20 Abril 2023
Abandonar os combustíveis fósseis para limitar o aquecimento global equivale a abandonar todas as formas de abundância material e de conforto? Não para o filósofo Pierre Charbonnier, que acredita que as tecnologias descarbonizadas combinadas com a sobriedade coletiva permitem atender ao imperativo ecológico sem comprometer as liberdades e o progresso social.
Autor de Abundância e liberdade: uma história ambiental das ideias políticas (Boitempo, 2021) e Culture écologique (2022), Charbonnier convoca as forças da esquerda e os ecologistas para construir um novo compromisso social com vistas a tornar a transição ecológica politicamente atrativa.
Pierre Charbonnier é pesquisador do CNRS no Sciences Po (Centro de Estudos Europeus e de Política Comparada).
A entrevista é de Matthieu Jublin, publicada por Alternatives Économiques, 15-04-2023. A tradução é do Cepat.
Em artigo publicado no Libération, você convoca as forças políticas da esquerda e da ecologia para que se unam para promoverem uma nova política social ecológica. Por que tal política seria necessária?
Hoje, a questão ecológica não é mais apenas uma questão de valores, nem mesmo um imperativo para preservar os espaços que cercam a atividade humana. Ela agora está completamente integrada à questão do tipo de compromisso social que queremos construir.
Este compromisso deve visar, a meu ver, a satisfação das demandas de justiça social dentro dos limites ecológicos de nosso território e do planeta. Mas é difícil construí-lo porque há muito tempo existe um verdadeiro dilema entre o imperativo do desenvolvimento – do qual deriva a justiça social – e o imperativo da sustentabilidade ecológica.
Por quê? Porque as modalidades técnicas e macroeconômicas de desenvolvimento eram poluidoras e ligadas ao acesso a recursos fósseis abundantes e baratos. A resolução do problema ecológico foi, portanto, adiada em nome de interesses econômicos, mas também dos interesses de grande parte da população, sobretudo dos trabalhadores, que se beneficiaram do desenvolvimento econômico.
Hoje, o cenário científico e técnico, assim como a situação econômica e geopolítica mudaram. As energias renováveis e os meios de armazenamento de eletricidade que atingem a maturidade permitem criar um desenvolvimento industrial e empregos, assim como saídas comerciais para esses setores, ao mesmo tempo em que atendem a uma demanda social fundamental das sociedades modernas: a mobilidade.
Podemos agora considerar que o risco social da não transição é maior do que o risco social associado a uma mudança de modelo motivada por considerações ecológicas. É o que diz o relatório do grupo 3 do IPCC. O equilíbrio político muda porque o risco de inação é alto. Os impactos dos desastres climáticos começam a sair caro, impactando os bancos, os seguros e resseguros. A questão climática está se tornando um risco sistêmico e militar, mobilizando os exércitos para desastres naturais.
O que falta agora é esse compromisso social. Em outras palavras: qual será a coalizão de interesses que se identificará com este novo regime econômico.
A recente aproximação dos partidos de esquerda e ecologistas não é suficiente para alcançar esse novo compromisso social?
De fato, toda a esquerda – no mundo industrializado – integrou a questão ecológica e isso é uma boa notícia. Mas na França, esta aliança entre partidos de esquerda e ecologistas parece-me essencialmente defensiva, porque se assenta numa observação comum: as regras que regem a economia, o comércio e as relações trabalhistas não são compatíveis com os limites ecológicos; portanto, precisam ser mudadas.
Este acordo a mínima ainda não se concentra suficientemente nas modalidades concretas que permitem superar os impasses do nosso atual modelo de desenvolvimento. Na esquerda francesa, encontramos variantes que vão desde o planejamento radical do lado do France Insoumise até modalidades mais incitativas e desconfiadas em relação ao Estado centralizador entre os ecologistas. Essa divergência sobre o papel do Estado é, a meu ver, um obstáculo para a construção de um programa comum de transição justa.
Outro problema é a atitude em relação à Europa. Desde a guerra na Ucrânia, as atitudes da esquerda quanto ao apoio a ser dado a Kiev têm sido muito contrastantes. No entanto, um dos desafios da guerra na Ucrânia, para além da defesa do povo ucraniano, é a questão energética, ou seja, o que fazemos com o petróleo e o gás russos.
Para determinados segmentos da esquerda, é à escala europeia que se pode constituir o poder ecológico – é o que escrevi no meu artigo. A esquerda planificadora, por outro lado, parece ter o imperativo de voltar à escala nacional, mas subestima o fato de a União Europeia estar à frente da escala nacional em termos de reindustrialização ou de reorientação ecológica da produção, como mostra o Green Deal ou o Net-zero Industry Act, em resposta ao Inflation Reduction Act (IRA) estadunidense.
Não existe também uma tensão na esquerda sobre a estratégia política a ser adotada, entre os que querem dividir e os que preferem unir, mesmo que isso signifique parecer menos radicais? Onde colocar o cursor?
Tomemos os dois espaços políticos onde esta questão estratégica se coloca. Por um lado, o France Insoumise adotou, nos últimos anos, uma estratégia “populista”, apoiando-se na divisão entre elite e povo. Mas esta estratégia parece-me defasada em relação ao imperativo ecológico porque, ainda que seja necessário atingir uma massa crítica suficiente e convencer a maioria da população da necessidade da transição, mobiliza também as elites – engenheiros, pesquisadores… – que formam uma espécie de vanguarda cultural e contribuem para a difusão de novos padrões de consumo, e que são atores chaves na transição através das suas competências profissionais.
Do lado da ecologia política, é o mesmo problema espelhado, porque este campo reivindica uma causa universal – o bem da humanidade e da comunidade nacional –, mas esta formulação só seduz um pequeno segmento eleitoral, mais urbano, favorecido e educado. Aliás, é por isso que a ecologia política francesa não investe realmente no debate sobre a estratégia industrial de transição: isso a obrigaria, penso eu, a fazer concessões na questão nuclear – ao passo que faz dela uma questão de honra – ou na questão da abertura de minas na França.
Haverá um debate dentro da ecologia política entre a preservação do clima e a preservação do meio ambiente. Uma mina de lítio, por exemplo, tem um impacto negativo, mas podemos considerá-la necessária por razões ecológicas – descarbonizar a mobilidade – e por justiça internacional – não depender dos países do Sul para o fornecimento do lítio.
Além desses dois campos, é difícil encontrar no espaço público organizações ou lobbies que defendam uma perspectiva realista da transição, de modo que ela seja tecnicamente viável e politicamente majoritária.
Você acredita na existência de uma “classe ecológica” que, como escreveu Bruno Latour, deve tomar consciência de si mesma?
Porque não. Podemos falar de classe ecológica ou geossocial. Mas o essencial é fazer com que quem trabalha na energia, na construção, nos transportes ou na agricultura tome consciência de que sua forma de trabalhar, o que produz e os consumidores a quem se destina esta produção, são coisas fundamentais no processo de transição. O problema não é saber se essa classe existe ou não, mas em que condições ela pode surgir.
Enquanto não tivermos vozes políticas fortes que desenhem os contornos dessa classe, que contemplem seus membros e que criem um interesse efetivo por essa trajetória social, essa classe não existirá. Por enquanto, a coalizão governista tende a defender o status quo, em benefício dos poupadores, da classe média alta ou dos aposentados ricos, e provavelmente não será ela que vai trazer as transformações necessárias.
O novo compromisso social que você reclama deve, na sua opinião, substituir o compromisso social fordista do pós-guerra, baseado no consumo de massa e nos combustíveis fósseis. Mas você também observa que a promoção de um estilo de vida menos materialista provoca a relutância das classes média e trabalhadora. Como resolver essa tensão?
Num primeiro momento, devemos abandonar a ideia de que a conquista da hegemonia cultural pelos valores ambientalistas dará conta do recado. O desafio para mim é o de reconectar com o conceito de liberdade social. Isso equivale a dizer que a liberdade não é contraditória com o constrangimento que nos impõe o pertencimento ao coletivo, mas que resulta dessa integração.
Até agora, fazíamos rimar a liberdade e a pertença coletiva aumentando a produção para criar riquezas para redistribuir e converter em proteção social e em serviços públicos. A partir de agora, trata-se de criar padrões de consumo com menor impacto ecológico.
Isso equivale a fazer acontecer a chamada sobriedade “comunitária”, produzindo assim bens mais duráveis e com alto nível de compartilhamento. O que implica em viver realmente juntos e remar contra o individualismo liberal, ao mesmo tempo que faz muito sucesso!
Mas, ao aprofundar esta nova relação com a liberdade social, podemos responder ao imperativo da sobriedade e permanecer fiéis à história do modelo social francês.
Concretamente, o que pode ser feito para que a sobriedade não seja interpretada como um atentado às liberdades?
Isso depende do que está em jogo. Veja a mobilidade, que se tornou uma das expressões mais imediatas da liberdade: para muitos, ser livre significa “ir para onde eu quiser”. E não tenho nenhum problema com essa ideia. A tônica do debate nas emissões dos transportes aéreos – que devem ser reduzidas – em detrimento das emissões ligadas aos deslocamentos diários de carro – que são globalmente mais emissivas – mostra que não há interesse suficiente pelas infraestruturas que condicionam estes deslocamentos. No entanto, é muito importante que essas infraestruturas de transporte permitam, na falta de alternativas, viagens menos intensivas em carbono.
O mesmo vale para a alimentação: consumir menos carne e mais alimentos à base de vegetais não deve mais ser uma questão de escolha deliberada, mas uma operação do sistema “por design”. E isso deve ser viabilizado por mecanismos de preço ou infraestruturas que tornem a adoção de estilos de vida ecológicos mais prática.
Nessas condições, a liberdade de se deslocar ou de comer não é anulada, mas redefinida. Dizer que a transição ecológica ameaça as liberdades é agir de má-fé, porque a única liberdade que sempre conhecemos é uma liberdade com restrições. Não podemos confundir a liberdade com a anomia. Devemos considerar que dirigir um enorme Hummer com ar condicionado ou não usar máscara em meio à onda de Covid não é liberdade, mas anomia.
Assim, a transição é acompanhada de ganhos em termos de liberdades políticas fundamentais – especialmente porque a transição exige o controle do capital –, mas as pequenas liberdades individuais, como pegar um avião ou um carro, terão de ser sujeitas a novas arbitragens: este tipo de viagem será mais restrito, mas ao mesmo tempo haverá menos engarrafamentos...
Num artigo recente, você escreve que “não é preciso necessariamente escolher entre responder às exigências de conforto, bem-estar, segurança e imperativos ecológicos”, tomando como exemplo as bombas de calor que podem responder a estas duas necessidades. Mas esse raciocínio é generalizável para as demais atividades humanas?
Certamente não pode ser universalizado. Mas é sustentável no conforto térmico com a bomba de calor, assim como na mobilidade e na alimentação repensando as infraestruturas e os modelos de consumo sem perder a liberdade. Atuando nessas três áreas, equacionamos boa parte do falso dilema entre abundância e liberdade.
A questão da bomba de calor é menos anedótica do que pode parecer. A nossa herança histórica leva-nos a crer que a única forma de ter acesso abundante à energia é utilizando os combustíveis fósseis, porque a sua densidade energética é impressionante: com 6 litros de petróleo, e com a condição de ter um bom conversor, deslocamos uma tonelada mais de 100 quilômetros!
Durante muito tempo, pensávamos que se privar desse suprimento de energia equivalia a sacrificar o essencial das conquistas modernas. Mas a radiação solar disponível na Terra excede em várias ordens de magnitude as necessidades energéticas dos seres humanos. O problema é captar essa energia, e a bomba de calor, assim como as energias renováveis – que são seguramente mais restritivas –, conseguem essa proeza.
Estas técnicas nos obrigam certamente a isolar melhor as nossas construções, a manter melhor as nossas infraestruturas e a fazê-las funcionar em rede, mas não são sinônimo de fim da abundância. Elas apenas introduzem outra relação com a energia.
Você fala de um “falso dilema” entre abundância e conforto, mas parece que o campo político se estrutura sobre essa oposição entre uma ecologia de “direita”, que postula que a tecnologia não permitirá mudar nada, e uma ecologia tecnocrítica, que tem como pressuposto mudar comportamentos sem esperar um milagre tecnológico.
Essa polarização é lamentável. Defendo uma posição intermediária que consiste em querer redistribuir as infraestruturas técnicas, mas também políticas e regulatórias, de modo a nos fazer alimentar, deslocar e trabalhar de forma diferente, mas em condições que ainda atendam ao ideal moderno de liberdade. A ideia não é chegar a uma escassez ou a uma ameaça permanente nem, mais positivamente, ao fim do trabalho ou ao decrescimento.
A nível internacional, não estamos confrontados com o mesmo dilema entre abundância e liberdade, no sentido de que a base material propiciada pelos combustíveis fósseis permite às nações assegurar a sua independência, até mesmo a sua sobrevivência geopolítica?
Sim. Para explicar isso, devemos voltar ao que os especialistas em relações internacionais chamam de “dilema da segurança”: para que uma entidade política soberana proteja sua independência, desenvolve seu sistema defensivo, seu exército, seu armamento, mas quanto mais ela desenvolve sua defesa, mais ela aparece como uma ameaça às outras nações, o que gera um efeito de escalada.
Para confrontar este efeito, as nações desenvolveram interdependências a nível econômico, especialmente através do intercâmbio de energias fósseis (CECA na Europa em 1951, mercados petrolíferos mundiais, etc.) com a esperança de que a complementaridade econômica absorva os riscos gerados pelo dilema da segurança. Mas a crise climática nos mostra que aquilo que foi concebido como uma ferramenta de pacificação por meio da produção e do comércio está se tornando uma ferramenta de destruição do planeta.
Para sair desse dilema da insegurança fóssil, é preciso criar uma nova cooperação efetiva – e não apenas declarativa como a das COPs – baseada não mais na intensidade da energia fóssil, mas em outra coisa. Qual? A União Europeia, por sua vez, tende a reintegrar em seu circuito produtivo todos os setores econômicos da transição, a fim de fazer convergir segurança geopolítica e imperativo ecológico – o que chamei de “ecologia de guerra”.
Ao se desvincular das economias estadunidense e chinesa, existe a possibilidade de constituir grandes blocos econômicos menos interdependentes, mais protecionistas, e o risco que a transição ecológica ser acompanhada de uma intensificação dos conflitos geoeconômicos.
Por trás do plano IRA de Joe Biden, existe a ideia de travar uma guerra econômica contra a China. É, portanto, necessário, mais uma vez, colocar em perspectiva um compromisso geopolítico entre os diferentes atores da ordem internacional, de acordo com as capacidades ecológicas e produtivas de cada um, para que a transição para novos modelos econômicos não conduza a rivalidades excessivas, que podem incluir a guerra. A diplomacia climática, neste quadro, funde-se com a diplomacia tout court, da mesma forma que as políticas climáticas nacionais se fundem com as políticas socioeconômicas gerais.
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“Dizer que a transição ecológica ameaça as liberdades é agir de má-fé”. Entrevista com Pierre Charbonnier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU