04 Março 2023
Quando a moral burocrática, da qual precisamos, perde o senso do próprio limite, ela perde literalmente a razão e pode até causar um curto-circuito na relação com a realidade.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, publicado por Come Se Non, 02-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O trágico naufrágio do barco nas praias de Cutro, na Itália, na madrugada de domingo passado, sacudiu a consciência de muitos italianos e mostrou os limites de uma configuração da relação com o fenômeno da “migração” que o reduz a um problema judiciário ou moral.
Aqueles que haviam sido chamados a “governar” uma situação tão complexa e que acharam que a resolveriam negando-a na raiz – e assim falaram, de vez em quando, de bloqueio naval, de guerra aos traficantes ou de acordos para impedir as partidas – colocaram as premissas para gerar uma condição de “indiferença” da qual foram e continuarão sendo vítimas as pessoas em busca de salvação, de justiça, de casa e de liberdade.
Se, de um lado, estão os traficantes, que buscam o máximo lucro com o mínimo custo, pondo em perigo as vidas dos migrantes, e, de outro, está o Estado, que, para impedir os traficantes, obstaculiza os navios de resgate não governamental, então se produz uma condição em que a indiferença com quem tem menos recursos e é mais vulnerável torna-se máxima e ingovernável: quando foram geradas condições de indiferença, ser não indiferente só pode ocorrer depois, quando já não há mais nada a fazer.
É evidente que a ordem pública não é realmente protegida quando se produz uma situação que afeta os mais fracos. Mas é aqui que eclode o nível de reação mais desconcertante, mas mais interessante de se analisar. Como é possível que o ministro do Interior italiano, [Matteo] Piantedosi, diante da tragédia, saiba culpar apenas aqueles que “não deveriam ter partido” e tinham que se mostrar responsáveis tanto para com seu país (que não deveriam abandonar e trair) quanto com seus próprios filhos (que não deveriam colocar em risco de morte).
Eu me pergunto: como é possível responder de forma tão inadequada e rude? Não basta responder que a causa pode ser uma dificuldade particular do ministro de se identificar com a condição dos migrantes, uma total falta de empatia em seu julgamento. Isso não basta. Para entender, é preciso considerar a degeneração da “moral burocrática”.
Então, recordei um episódio que ocorreu comigo fora de Itália, em Lugano, na Suíça, onde fiz uma pequena e pessoal experiência dessa “moral burocrática” e de sua dinâmica distorcida.
Antes de contar esse episódio, gostaria de esclarecer que, por “moral burocrática”, entendo aquela interiorização de uma estrutura de “ofícios”, de “tarefas”, de “deveres”, que constituem uma mediação da relação com a realidade, inventada pelos Estados modernos. No primeiro lugar entre estes, deve-se considerar a Igreja Católica, que, com o Concílio de Trento, inventou uma modalidade burocrática de estar na história da salvação. Paralelamente, as tradições não católicas também construíram suas estruturas de burocracia, para gerir de modo simples a relação com um mundo cada vez mais complexo.
Chego agora ao exemplo. Encontrava-me em Lugano, tinha uma aula muito cedo da tarde (acho que às 14h), no fim da qual tinha que correr de ônibus até à estação para pegar meu trem. Para não me atrasar, pensei ingenuamente em fazer exatamente como em Roma: comprei a passagem na máquina antes da aula, para tê-la já pronta quando chegasse à parada de ônibus duas horas depois.
Assim ocorreu: duas horas depois, apresentei-me na parada, o ônibus chegou, subi, o ônibus partiu, e eu olhei ao meu redor para encontrar a “máquina de validação”, mas não a vi. Então, me aproximei do motorista e perguntei o que devia fazer. Ele me disse: o seu bilhete foi validado automaticamente na compra. Portanto, expirou. “Você não deveria ter embarcado e agora tem que descer na próxima parada.”
Eu, porém, objetei que tinha pago o bilhete e não poderia descer, porque senão perderia o trem. Lembro-me que o motorista entrou em crise (uma crise muito suíça e pouco romana). E então ele me disse: “Veja, se o fiscal subir, eu não vou lhe salvar”. Aceitei o risco e me salvei mesmo assim.
Acho interessante que o motorista, assim como o ministro Piantedosi, tenha respondido “você não deveria ter embarcado”. A moral burocrática é feita para compartimentos estanques: controla o real, simplificando-o.
Mas a simplificação desfigura o real, mesmo que para um bom fim (do sistema, mas nem sempre do indivíduo). Porém, o sistema burocrático só funciona e só podemos desfrutar dele se ele souber conservar a consciência da limitação do próprio olhar.
As vidas dos passageiros de um ônibus, dos motoristas de um carro, ainda mais dos migrantes que navegam no mar em meio a mil dificuldades são mais complicadas do que as regras burocráticas que se ocupam deles.
O fato de Piantedosi ter respondido: “Eles não deveriam ter partido” é justamente a confirmação de uma leitura burocrática do real. Quando a moral burocrática, da qual precisamos, perde o senso do próprio limite, ela perde literalmente a razão e pode até causar um curto-circuito na relação com a realidade.
Para se justificar de forma absoluta e seca, ela pode levar à total culpabilização de quem infringe a regra burocrática (quem parte, em vez de não partir), pode projetar sobre o sujeito desviante/migrante um modelo de irresponsabilidade quase criminosa (pôr em risco a vida de seus filhos e é, ele mesmo, causa de seu mal), mas pode até virar tudo de cabeça para baixo e dizer: “Não parta. Eu mesmo vou lhe buscar”!
Essas oscilações temerosas, que registramos nas expressões do ministro Piantedosi, são o fruto deste duplo equívoco: por um lado, confiar exclusivamente em uma resposta burocrática garantida, que deveria resolver todos os problemas pela raiz; por outro, perder toda a relação com os verdadeiros sujeitos de que se deve cuidar, deslocando continuamente o problema para outra coisa: para a partida transgressora, para os outros países não solícitos a cuidar dos migrantes, para as intenções criminosas dos traficantes, para as supostas conivências perigosas dos navios das ONGs.
Desse modo, toda a burocracia, que seria um sistema para aumentar a não indiferença ao próximo, torna-se um refinado armamentário para garantir a total indiferença ao próximo. “Não vou lhe salvar”, disse o motorista suíço do ônibus de Lugano. Sua moral burocrática salvava a ele, não a mim. De modo marginal e com eventuais consequências bem mais suportáveis, aquele motorista proferiu uma verdade terrível, que assumiu uma forma trágica nos lábios do ministro italiano e nas vidas despedaçadas dos migrantes abandonados à fúria do mar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Não vou lhe salvar”: a moral burocrática e os migrantes. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU