28 Abril 2023
O julgamento histórico na Corte Interamericana de Direitos Humanos está relacionado à instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), que removeu mais de 300 famílias quilombolas da região durante o regime militar. Na imagem acima, o centro de lançamento de Alcântara, no Maranhão.
A reportagem é de Nicoly Ambrosi, publicada por Amazônia Real, 26-04-2023.
Nesta quarta-feira (26), inicia o julgamento do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos por denúncias de sistemáticas violações de direitos humanos contra as comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão. O caso está relacionado com a construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), base de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira (FAB), inaugurado durante a ditadura militar nos anos 1980. A operação de remoção de famílias quilombolas da região gerou um conflito que se arrasta há quase 40 anos.
Este é o primeiro caso em que o Estado brasileiro será julgado por um caso envolvendo violações de direitos contra quilombolas, além de ser a primeira vez em que as Forças Armadas são confrontadas em um tribunal internacional. A denúncia foi feita à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), pela Justiça Global, pela DPU (Defensoria Pública da União) e pelas comunidades quilombolas em 2001. As audiências finais irão ocorrer até esta quinta-feira (27), em Santiago, no Chile. Depois, haverá abertura de prazo para alegações finais escritas e, em seguida, a publicação da sentença pela Corte.
“Esperamos que o Estado brasileiro seja condenado. É um julgamento de importância histórica. Transcende as partes ( Brasil x Quilombolas), oferece uma oportunidade para a própria Corte consolidar sua própria jurisprudência sobre proteção dos direitos e dos territórios ancestrais de populações afrodescendentes. Por outro lado, é a primeira vez na História do Brasil que o país pode ser condenado por crimes cometidos contra comunidades quilombolas. Isso aumenta a chance de uma condenação exemplar, em vários sentidos”, disse Danilo Serejo, quilombola de Alcântara e assessor jurídico do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (Mabe).
As violações denunciadas apontam a omissão do Estado brasileiro em conferir os títulos de propriedade definitiva para as comunidades. “Os remanescentes das comunidades Quilombolas de Alcântara têm o direito à propriedade coletiva de suas terras assegurado pela Constituição e pela Convenção Americana de Direitos Humanos. A conexão entre essas comunidades e seu território não gera direitos apenas em relação ao território, mas engloba a proteção de seus recursos naturais. Há provas contundentes de que o Estado Brasileiro tem continuamente violado esse direito desde a implantação, de forma autoritária e violenta, do Centro de Lançamentos de Alcântara”, disse Letícia Osório, advogada do Mabe.
As comunidades de Alcântara foram reconhecidas pela Fundação Palmares em 2004, mas desde 2008 o processo de titulação das terras quilombolas está parado no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Além das desapropriações e remoções compulsórias, a denúncia afirma que a perda do território impactou o direito à cultura, alimentação adequada, livre circulação, educação, saúde, saneamento básico e transporte de uma centena de comunidades quilombolas. Na época da construção do CLA, 312 famílias quilombolas foram retiradas do local e reassentadas em sete agrovilas. Alguns grupos permaneceram no território e, conforme os denunciantes, sofrem com a constante ameaça de expulsão para a ampliação da base.
Na época da elaboração do projeto do CLA, ainda nos anos 1970, nenhum estudo de impacto sociocultural e ambiental ou processos de consulta e consentimento prévios foram realizados pelo governo federal ou estadual, conforme preconiza a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Expulsas para morar nas agrovilas, as comunidades sofreram uma alteração dos seus costumes e práticas tradicionais, e denunciam a negação do acesso a condições adequadas de vida, com a falta de saneamento básico, de políticas públicas de educação, transporte e saúde, de liberdade perante o território e de organização social.
“A ideia que eles passaram é de uma casa modelo. Uma ideia colonialista que fez com que nossos irmãos, que moravam na beira da praia onde tinham tudo o que precisavam, em casas de palha e barro, fossem morar em casas de tijolo, onde tinham que andar 40 quilômetros até chegar à praia. Nas agrovilas a terra não tem a mesma qualidade de produção que tinha a terra mais próxima da praia. Nas agrovilas não têm pesca, não têm vegetação produtiva para plantar milho ou feijão”, explica Moisés Costa, quilombola de Alcântara.
Os quilombolas afirmam que, ao longo de duas décadas de tramitação da denúncia na CIDH, o governo brasileiro teve diversas oportunidades de reconhecer e reparar as violações, mas não o fez. “O próprio Estado brasileiro tenta esconder as nossas comunidades, tentam abafar tudo o que acontece e todo o mal que nos fazem”, disse Moisés. Para as comunidades, a postura arbitrária, violenta e desrespeitosa contra as comunidades quilombolas de Alcântara, atesta o racismo institucional contra os afrodescendentes no Brasil.
Entre as violações mais recentes, destaca-se uma ação arbitrária no território no ano de 2008, que levou as lideranças de Alcântara a denunciarem o Estado à OIT, por meio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, por mais uma vez não cumprir a Convenção 169 no Projeto Alcântara Cyclone Space – Acordo de Cooperação Tecnológica Brasil – Ucrânia. As empresas contratadas invadiram e depredaram roças das comunidades de Mamuna e Baracatatiua na tentativa de implantar outros três sítios de lançamento de aluguel.
Em 2019, o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas firmado pelo governo Bolsonaro com os Estados Unidos, com finalidades comerciais, ignorou até mesmo a recomendação da CIDH para realizar estudos e consulta prévias aos quilombolas. No ano seguinte, em meio à pandemia de Covid-19, o governo federal determinou novas remoções para o projeto, o que afetaria ao menos 800 famílias, principalmente das comunidades de Mamuna e Canelatiua. O despejo, no entanto, foi suspenso pela justiça.
Em março deste ano, às vésperas do julgamento, os quilombolas da comunidade Vista Alegre foram vítimas de uma violenta tentativa de despejo. Militares da FAB lotados no CLA e agentes da Polícia Federal (PF) invadiram uma parte da comunidade, ferindo várias pessoas, inclusive crianças, mulheres e idosos. Foram usadas balas de borracha e gás lacrimogêneo para atacar a comunidade durante a ação. A reintegração de posse buscava liberar um imóvel que teria sido construído e ocupado de forma ilegal, de acordo com o Centro e a Advocacia-Geral da União (AGU).
A denúncia foi considerada admissível pela CIDH em 2006. No relatório de mérito emitido em 2020, após duas audiências (em 2008 e em 2019), a Comissão recomendou que fosse feita a titulação do território, a consulta prévia em relação ao acordo firmado junto aos Estados Unidos, a reparação financeira dos removidos compulsoriamente e um pedido de desculpas público. Nada disso foi cumprido até agora. Diante da gravidade dos fatos, em janeiro de 2022, a Comissão Interamericana levou o caso à Corte.
Os quilombolas denunciaram também a violação do Artigo 13 do Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos, Econômicos, Sociais e Culturais, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, pela não garantia do direito à educação das crianças das comunidades quilombolas de Alcântara.
Os representantes pedem à Corte a implementação de algumas medidas de reparação, começando pela titulação do território quilombola e a realização de um procedimento culturalmente adequado de consulta e consentimento prévio, livre e informado, além de estudo de impacto ambiental, com base no Protocolo de Consulta Comunitário das Comunidades Quilombolas de Alcântara, desenvolvido em 2019. As comunidades entendem que a reparação deve ser pública e pedem a realização de um pedido formal de desculpas em cerimônia a ser celebrada em Alcântara.
Outra medida de reparação diz respeito à criação de um fundo de desenvolvimento comunitário, que inclua um plano para o exercício dos direitos à alimentação, à água, ao meio ambiente sadio e à moradia em consulta e coordenação com as comunidades Quilombolas identificadas. “Para além da condenação, é preciso criar as condições e os meios para assegurar que o Brasil cumpra os termos da Sentença da Corte IDH. Isso requer uma agenda mútua e programática após a publicação da sentença pela Corte. Condenação por si só não basta, é preciso que o Brasil assuma o efetivo compromisso de cumprir a sentença da Corte e isso passa por outras questões internas”, afirma Danilo Serejo.
Moisés Costa acredita que, mesmo que o Brasil seja condenado, não vai reparar tudo o que aconteceu, “mas vai fazer justiça por todas as violações que já foram cometidas por eles”, declarou. Para ele, o Estado brasileiro deve reparar tanto os danos materiais, “eles derrubaram as nossas casas, derrubaram o nosso pequeno negócio aqui que demoramos muito para construir”, quanto os danos psicológicos causados dentro das comunidades em decorrência de conflitos violentos por parte dos militares.
“As nossas crianças estão traumatizadas. Moramos em um quilombo que nunca tinha acontecido algo desse tipo, de você estar ali na sua comunidade vivendo uma vida boa, trabalhando e lutando, e chegam os militares atirando bala de borracha dentro da tua terra. Eles tem que pagar pelo o que fizeram. Não fere só o corpo, fere também a nossa dignidade”, afirmou Moisés, relembrando a operação violenta que aconteceu em Alcântara no último mês.
Em nota enviada à reportagem da Amazônia Real, a FAB afirmou que há no caso uma “sobreposição geográfica de duas políticas públicas”, que envolvem o atendimento do direito constitucional relacionado ao reconhecimento de propriedade e titulação das comunidades remanescentes de quilombos, e as demandas por um espaço-porto brasileiro.
O órgão afirmou ainda que o assunto foi objeto de conciliação na Câmara de Conciliação da Administração Federal, da AGU, em 2009, porém o resultado desse trabalho não foi implementado até a presente data. “A demora do Estado brasileiro nesse processo ensejou a submissão das reivindicações da comunidade supostamente afetada à egrégia Corte”, disse.
A FAB ressaltou que, enquanto Instituição que compõe a República Federativa do Brasil, está trabalhando conjuntamente com as demais Instituições envolvidas no processo de defesa do Estado brasileiro perante à Corte IDH e “reitera o firme propósito de alcançar um resultado que atenda, de forma equilibrada, os direitos das comunidades quilombolas de Alcântara e as necessidades do Programa Espacial Brasileiro, o qual certamente trará benefícios socioeconômicos para todo o município de Alcântara e região”.
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Brasil é julgado por violações contra quilombolas de Alcântara - Instituto Humanitas Unisinos - IHU