05 Abril 2023
Com gestações de risco e crianças adoecidas, garimpo ilegal de ouro coloca em risco futuras gerações na Amazônia. Não há nenhum serviço de saúde especializado para testagem e acompanhamento dos casos.
A reportagem é de Adriana Amâncio e Anelize Moreira, publicada por AzMina, 01-02-2023.
A descoberta de uma doença pode ser desgastante e durar meses entre idas e vindas às unidades de saúde. Agora, imagine que esse adoecimento é fruto de um garimpo ilegal praticado no quintal da sua casa; que seus filhos e os peixes (principal fonte alimentar) estão contaminados pelo mercúrio usado para separar e extrair ouro.
Gilmara Akay, 28 anos, da aldeia Sawré Muybu, na região do Tapajós, no Pará, sente que a vida não é mais a mesma depois que ela soube que tem mercúrio espalhado no próprio sangue. “Eu tenho vários problemas por isso. Essa contaminação mexeu muito com o nosso cérebro”, reclamou.
Sem serviços públicos de saúde especializados para testagem e acompanhamento em territórios indígenas, a certeza da contaminação é uma condenação para esses povos. Mulheres sentem no corpo os efeitos do contágio há décadas e convivem com problemas crônicos de saúde.
Em novembro de 2022, AzMina e Gênero e Número somaram esforços para apurar essa doença silenciosa e ainda sem nome que ameaça mulheres, gestações e gerações futuras.
As imagens chocantes da desnutrição na Terra Indígena Yanomami, que circularam neste início de 2023, mostram apenas um dos impactos brutais do garimpo ilegal na floresta amazônica. Além da fome, o adoecimento de indígenas nos estados de Roraima, Pará e Amapá foi agravado por um mal fruto da atividade garimpeira: a contaminação de mercúrio.
A crise na saúde indígena se aprofundou nos quatro anos do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro e exigirá a reconstrução de órgãos federais e a capacitação de profissionais para atender a demanda histórica de povos contaminados pelo metal pesado.
O Garimpo ilegal põe em risco ao menos 13 mil indígenas Mundurukus e Kayapós, além de 28 mil Yanomamis.
Aldira Akai Munduruku, de 31 anos, da etnia Munduruku, também vive na Terra Indígena Sawré Muybu, na região do Tapajós, sente fraqueza nas pernas, alterações na visão, dores nos olhos e de cabeça, intensas e diárias. Desde que os sintomas apareceram, ela já teve um aborto, e complicações na gestação da última filha, de um 1 ano e oito meses.
“Sofri bastante até o parto. Não conseguia lavar roupa no rio, as minhas pernas ficavam adormecidas, não conseguia mais andar. Não conseguia mais ter força para carregar o balde. Até hoje tenho trauma”. Além de Aldira, o marido e os quatro filhos também estão contaminados pelo mercúrio.
Ao receber o resultado do teste para contaminação por mercúrio, Aldira Munrudurku encontrou a possível resposta para tantos abortos (Foto: João Paulo Guimarães)
Saber que tem o mercúrio no sangue, apresentar sintomas, sem receber assistência de um serviço de saúde, é como desfalecer às cegas e de forma vulnerável. A jovem estudante Gilmara Akay convive diariamente com lapsos de memória. “Sinto dores insuportáveis, dores nos ossos que a gente nunca sentiu na vida. A gente sente muito essas dores todos os dias”.
Duas inquietações atordoam Gilmara: “Qual é o remédio para tratar o mercúrio? Tem tratamento dos brancos para os nossos peixes?” A Terra Indígena Munduruku, onde Aldira e Gilmara vivem, é a segunda maior área de garimpo no Brasil, com 1.592 hectares, segundo levantamento do Mapbiomas, divulgado no ano passado. A primeira é o território Kayapó com 7.602 hectares, também no Pará.
A terceira maior extensão de terra ocupada pela atividade criminosa é a do povo Yanomami, com cerca de 10 milhões de hectares, distribuídos no Amazonas e em Roraima. Mas a região teve o maior aumento de ocorrência de garimpo ilegal em 2022. A equipe de reportagem não conseguiu falar diretamente com uma mulher Yanomami por falta de sinal de celular ou telefone. “Fazer chamada de rádio com as mulheres é perigoso, pois os garimpeiros interceptam a frequência de rádio e podem perseguir essas mulheres”, explica a líder Érica Yanomami, que auxiliou a apuração.
Estudos e evidências científicas amplamente divulgados pela imprensa mostram os impactos negativos da contaminação por mercúrio em áreas de garimpo ilegal. Apesar disso, o Brasil quase não oferece unidades de saúde para o diagnóstico e tratamento de pessoas contaminadas com o metal nos territórios indígenas. O único lugar é o Centro de Referência para as Patologias Decorrentes do Mercúrio, em Santarém, inaugurado em janeiro de 2022 para atender apenas o estado.
O Centro tinha por objetivo priorizar o acompanhamento de crianças e pacientes com altos índices de mercúrio. Porém, um ano depois, as pessoas aldeadas não foram atendidas ainda, apenas alguns adultos das regiões de Itaituba e Novo Progresso.
“Na cidade, você ainda tem acesso a um hospital, pode fazer um exame, e, se der sorte, tem uma assistência adequada”, avalia Paulo Basta, médico e pesquisador da Fiocruz. Mas, morando em uma comunidade no interior da floresta, a 500 km de Santarém, é quase impossível ter acesso a esse tipo de tratamento, indica Paulo.
As mulheres são especialmente afetadas pela presença do mercúrio no sangue durante a gravidez. Sem acompanhamento de saúde adequado, elas ficam em risco para si e para o feto, que também se contamina. “O médico vem aqui na aldeia de três em três meses. Quando não vem, a gente tem que pegar um transporte de madeira [no rio], e o carro para chegar até a cidade. Mas isso depende também de dinheiro para pagar a consulta”, relatou Aldira sobre a região do Tapajós, no Pará.
Esses profissionais de saúde que chegam às aldeias, e muitos das cidades, não são treinados para identificar os efeitos dos contaminantes ambientais, especialmente o mercúrio, explica o médico Paulo Basta. “Na maioria das vezes, o profissional, sequer considera, como diagnóstico condicional, que o mercúrio possa estar relacionado com os sintomas.”
Uma mulher grávida saber que está com nível elevado de mercúrio, e que o filho dela pode ter problema, é um estresse. Depois, ela tem essa mesma preocupação na hora de amamentar o filho, alerta Erik Jennings, médico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). “Essa não é uma questão só de saúde. É uma questão de injustiça social tremenda.”
É impossível evitar a contaminação do feto durante a gravidez, explica o médico Paulo Basta. “O organismo leva em média de 90 a 120 dias para excretar o mercúrio. É um período muito grande para a gestação.” Paulo lembra que os quatro primeiros meses da gravidez são o período mais crítico da formação do tubo neural.
“É um cenário caótico. A contaminação é gravíssima e fatal. Enquanto isso, o garimpo avança cada vez mais. A saúde indígena nunca se preparou de forma adequada para atender às distintas realidades do Brasil”, afirma Sônia Guajajara (PSOL), primeira ministra indígena do Brasil. A vitória do presidente Lula nas eleições de 2022 chegou às comunidades amazônicas com esperança. “Colocando uma mulher indígena na secretaria, vamos discutir estratégias para minimizar esse risco à vida das mulheres, mais vulneráveis à contaminação porque engravidam. As mulheres que estão ali o tempo todo na água lavando roupa, pescando”, ressalta Sônia.
Para a nova ministra, a situação é grave e exige atualização e adequação de políticas de saúde nos territórios indígenas. Uma das sinalizações já foi a de reorganizar a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), enfraquecida pelo governo Bolsonaro, que será comandada agora pela ex-deputada federal indígena Joênia Wapichana (Rede).
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Mercúrio no sangue: mulheres indígenas contaminadas do ventre ao fim da vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU