21 Março 2023
A etapa continental do Sínodo 2021-2024 nos fez perceber "o sentido de um corpo, de discernimento conjunto, dessa escuta perspicaz", o que nos leva a passar "da mera escuta a poder chegar a acordos sobre linhas e horizontes", afirma a Irmã Daniela Cannavina, participante de duas assembleias regionais.
A reportagem é de Luis Miguel Modino.
Um processo sinodal no qual participou a Vida Religiosa da América Latina e do Caribe, procurando "aquelas novas janelas a abrir que nos orientam para uma outra forma de ser Vida Religiosa, paralela à forma como falamos de uma outra forma de ser Igreja", segundo a secretária-geral da CLAR, que vê a necessidade de uma mudança na estrutura, ajudando assim a "aprender a construir com os outros", e juntamente com isso a "unir o discurso à prática".
Uma Vida Religiosa que vê na conversa espiritual uma ajuda e uma prática para a dinâmica interna da vida comunitária, suspendendo julgamentos e "tentando fazer uma compreensão apreciativa do que ouço no outro, o que também pode mobilizar os meus próprios interesses". Tudo isto num processo sinodal chamado a encorajar as mulheres a terem "essa voz também no espaço da governação, mas sempre trabalhando em comunhão, nunca sozinhas, nem como atiradoras, mas como parte de um corpo".
A Etapa Continental do Sínodo terminou, uma novidade na história dos sínodos. Como é que isto tem sido vivido na América Latina e no Caribe?
Na América Latina e no Caribe foi vivida como um processo, um processo verdadeiramente sinodal, marcado por grandes etapas. Creio que esta última fase, a Etapa Continental, nos fez perceber, devido à presença das diferentes realidades e povos, o sentido do corpo, do discernimento conjunto, dessa escuta perspicaz como estamos a falar agora, que dá um salto qualitativo, da mera escuta à capacidade de chegar a um consenso sobre linhas e horizontes.
Da escuta que se fez das pessoas que participaram, foi uma etapa muito rica, e deixou uma boa impressão, especialmente em relação à conversa espiritual enquanto tal, que é o que estamos a avaliar agora.
Irmã Daniela Cannavina. (Foto: reprodução | Luis Miguel Modino)
Uma participação notável da Vida Religiosa: O que significa esta sinodalidade para a Vida Religiosa, e sobretudo para a Vida Religiosa feminina, poder dialogar, apresentar posições dentro de uma Igreja tradicionalmente patriarcal?
A CLAR levou a cabo um processo, não quero dizer paralelo, mas também tem vindo a reunir as suas 22 conferências para escutar a contribuição direta da Vida Religiosa. Sabemos que a CLAR é sinodal desde o início, não podemos pensar nas mulheres de um lado, nos homens do outro. No entanto, tem sido uma experiência realmente rica porque conseguimos colocar em cima da mesa preocupações e a necessidade que algo tem de clicar na Vida Religiosa, especialmente para procurar os processos de renovação, de mudança, e aqueles que podem favorecer de alguma forma uma mudança de estrutura que nos está a impedir de ser uma Vida Religiosa mais de acordo com os tempos.
Levantamos esta questão, à luz do horizonte inspirador da CLAR, para o Secretariado do Sínodo como uma contribuição da Vida Religiosa do continente. Nas diferentes assembleias houve participação, mas com uma percentagem limitada porque era necessário ter em conta o total dos membros da assembleia, mas quando a Vida Religiosa se reuniu por vocação no último dia, é incrível como se começa sempre a desenvolver o diálogo para onde hoje temos de caminhar, que são aquelas novas janelas a abrir que nos orientam para uma outra forma de ser Vida Religiosa, paralela à forma como falamos de uma outra forma de ser Igreja.
Certamente que isto é por vezes bastante difícil em contextos comunitários, dialogar sobre este aspecto, porque não estamos todos na mesma dinâmica, alinhados no mesmo pensamento, que, aliás, não deveria ser, mas a Vida Religiosa procura, e fá-lo através de alguns membros que sentem que este é o momento e que temos de nos ajudar a lançar uma nova luz.
E quais são estas novas janelas que a Vida Religiosa e a Igreja na América Latina têm de abrir?
O que diz respeito à Vida Religiosa é uma mudança que diz respeito à estrutura. Pensar em nós mesmos sinodalmente é pensar em nós mesmos também através da avaliação dos nossos modelos de estruturas, revisitando os conselhos evangélicos. Há um estilo de obediência que por vezes causa mais de uma certa, não sei se a palavra é repressão, mas não permite o melhor do outro, e a Vida Religiosa precisa de espaços onde possa dar o melhor de si mesma, onde possa aprender a construir com os outros, onde possa ter a sua opinião, algo que por vezes as iniciativas são dirigidas pelas equipes governamentais, para que não encontrem canais onde se possam juntar e ter a sua opinião.
Este processo de conversa espiritual que estamos a viver como uma experiência é realmente muito importante, e pelo que ouvi, muitos religiosos dizem que é bom aplicá-lo nos nossos próprios contextos, comunidades de referência, porque está a fazer esta transferência circular do que eu posso expressar livremente para uma partilha com outros até chegarmos a uma resolução mais corporal. Estamos todos à procura de novos horizontes, sabemos que temos de nos renovar, que temos de responder de forma diferente à realidade atual.
Onde encontramos a maior fraqueza está em como responder ao como. Assim, a partir da CLAR estamos a tentar, através de diferentes propostas formativas e das comissões que temos, verificar como podemos dar respostas a estas questões cruciais que nos habitam a todos. E também como unir o discurso à prática, porque quando a Vida Religiosa se encontra, há um discurso de desejo de novidade e mudança, mas quando temos de o pôr em prática descobrimos que estamos a repetir mais do mesmo e que não estamos a fazer progressos qualitativos.
Numa sociedade que é cada vez mais individualista, as relações comunitárias, e isto é algo próprio da Vida Religiosa, são cada vez mais complicadas. Fala-se em trazer esta conversa espiritual à Vida Religiosa. Poderá esta conversa espiritual melhorar a vida quotidiana das comunidades religiosas e ajudá-las a aprender a respeitar e compreender que, sendo diferentes, é possível caminhar juntos, sinodalmente?
Sim, a verdade é que estou ficando convencida, porque a conversa espiritual não é uma prática muito abraçada pela Vida Religiosa, para além daqueles que têm a espiritualidade inaciana como base, e honestamente, pelo que se ouve, ajudar-nos-ia muito a desbloquear os problemas da comunidade, que é onde mais tem dificuldade a Vida Religiosa, a propósito, e permite-nos falar. Há muitas pessoas que estão num estado de silêncio, que não sabem como se expressar, que se sentem conscientes de si próprias, que não têm um lugar para expressar os seus próprios sentimentos.
A conversa espiritual leva-nos a unir esses sentimentos, pensamentos e ideias de renovação e mudança, mas temos de encontrar espaços. E penso que seria muito propício, como método que abraça a Vida Consagrada, poder fazer esse exercício em espiral, onde me possa exprimir, possa confrontar-me com o outro e possamos chegar juntos a algo que possa ser visto como um futuro possível.
Irmã Daniela Cannavina. (Foto: reprodução | Luis Miguel Modino)
Fala-se de espiritualidade inaciana, algo que tem praticamente cinco séculos. Poderíamos dizer que o primeiro papa jesuíta assegurou que esta espiritualidade inaciana e as formas mais características da Vida Religiosa foram assimiladas por toda a Igreja?
Cada um dá o que tem. Francisco oferece este método, mas todas as espiritualidades têm uma forma de aplicar o discernimento, de se unirem, de dialogarem. O que este método faz é suspender o julgamento, para que se possa exprimir livremente, e é isso que é necessário hoje em dia. É aplicável, pode ser melhorado, talvez também possa ser integrado noutros estilos, pode ser polido ao longo do tempo, mas é como uma espinha dorsal que dá luz a um modelo de discernimento que é necessário para este tempo.
Podemos dizer que ouvir sem condenar é o ponto-chave desta conversa espiritual?
Faz parte da conversa espiritual, mas suspender o julgamento é muito importante, porque estamos muito habituados a dialogar, a entrar em discussões, e por vezes, em vez de provocar dissensões, acabamos na realidade por acrescentar mais conflitos e até por nos dividirmos em posições diferentes. Aqui o fato de suspender julgamentos e de tentar fazer uma apreciação do que ouço no outro, que também pode mobilizar os meus próprios interesses, a minha forma de abordar um determinado assunto, parece ser muito importante.
Uma das questões que mais frequentemente surge nas assembleias da América Latina e das Caribe é que as mulheres devem ter uma voz e uma palavra a dizer, que devem poder participar abertamente nos processos de tomada de decisão. Será que este Sínodo vai conseguir dar esse passo?
No final do Sínodo, Francisco olhou para todas as mulheres sentadas juntas e disse-nos: Eu assumo o desafio, vou começar a abrir um novo grupo para analisar a questão dos ministérios, o diaconato feminino, mas os tempos vão ser bastante lentos. Como é um tema recorrente, é em todas as assembleias, em todas as reuniões, em todos os documentos, mesmo na Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, é realmente um clamor expresso e são necessárias certas respostas. Há muitas mulheres em lugares de decisão, e isso é bom, mas não é suficiente e elas têm de ter essa voz também no espaço de governação, mas sempre a trabalhar em comunhão, nunca sozinhas, nunca como atiradoras, mas como parte de um corpo.
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Sinodalidade: “da mera escuta a poder chegar a acordos sobre linhas e horizontes”. Entrevista com Irmã Daniela Cannavina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU