02 Fevereiro 2023
"Seis líderes relatam: protestos dos últimos anos colocaram precarizados no mapa político – e abertura de diálogo com Lula amplia esperanças. Próximo passo é fortalecer articulação nacional pelos direitos. Mas ainda há dúvidas sobre a pauta", escrevem Gabriela Neves Delgado e Bruna Vasconcelos de Carvalho, em artigo publicado por Le Monde Diplomatique Brasil, 31-01-2023.
Gabriela é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora Coordenadora do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq) e advogada. Bruna é auditora-Fiscal do Trabalho da Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora dos Grupos de Pesquisa (CNPq) Trabalho, Constituição e Cidadania; Mundo do Trabalho e Teoria Social; e Direito, Economia e Sociedade.
No início de janeiro de 2023, os entregadores de plataformas digitais anunciaram mais uma paralização para o dia 25 de janeiro. No dia 17 de janeiro, Gilberto Carvalho, que já ocupou o cargo de chefe de Gabinete da Presidência da República no governo Lula e de ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República no governo Dilma, reuniu-se com motoristas e entregadores de aplicativo em São Paulo, sinalizando o início de uma negociação com o Governo sobre o conjunto das demandas apresentadas. Na ocasião, os entregadores foram convidados a também participar de evento em Brasília, no dia seguinte, e a apresentar suas propostas. Em ato de boa-fé, diante da abertura para negociação e diálogo, a greve anunciada foi suspensa.
A simbologia do conjunto dos fatos é relevante. Em 2020, esses trabalhadores estavam nas ruas por todo país, gritando para serem ouvidos e respeitados, reclamando o atendimento de uma agenda marcada por pedidos emergenciais.[1] Em Brasília, naquele ano, as manifestações se iniciavam em frente ao Palácio do Buriti e terminaram em frente ao Congresso, do lado de fora, sem muita atenção das autoridades públicas, com exceção de um ou outro parlamentar que acompanhava mais de perto o movimento.
No dia 18 de janeiro de 2023, na companhia de dirigentes de centrais sindicais e do Ministro do Trabalho e Emprego, representantes dos trabalhadores de aplicativos foram recebidos em cerimônia oficial no Palácio do Planalto, onde discursou o Presidente da República, a quem puderam entregar diretamente suas demandas, consolidadas em um documento de doze laudas. Este momento foi marcado por um poder simbólico de abertura à negociação.
Não é possível assegurar que as promessas de governo serão cumpridas, tampouco que a regulamentação do trabalho plataformizado, de fato, respeitará os pilares do direito fundamental ao trabalho digno. O poder simbólico está na força do movimento dos trabalhadores, que resistiu no tempo, ampliou a sua rede, refinou sua organização, e tornou-se um contrapoder.
Em 18 de janeiro de 2023, a pesquisadora Bruna Vasconcelos de Carvalho realizou, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), entrevista semiestruturada com grupo focal[2], composto por seis representantes do movimento dos entregadores por aplicativo para melhor compreender as nuances desse movimento coletivo de trabalhadores. Alessandro da Conceição (Sorriso), Paulo Galo da Silva, Rodrigo Lopes da Silva Correia, Ralf MT, Sidnei (Véio do Paraná) participaram presencialmente e Zuppo Motoboy por meio de videoconferência[3]. A reunião aconteceu no mesmo dia em que o Presidente da República, Luiz Inácio Lula e o Ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho se reuniram com sindicalistas e trabalhadores no Palácio do Planalto.
Num primeiro momento, a entrevista teve como questão central entender como os entrevistados foram identificados como representantes da categoria e, nessa condição, convidados a participar da reunião com o governo. É oportuno esclarecer que a entrevistadora, por já acompanhar o movimento há três anos, conhecia cada um dos entrevistados, enquanto atores de destaque nas ações nacionais, notadamente por suas manifestações, em espaços públicos e virtuais, voltadas à mobilização da categoria para a causa dos entregadores de aplicativo. A aproximação desses atores a nível nacional, durante os primeiros dois anos de movimento, tinha caráter circunstancial, sem um alinhamento programático de agendas, mas com evidente união quanto aos pontos emergenciais das demandas.[4]
Sinalizando uma potencial mudança no grau de coordenação da rede de entregadores, os entrevistados noticiaram que o movimento havia avançado para uma articulação nacional mais forte, consubstanciada em uma associação informal chamada de “Aliança dos Entregadores de Aplicativo” (AEA). Todos os participantes entrevistados registraram estar associados à AEA, exercendo, enquanto agentes multiplicadores em uma rede informal e dinâmica, o papel de interlocução entre a AEA e seus sindicatos, suas associações, seus movimentos sociais e seus seguidores locais. Galo e Ralf MT destacaram que a Aliança simbolizava o “melhor momento dos entregadores até agora”. Demandados sobre quem participava da AEA, Ralf MT respondeu: “Ela tem associações no meio. Tem pessoas, lideranças, tem [aquelas] rotuladas como lideranças, tem pessoas que se consideram lideranças, são pessoas que realmente lutam há muito tempo e que conseguiram ali, no meio de tudo isso, assimilar a luta e a união, […].”
A AEA, que surgiu em 2022 e, ao tempo da entrevista, contava com 26 (vinte e seis), desponta como uma agremiação de agremiações, em que os participantes assumem o compromisso de levar os interesses locais para discussão em âmbito nacional, reforçando a perspectiva de que os movimentos sociais na era da internet, de fato, se articulam em redes horizontais de vários níveis. Rodrigo Lopes da Silva utilizou a metáfora do “iceberg” para explicar que o grupo, enquanto liderança, seria apenas a “ponta visível”, mas que toda sua força decorreria de uma representação da vontade da base. Assim destacou: “É o que se cada um aqui tem um público que segue a gente, que acredita na gente. E a gente fez com que esse público se tornasse valorizado.”
Essa fala se alinha ao que Ralf MT também havia dito, em fala anterior, para justificar a legitimidade das pautas defendidas pelos membros da AEA: “Normalmente quem está ali tem muitos contatos. Quem tem associação, tem muitos associados. Quem tem uma mídia social, tem muitos seguidores, tem contato com várias pessoas, com pesquisadores, participa de várias atividades relacionadas a entregadores e consegue, assim, saber as dores do dia a dia. Porque ela [as dores] vai mudando, porque a gente lida com algoritmo, tudo muda de um dia para o outro. E a gente tá sempre se atualizando sobre qualquer tipo de dor. A gente está sempre ali para aprender também o que passou despercebido, e a gente vai buscando. E tem que ouvir a galera da Aliança. Porque nada vai acontecer sem a nossa galera. A gente quer tá em qualquer tipo de discussão”.
Em nome da AEA e prestigiando essa visão coletiva, os entrevistados entregaram ao Presidente da República diversas demandas coletadas diretamente da categoria e consolidadas em um documento de doze laudas[5]. Entre as exigências, ganha destaque o pleito por “Trabalho Justo”, assim designado o trabalho que contemplasse cinco princípios: pagamento justo, condições justas, contratos justos, gestão justa e representação justa.
Os cinco princípios da AEA visam à renovação das relações do trabalho com base em um fundamento: justiça. Diante da abrangência teórica que o pleito por justiça pode contemplar, a questão posta em seguida para o grupo de entrevistados foi a seguinte: o que é essa justiça para os entregadores?
Em meio às respostas individuais, que passaram por pleitos como acesso ao código-fonte dos aplicativos, reajuste da remuneração acima da inflação ou equivalente, estabelecimento de sistemas de cotas por modelo de contratação, negociação direta com as plataformas digitais, imposição do modelo celetista para entregadores contratados por Operadores Logísticos[6], surgiu nas falas uma ressalva unificadora: nenhum dos pleitos individuais é mais relevante do que o pleito acordado coletivamente. Nesse sentido, Galo registrou: “Eu acho que essa noção de justiça ainda é muito subjetiva de cada entregador. […] O que a gente está conseguindo com a Aliança dos entregadores nesse momento é conseguir um caminho. […]. A gente está redescobrindo formas de organizar o trabalho. E, no meio disso, a gente está tentando redescobrir formas de conseguir se organizar dentro de tudo isso aí.”
Em uma teorização simples, os entrevistados deixaram claro que a justiça está relacionada à expectativa de satisfação de direitos fundamentais, tais como remuneração, jornada de trabalho, seguridade social, mas é igualmente explicitado que a justiça não é um critério cuja satisfação possa ser avaliada isoladamente pelas plataformas digitais ou pelo governo, mas é uma construção dialógica e democrática que necessariamente passa pela avaliação dos titulares desse direito, os entregadores. Galo seguiu explicando: “Então a gente ainda tá tentando entrar num consenso e se entender. E é o melhor momento dos entregadores até agora, na minha humilde opinião, de poder chegar nesse momento de diálogo para estabelecer o que é o justo. […]. Porque a gente entende que o justo passa por nós. Não tem como dialogar sobre nós sem nós. E não existe construir justiça o governo direto com o aplicativo ou o governo com a central sindical ou o sindicato que não tenha contato nenhum com esses trabalhadores, entendeu?”.
Esse direito de ser incluído no debate democrático também desponta na entrevista como critério de legitimação da construção jurídica, porquanto a transformação do mundo do trabalho é algo complexo demais para ser abordado por aqueles que não vivenciam sua realidade. Essa perspectiva alinha-se à doutrina do Direito Achado na Rua, que defende uma “concepção de Direito que emerge, transformadora, dos espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática.” (SOUZA JUNIOR, 2019, p. 2785). Ilustra essa perspectiva a fala de Zuppo Motoboy: “Porque se vocês quiserem os maiores e melhores estudiosos para o que está acontecendo hoje em dia são realmente a gente que está aqui desde lá do começo. A gente bateu cabeça quatro anos, já discutiu tanto, brigou tanto, e nunca largou o osso. […]. Então nós somos realmente as pessoas que viemos nessa luta há muito tempo, estudamos tudo, não largamos em momento algum nem a profissão e muito menos o movimento. Então, agora, nada mais justo de que poder escutar a gente, que vem nessa caminhada toda.”
O grupo foi então demandado sobre quais formas essa participação assumiria. A respeito, Galo mais uma vez assume a palavra, apoiado pelos demais, e sugere a participação direta dos trabalhadores: “O trabalho era sólido. A terceirização fez ficar líquida e, agora, a uberização transformou em gasoso. O trabalho escapa pelos seus dedos. Ninguém sabe como organizar o trabalho agora, nem o sindicato, nem uma associação, nem uma cooperativa, nem o governo federal. O mais justo, dentro de tudo isso aí, sair todo mundo, sentar na mesa e tentar encontrar uma solução juntos. […]. Não é justo dialogar com quem já estava tentando buscar a solução para isso? Talvez essas pessoas [entregadores] não tenham respostas? Ou talvez essas pessoas [entregadores] não tenham perguntas interessantes?”.
A fala de Galo faz refletir sobre o significado jurídico da proteção ao trabalho hoje, sobretudo quanto à sua abrangência e a necessária articulação no campo dos direitos fundamentais. Nesse contexto, é relevante destacar que a Recomendação n° 198, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aponta, no seu item 1, a necessidade de que os membros da organização promovam revisão periódica de suas leis e regulamentos, “a fim de garantir proteção efetiva aos trabalhadores que realizam trabalho no contexto de uma relação de emprego.” As revisões, todavia, em vez de reconhecerem as novas formas de subordinação e controle do trabalho para garantirem proteção jurídica adequada, tem se voltado a legitimar relações de trabalho marcadas por subordinação jurídica sem, no entanto, assegurarem a integralidade dos direitos fundamentais trabalhistas. Essa preocupação deve estar presente na Comissão que será designada pelo governo para tratar dos trabalhos em aplicativo, porquanto a disciplina jurídica do trabalho plataformizado deve ter como norte o modo mais efetivo de garantir a satisfação de direitos fundamentais trabalhistas, e não o contrário.
Finalizando a entrevista, solicitou-se uma avaliação do grupo sobre o atual momento da mobilização. Houve consenso quanto ao registro de um sentimento de otimismo ante as conquistas de organização do movimento e à abertura de diálogo com o governo. Em síntese da expressão do grupo, Sidnei (“Véio do Paraná”) pontuou: “Vou falar só uma palavra que vai significar muitas. Esperança. A esperança de poder participar da negociação do governo hoje. Uma esperança que a gente não tinha em quatro anos de governo. Esperança que esse grupo da aliança que a gente formou agora, de fato, decida as coisas com sabedoria e discuta as coisas […]”.
Embora esperançosos e cientes do próprio avanço em sua articulação nacional, as lideranças ali entrevistadas ainda não possuem uma estrutura e organização financeira consolidada. Os trabalhadores tiveram que usar recursos próprios para participar do evento no Palácio do Planalto, sendo que alguns contaram com auxílio parcial de centrais sindicais e de apoiadores da causa, mediante financiamento direto ou “vaquinha” online. O enfrentamento de desafios políticos e financeiros, por sua vez, apenas corroboram a solidez do movimento, mediante engajamento e convicção de suas lideranças, assim como servem de denúncia à necessidade de efetiva inclusão desses atores sociais na ativação do Direito do Trabalho na era digital.
Agora, resta saber se haverá abertura para participação efetiva dos trabalhadores na dinâmica jurídica de proteção ao trabalho plataformizado, de modo que seus saberes práticos e sua percepção de justiça sejam, de fato, considerados. Resta saber, ainda, se todos os atores envolvidos nessa demanda conseguirão se articular para reverter a tendência de esvaziamento dos direitos fundamentais nos trabalhos plataformizados, revitalizando o significado do direito fundamental ao trabalho digno na era da informação.
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
DELGADO, Gabriela Neves; CARVALHO, Bruna V. De. Breque dos Aplicativos: direito de resistência na era digital. [S. l.], 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 dez. 2020.
SOUZA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: condições sociais e fundamentos teóricos. Revista Direito e Praxis, Dossiê “10 Anos de Crítica do Direito”. [S. l.], v. 10, n. 4, Dossiê “10 Anos de Crítica do Direito”., p. 2776–2817, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 22 jan. 2023.
TOURAINE, Alain. Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado, [S. l.], v. 21, p. 17–28, 2006. DOI: 10.1590/S0102-69922006000100003. Disponível aqui. Acesso em: 23 jan. 2023.
[1] A pauta de reinvindicações já foi apresentada em Delgado e Carvalho (2020).
[2] Os entrevistados foram identificados neste artigo nos termos por eles autorizados, segundo nomes e apelidos que adotam em sua militância.
[3] A identificação e publicação dos resultados da entrevista foram expressamente autorizados pelos entrevistados em documento impresso e em gravação de vídeo.
[4] Nesse sentido, ver publicação anterior de Delgado e Carvalho (2020).
[5] A pesquisadora e entrevistadora Bruna Vasconcelos de Carvalho é citada, no documento, como especialista colaboradora, haja vista seu contínuo diálogo com a categoria sobre a operacionalização de seus pleitos em termos de interesses jurídicos. Não obstante, a pesquisadora não teve parte na consolidação do texto apresentado, o qual somente fora revelado no dia da entrevista.
[6] Operador Logístico é um intermediário que garante o fornecimento de mão de obra às plataformas de delivery.
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A nova etapa da luta dos entregadores - Instituto Humanitas Unisinos - IHU