros ficaram sabendo. O grande movimento da loja com a chegada de Tokue acabou se arrefecendo. O preconceito com a hanseníase afetou o andamento das coisas, chegando aos ouvidos da proprietária da loja, que aconselha Sentaro a despedí-la. Sem que isso precisasse ocorrer, ela mesma se deu conta da situação e se afastou do trabalho. Enviou depois uma linda carta a Sentaro agradecendo sua acolhida. Ali ela dizia:

"Querido chefe, como vão as coisas na loja? Temo que seu espírito esteja abalado. Quando estava preparando a pasta de feijão, eu sempre ficava escutando as histórias que os feijões contavam. É uma forma de imaginar os dias de chuva e de sol pelos quais eles passaram. Imaginar a brisa que passou por eles, ouvir a história das jornadas deles. Isso mesmo. Escute-as. Acredito que tudo neste mundo tem uma história para contar. Até mesmo o brilho do sol e o vento podem ter histórias que você pode ouvir. Talvez esta seja a razão.” [14]

Ainda na carta enviada para seu “chefe”, Tokue sinaliza que alguns buscam viver a vida de forma irrepreensível, e são às  vezes surpreendidos pela ignorância do mundo. E continua:

Há momentos nos quais precisamos usar da nossa esperteza. Eu devia ter falado com você sobre isso. Tenho certeza que algum dia você criará sua loja de dorayaki que representará a sua visão. Tenha convicção se seguir o seu próprio caminho. Sei que pode fazer isso, chefe”.

O trabalho de Sentaro segue agora com a ajuda de Wakana. A rotina vem, porém, rompida com uma decisão da proprietária da loja em favorecer o seu sobrinho, atribuindo-lhe uma tarefa específica no local, que passa por obras para os novos desafios previstos por ela para a loja. Tudo isso é motivo de abatimento e contrariedade de Sentaro, que cada vez mais vem tomado pelo desânimo em levar adiante o trabalho. Ele e Wakana programam uma visita ao asilo onde habita a amiga Tokue. Os dois partem juntos e localizam finalmente a área de isolamento onde habitava a amiga, depois de uma longa viagem de metrô e a travessia bucólica de uma pequena floresta.

Foto: Captura de tela | "Sabor da Vida" (2015)

Os três solitários se reencontram com afeto e alegria: “Os laços de cuidado e afeto, até então discretos, evidenciam-se: uma mãe sem seu filho, um filho sem sua mãe e uma criança sem cuidados, assim estavam Tokue, Sentaro e Wakada antes de ouvirem juntos os feijões azuki” [15]. Com os laços de amizade firmados, Sentaro decide revelar a Tokue em carta as razões que motivaram o seu silêncio diante do mundo hostil. Ele também tinha ficado afastado da sociedade por razões diversas. Ficara preso por três anos em razão de uma intervenção sua para conter uma briga, e acabou sendo envolvido. Durante a prisão, sua mãe falecera sem que ele pudesse mais ouvir suas histórias. O tempo desde então se fechou para ele, e agora, com Tokue, uma nesga de esperança se abrira.

Com as novas mudanças operadas pela proprietária na antiga loja, Sentaro desanima de continua o trabalho. Ele e Wakana decidem fazer nova visita à amiga no asilo, e são surpreendidos com a notícia de sua morte por uma amiga, Yoshiko, que morava junto com ela. Os dois ficam sabendo que Tokue tinha legado a Sentaro seus preciosos instrumentos de trabalho, que foram delicadamente separados para ele. A amiga do asilo leva os dois para o local onde as cinzas da amiga tinham sido lançadas. Ali crescia delicadamente uma árvore de cerejeira.

Na rica resenha feita por Edyleine Severiano, encontramos a síntese mais precisa da beleza contida nesse filme de exemplar singularidade:

Kawase, assim, oferece ao espectador uma reflexão sobre as relações familiares e a natureza, e como essas entrelaçam-se pelas falas e auscultas, lembrando que todos têm algo a oferecer, não importando a idade. Não há seres descartáveis, o que deve ser isolado é o medo do diferente. Mais do que os feijões, Tokue dedicava-se a ouvir o mundo, a ouvir o som, a voz, as narrativas que as pequenas coisas têm para contar, as minúcias daquilo que compõe o cotidiano. Impedida de ouvir seus entes queridos, restou a Tokue aprender a ouvir a natureza, os sentidos e os sentimentos que essa expressa, inclusive os alimentos. A natureza, então, é o que passa a atá-la ao mundo. Kawase dá forma a uma pequena família, cujos membros conseguem conectar-se a partir da escuta da natureza. Tokue que aprendera a ouvir o mundo, como mãe e avó, dedica-se a ensinar essa escuta motivadora da presença, do estar, da agência no mundo, da fala. Sentaro encontra a voz perdida de uma mãe a acolher seu filho e prepará-lo para o mundo e Wakana, que não conseguia ser ouvida pela mãe, recebe de Tokue e Sentaro o incentivo para encarar a vida. Desse modo, ela lega aos dois o aprendizado de ouvirem as vozes do mundo, da natureza, para que assim, ecoem e falem” [16].

Ao final do filme, deparamo-nos com uma nova realidade. Os dois amigos seguem agora sua vida com disposição e alegria, depois de reencantados com o exemplo de vida de Tokue. Wakana continua então seus estudos e Sentaro retoma seu trabalho agora de forma individual e autônoma, vendendo seus dorayaki com liberdade e disposição. E a vida segue a contar suas histórias.

Notas

[1] Para um olhar geral sobre os filmes de Naomi Kavase, aconselho o livro de vários autores, organizado pelo Centro Cultural Banco do Brasil: O cinema de Naomi Kawase. Rio de Janeiro: CCBB RJ, 2011.

[2] VVAA. O cinema de Naomi Kawase, p. 9 e 12 (Artigo de Carla Maia e Patrícia Mourão: Água corpo casa Kawase).

[3] Ibidem, p. 9.

[4] Ibidem, p. 17.

[5] Ibidem, p. 203 (Artigo de João Dumas. Luz e sombra sobre os olhos).

[6] Simone Weil & Joë Bousquet. Corrispondenza. Milano: SE SRL, 1994, p. 13.

[7] Apud VVAA. O cinema de Naomi Kawase, p. 99.

[8] VVAA. O cinema de Naomi Kawase, p. 110-112 (Artigo de Luiz Miranda. Dar à luz. Naomi Kawase).

[9] Ibidem, p. 181 (Artigo de Keiji Kunigami. Naomi Kawase e o presente).

[10] Ibidem, p. 204 (Artigo de João Dumas. Luz e sombra sobre os olhos).

[11] Disponível no link (acesso em 22/10/2023).

[12] São mini-panquecas recheadas de pasta de feijão adocicado.

[13] Disponível no link (acesso em 21/10/2023).

[14] Texto do roteiro do filme.

[15] Edyleine Daniel Severiano. An – O sabor da vida: tudo neste mundo tem algo a nos contar, basta que estejamos dispostos a ouvir: disponível no link (acesso em 21/10/2023).

[16] Ibidem.

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