21 Junho 2023
A crise econômica da Venezuela forçou Oskarina Fuentes, sete anos atrás, a se tornar uma trabalhadora invisível da Inteligência Artificial (IA). Seu papel é classificar os dados para melhorar o desempenho dos robôs da internet, em troca do mínimo de dinheiro para sobreviver. “São mais do que tudo buscas”, conta a mulher de 33 anos, dedicada a reunir informações de empresas e pessoas, selecionar a melhor resposta para um critério de busca, moderar conteúdos para que cenas atrozes parem de circular na rede, entre outras infinidades de “tarefas”, que vão somando centavos de dólar em sua conta Appen.
A reportagem é de Paula Medina, publicada por El País, 20-06-2023. A tradução é do Cepat.
A plataforma virtual australiana Appen compila dados para que gigantes da tecnologia como Microsoft, Amazon e Google aprimorarem seus sistemas de IA, com a ajuda de colaboradores de mais de 170 países, que se cadastram em seu site e selecionam as tarefas que desejam realizar.
Os marcadores de dados ou anotadores como Fuentes fornecem informações aos modelos computacionais para que possam tomar decisões, desde melhorar as buscas na rede até permitir o funcionamento de algoritmos mais complexos, como os de um carro autônomo. “O sistema está observando e aprendendo do que fazem”, explica o doutor Alberto Delgado, especialista em IA da Universidade Nacional da Colômbia.
Nos bastidores dessa indústria bilionária, o pagamento que fica para Fuentes varia entre 200 e 300 dólares mensais, valor próximo ao salário mínimo da Colômbia (209 dólares), país para o qual migrou, em 2019, com sua mãe. A profunda crise econômica que a Venezuela atravessa, há uma década, obrigou muitos a buscar métodos alternativos para sobreviver. E as plataformas de rotulagem de dados, que não exigem qualquer qualificação especial, apresentam-se como uma opção viável para aliviar a fome.
Fuentes, graduada em engenharia de petróleo, sofre de diabetes e tem uma saúde precária que a impediu de exercer sua profissão e conseguir outro emprego. Centenas de venezuelanos com quem conversa na rede social Telegram sobre suas experiências na Appen também não encontram outra forma de sobreviver.
A plataforma, avaliada em cerca de 500 milhões de dólares, segundo um meio de comunicação australiano, fixa a remuneração de seus colaboradores buscando “superar o salário mínimo da região”, o que não é difícil de conseguir na Venezuela, onde esse indicador é de 5,4 dólares mensais, após mais de cinco anos de hiperinflação.
“Com muitíssimo esforço, consigo ganhar cerca de 200 dólares por mês”, aponta uma trabalhadora que prefere não revelar seu nome por medo de represálias da empresa. Seus ganhos são o resultado de seu trabalho na Appen e em outras webs semelhantes como Toloka, Hive Micro, Testable Minds e Paidera. O dinheiro que ganha mal dá para a alimentação dela, do marido e de seus dois filhos, que não possuem outra renda. “O trabalho é escravizante e mal remunerado”, destaca Rodriguez, que se apega a essas tarefas virtuais, na cidade venezuelana de Cabimas.
Rodrigo Sircello, que faz esse trabalho de Maracaibo, conta que ele e sua esposa se cadastraram em 2016 com a promessa de gerar uma boa renda. “Minha esposa recebia constantemente e-mails da Appen (...) Em sua publicidade, lia-se que era um trabalho remoto e que seria possível receber grandes receitas”, conta o homem de 57 anos.
No entanto, em 2023, ele e sua família lutam para sobreviver com a falta de tarefas. “Desde o início deste ano, está difícil conseguir o mínimo que são 10 dólares por semana”, aponta o pai de família, que usa todo o dinheiro mensal de sua aposentadoria como bibliotecário para pagar a internet de sua casa e poder usar a Appen.
Independentemente de quantos anos estejam cadastrados na plataforma, os colaboradores não possuem vínculo formal com a empresa, nem garantia de receber tarefas. Além disso, muitas vezes, seus trabalhos não batem com os horários da região em que estão, assim, diante da necessidade, os venezuelanos se submetem a trabalhar a qualquer momento.
“Tenho problemas de sono”, ressalta a trabalhadora de Cabimas, que vive com o computador “ligado 24 horas por dia”, para ver se recebe na madrugada uma notificação de uma tarefa que a ajude a chegar ao fim do mês. Quando surgem problemas na plataforma, a mulher afirma que a Appen demora para responder às reclamações ou não responde de modo algum.
“Não me respondem os tickets”, conta a dona de casa. Os cortes constantes de energia tornam o seu trabalho mais difícil. Diante do tratamento a seus colaboradores, a Appen disse em um e-mail a América Futura que “valoriza profundamente seus trabalhadores porque representam a fábrica das sociedades onde atuam”, mas se absteve de responder a perguntas específicas sobre as condições dos venezuelanos na plataforma.
A história de Fuentes foi revelada em abril de 2022, dentro de uma série de reportagens da revista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) que abordava o “colonialismo da inteligência artificial”. Nelas, através de diversos casos, retratavam o poder de grandes empresas do setor sobre colaboradores de países em desenvolvimento, que trabalham em condições precárias. Os exemplos reforçam “a ideia de que a IA está criando uma nova ordem mundial colonial”, segundo a revista.
A partir dessa publicação, o nome de Fuentes foi citado de uma forma que não concorda inteiramente nos meios de comunicação de todo o mundo. “Não me sinto uma escrava da Appen, nem da IA”, diz a jovem. “Somos escravos do sistema da América Latina”, esclarece Fuentes, que acredita que viver em uma região de baixa renda é o que determina a falta de garantias.
No início deste ano, a revista Time alertou sobre um caso semelhante, em que a empresa OpenIA subcontratava pessoas no Quênia, aproveitando a economia empobrecida do país africano, para filtrar textos tóxicos do ChatGPT por um pagamento de dois dólares por hora.
Amante de anime e animais, Oskarina Fuentes ressalta que fala abertamente de sua experiência para que a Appen ouça seus colaboradores que são “pessoas capacitadas e trabalhadoras”. “Queremos que reconheçam nosso esforço e nos levem em conta para maiores oportunidades”, destaca a jovem, de sua residência em um povoado de Antioquia, na Colômbia.
O doutor Alberto Delgado, especialista em IA, afirma que o problema desses colaboradores reside na falta de controle nesse mercado. “A IA diz respeito aos seres humanos. Por isso, devem ser aplicados princípios éticos que abram caminho para a regulamentação da indústria”, destaca o professor universitário.
No mês passado, a União Europeia e os Estados Unidos anunciaram o avanço de um projeto de “código de conduta” comum sobre IA, que seria aplicado voluntariamente no futuro. Em um manual de recomendações sobre o tema, publicado em 2021, a UNESCO alertou que se deveria dar a devida atenção aos países de renda média-baixa, “que estão mais expostos e são mais vulneráveis à possibilidade de que ocorram abusos de posição dominante no mercado”.
Entretanto, sem regulamentações e garantias ativas, mas com o desejo de pagar as contas, Fuentes e seus colegas na Venezuela querem “que a Appen continue funcionando” e clamam para que surjam “mais tarefas”, enquanto esperam 24 horas ao lado de seus computadores, com a ansiedade própria de um país que está em colapso.
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Os trabalhadores fantasmas venezuelanos que alimentam a inteligência artificial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU