30 Junho 2023
Em 18-10-2019, um protesto popular sem precedentes rompe as costuras de um país, o Chile. O descontentamento generalizado corrige o plano do próprio sistema neoliberal e não é uma reprovação desta ou daquela lei. Em 04-09-2022, a proposta constitucional endossada pela Assembleia Constituinte, impulsionada pela revolta, é rejeitada em referendo. Durante esses três anos, o Chile deu esperanças ao mundo. O filósofo Pierre Dardot (Paris, 1952) viveu esses momentos de perto. Agora, ele reflete em seu livro La memoria del futuro: Chile 2019-2022 (Gedisa) sobre o que aconteceu, por que o entusiasmo levou ao fracasso. Pode-se falar de fracasso? Ele mesmo conta.
A entrevista é de Esther Peñas, publicada por Ctxt, 29-06-2023. A tradução é do Cepat.
O título do seu ensaio lembra o de uma escritora mexicana, Elena Garro, casada com Octavio Paz. Com esse texto, ela inicia uma revolução estilística e narrativa que ficou conhecida como realismo mágico. Você propõe uma revolução contra o neoliberalismo. Garro tinha a linguagem como arma. Que armas são necessárias para ser um revolucionário antineoliberal?
Não há referência ao realismo mágico nesta revolução, há uma referência muito precisa, “a memória do futuro”, um emblema das feministas chilenas, uma expressão de quem foi porta-voz da Comissão Feminista 8 de Março, uma expressão que é uma tomada de posição e de atitude política que consiste em não cair na dualidade esquerda-direita, essa falsa dicotomia entre a esquerda progressista e a direita conservadora. É uma afirmação que contém a vontade de se distanciar de uma certa tradição política que te prende a ser um progressista acrítico, porque se você critica algo, como um defeito, você defende a direita.
Este fenômeno não é apenas latino-americano, mas o vemos em muitos países, inclusive na Espanha. Se um governo progressista não apoia o feminismo, não pode ser criticado? Tomo como exemplo o Peru, onde há muito tempo acontecem coisas importantes, como a Assembleia Constituinte. Pedro Castillo era um progressista, mas também defendia ideias reacionárias, como as relacionadas à homossexualidade, convergentes com a direita.
A ideia de “memória do futuro” é interessante porque não se casa em bloco com a política de um governo, seja qual for o lado ideológico. Interessa-me este giro que consiste em rejeitar o culto do progresso pelo progresso, de que tanto gostam os governos progressistas. Você tem que seguir uma lógica contracorrente, analisar as coisas uma a uma e também como um todo.
Poderíamos então dizer que as armas para lutar contra o neoliberalismo seriam uma certa atitude de desconfiança e rejeição ao progresso...
Sim. Não desconfiança em relação ao progresso, mas desconfiança em relação ao culto do progresso. O importante é nos definirmos hoje tendo como referência as tarefas a serem realizadas no futuro próximo. Temos que discutir e lutar por essas tarefas que nos propomos; não são algo que remeta ao sentido da história.
O Chile foi o berço do neoliberalismo, liderado por Friedman, e o campo de testes para o que Naomi Klein mais tarde chamaria de “doutrina do choque”. Após as revoltas de 2019, Gabriel Boric foi eleito presidente de esquerda, que promoveu os trabalhos da Convenção Constituinte. Sua constituição foi uma das mais avançadas e democráticas até hoje. Deve-se seu fracasso à capacidade de pressão da direita ou à falta de articulação da esquerda?
Deve-se a ambos, com destaque para a desarticulação da esquerda; é verdade que a pressão da mídia foi muito forte e violenta desde o início, desde 4 de julho de 2021, logo após o início da criação da Comissão de Especialistas para a redação da nova Constituição. Isso é indiscutível. São os mesmos métodos que Bolsonaro e Trump usaram.
Mas nem tudo se explica pelos defeitos de comunicação da esquerda ou pelo assédio da mídia. A direita brandiu um discurso hábil, minucioso, detalhado, mas isso não é motivo para não assumir as próprias responsabilidades, que são diversas. Há uma responsabilidade do governo, que no fundo teve um compromisso muito fraco com a Constituição. A partir de 15 de julho, deu uma guinada, foi cedendo para tentar agradar diversos setores e deu um passo atrás para não se envolver demais na campanha.
Os movimentos sociais também não estão isentos de responsabilidade; uma coisa é a politização dos movimentos sociais e outra é a politização da sociedade. Frequentemente, os movimentos sociais fortemente engajados tendem a se esquecer das classes populares. E os primeiros assumiram uma derrota eleitoral mas não política, como se tivesse sido um problema de comunicação, mas é preciso reconhecer que não foi assim.
Deve-se levar em conta que a ditadura de Pinochet deixou um resíduo muito profundo nas instituições e nas pessoas. E que soube aproveitar muito bem a propaganda. Por exemplo, a Lei da Previdência de 1980, promulgada por José Piñera, pai de Sebastián Piñera, foi feita para coincidir com o dia 1º de Maio, como se tivesse sido um triunfo para os trabalhadores. Uma Lei da Previdência privada!
Mas, de fato, muitos acreditaram que foi uma vitória dos trabalhadores. Eu poderia compartilhar muitos simbolismos deste estilo, como a Lei do Crédito, pela qual o Estado dá apoio aos estudantes, adotada em 2005 por Lagos. Essa é a verdadeira face do neoliberalismo, em que o Estado se torna fiador dos bancos.
O governo espanhol anunciou em maio que vai garantir aos jovens até 20% da sua hipoteca; trata-se de algo semelhante...
Exatamente.
Você se concentra em três eixos da revolta, os movimentos estudantil, feminista e mapuche. Quais são as grandes fragilidades estruturais das organizações do movimento dos trabalhadores?
É uma questão de fundo. Entre 1970 e 1973 houve um cinturão industrial muito forte, mas não um movimento operário estruturado de forma autônoma; tínhamos sindicatos ligados diretamente ao governo e sindicatos autônomos fracos e ligados apenas a alguns setores; houve greves importantes, mas sem articulação nem solidariedade. O fato de a maioria das empresas ser pequena favorece isso, de não haver grandes concentrações de trabalhadores, de modo que os sindicatos são muito fáceis de silenciar, de dispersar.
O movimento trabalhista não pode agir como um autor autônomo. Isso contradiz a centralidade da classe trabalhadora marxista, mas é inútil aplicar categorias preconcebidas a um mundo em movimento. Volto ao lema, “memória do futuro”; devemos evitar cair na nostalgia, porque na época pré-ditatorial o movimento operário também não existia.
Nas sociedades democráticas, perdemos “a alegria de estar juntos”, aquela alegria que você via nas manifestações chilenas?
Até certo ponto, sim. O que me marcou em novembro de 2019 foi ver aquela energia coletiva nas marchas, com orquestras, fanfarras, com música... Não estou acostumado com isso, sou um velho militante de esquerda, nunca vi nada assim. Bandeiras mapuche, bandeiras feministas... toda essa força nos protestos me marca até hoje. Sempre me lembrarei daquela atmosfera extraordinária. Apesar dos momentos trágicos, como quando o estudante Gustavo Gatica perdeu o olho por causa de um tiro. Eu também não me esqueço dele. As investidas dos carabineros são muito violentas.
Os ‘coletes amarelos’ também exibem alegria, incendiária, mas alegre...
Não é a mesma coisa. Os movimentos na França protestam fortemente contra a reforma da previdência, não contra o sistema, não contra o neoliberalismo. Os protestos no Chile, o levante da terra, são protestos radicais, de vanguarda, lutam contra o neoliberalismo, contra o próprio sistema, não contra uma lei, representam uma mudança de todo o sistema. Eles têm uma consciência política muito lúcida e radical. Nos protestos políticos no Chile, organizam-se para reproduzir a vida, ou seja, preparam simultaneamente o protesto e o almoço, para que quem vai lutar coma, e há postos de cuidado, onde as crianças são atendidas. Todos se envolvem.
Nessas revoltas, símbolos como Che, Gladys Marín, canções de Víctor Jara, o rosto de Allende foram desenterrados (se é que algum dia foram completamente esquecidos)... De que modo o passado é reformulado no presente para que não seja puro exercício nostálgico?
Não é nada nostálgico, em absoluto. O passado é evocado, mas não para torná-lo testemunha do presente; o passado é evocado de uma forma muito diferente, como forma de alimentar a ação política, não para lamentar o que não poderia ser. Não exerce nenhuma tutela sobre o passado. “A memória do futuro” é uma expressão extraordinária. A luta exige dissidência, reconhecimento das fraquezas e dos erros, aprender com eles, detectar nossas forças.
É desejável, inevitável, decepcionante o fato de que os partidos políticos não tenham desempenhado um papel de destaque na revolta de outubro?
Tudo ao mesmo tempo... é decepcionante que os partidos se fechem na lógica parlamentar, que só pensem na rentabilidade, e é trágico que se tenha perdido a articulação com os movimentos sociais. Em condições normais, esperava-se uma coalizão de forças de esquerda em torno da defesa da Constituição, mas também isso não aconteceu.
Gabriel Boric, antes de ser presidente do Chile, foi um líder do movimento estudantil. Convertidos em políticos profissionais, os revolucionários se deixam domesticar?
Ele estava domesticado desde antes... ele nunca foi um revolucionário. Vou dar um exemplo. Ele participou de uma conferência sobre a cultura mapuche do ponto de vista jurídico. O que ele fez quando chegou ao poder? Aprofundar a militarização da Araucanía mais do que Piñera fez. Na esquerda existem duas correntes: uma favorável ao partido articulado com os movimentos sociais, e outra que só persegue a conquista do Estado, bastante populista.
Os primeiros três meses de Boric foram terríveis. A direita o levou para o seu terreno. Agora temos o Conselho Constitucional, a Comissão de Peritos e a Comissão de Admissibilidade. Ou seja, trata-se de que o que vem pela frente seja compatível com o que está aí.
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“A verdadeira face do neoliberalismo é a do Estado que se tornou fiador dos bancos”. Entrevista com Pierre Dardot - Instituto Humanitas Unisinos - IHU