09 Dezembro 2022
Françoise Vergès é uma cientista política e reconhecida ativista feminista e antirracista que reside na França. Nascida na ilha de Réunion, território francês colonial ultramarino, integra o Comitê pela Memória e a História da Escravidão. Publicou vários livros sobre esses temas. Entre diversos livros, é autora de Uma teoria feminista da violência (Ubu, 2021) e Um feminismo decolonial (Ubu, 2020)
De modo especial, nosso interesse está em sua visão do que chama feminismo punitivo e feminismo civilizador. Sua crítica às correntes feministas que carregam o Código Penal debaixo do braço, ao mesmo tempo que desativam a potência do movimento de mulheres nas ruas, é extremamente atual. Também a ideia de que, quando se coloca a centralidade na punição individual, as violências estruturais do capitalismo patriarcal, a precariedade, o racismo e o imperialismo são ocultados.
Os livros de Vergès fazem parte da tradição do feminismo abolicionista, que se opõe ao feminismo carcerário. Muitos debates se abrem com esta proposta, principalmente acerca de quais são os caminhos para se avançar rumo a uma sociedade emancipada, livre dos mecanismos de repressão estatal. Além disso, sem dúvida, são contribuições para questionar a naturalização dos mecanismos repressivos.
“Como explicar a propagação de medidas e leis de proteção às mulheres, enquanto aumenta a precarização das mulheres das classes populares e das comunidades racializadas? Por que as feministas, em um contexto de militarização acelerada do espaço público, desejam atribuir ainda mais poder à polícia (racista)?” Estas são algumas das perguntas com as quais Vergès inicia seu livro.
Desde quando o feminismo tem que competir com a direita para aumentar as penas de prisão e atribuir mais poder à polícia? Por acaso, não deveríamos apostar na auto-organização e lutar por medidas que, de fato, transformem a vida das mulheres trabalhadoras, pobres e migrantes? Puxamos esse fio nesta entrevista, esperando que seja um convite para a leitura de seus livros.
A entrevista é de Josefina L. Martínez, publicada por Ctxt, 04-12-2022. A tradução é do Cepat.
Neste mês, seu livro ‘Uma teoria feminista da violência’ foi publicado na Espanha. Aqui, é um debate muito atual. O que é o feminismo punitivo?
O feminismo punitivo é um feminismo que acredita que a punição com penas de prisão resolverá a violência de gênero. É um feminismo que pensa que a repressão deterá a violência, que aqueles que a praticam se verão obstaculizados pela ameaça de punição. Confia na polícia, no exército e no tribunal para deter a violência. É um feminismo que não estabelece uma conexão entre a violência de gênero e a violência sistêmica desencadeadas pelo capitalismo, o racismo e o patriarcado sobre as mulheres e as pessoas não brancas.
Em seus livros, você também discute a ideia de um feminismo civilizador. O que quer dizer?
Eu expliquei esta ideia em meu livro anterior: Um feminismo decolonial. No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, argumentei que as feministas europeias brancas tomaram emprestado um vocabulário e uma ideologia da missão civilizadora colonial/racial. Segundo essa ideologia, a Europa tinha o dever de civilizar os povos colonizados, vistos como atrasados, carentes de razão e entendimento dos princípios liberais.
Para essas feministas, isso significava que as mulheres, especialmente as muçulmanas, deveriam ser educadas e ensinadas sobre os direitos das mulheres e a igualdade entre mulheres e homens. Sua cultura e sua religião não podiam lhes oferecer uma compreensão sobre esses direitos naturais.
Esse feminismo essencializou a cultura e a religião e evitou analisar o papel do colonialismo e do imperialismo na opressão das mulheres no sul global, bem como sua cumplicidade nessas opressões. Lembremos como a intervenção militar dos Estados Unidos no Afeganistão foi justificada com o argumento de “salvar as mulheres afegãs” sem levar em conta a responsabilidade dos imperialismos na dilaceração da sociedade afegã.
A lógica punitivista que isola a violência, como se fosse uma questão individual, acaba ocultando as raízes estruturais das diversas violências do capitalismo, do imperialismo, do racismo... Isto foi muito ampliado com o neoliberalismo.
O neoliberalismo aperfeiçoou o individualismo com sua economia da autorrealização. Ele nos faz acreditar que só precisamos realizar nosso “ser interior” para termos sucesso e nos sentirmos bem. O “eu” se torna um capital que devo fazer frutificar e se não tenho sucesso, a culpa é minha. Isso me separa da comunidade e do mundo. Assim, se sou o alvo da violência, penso que apenas eu, como pessoa, sou o alvo.
Então, não é possível compreender que o capitalismo racial exerce uma violência sistêmica para governar. Essa violência nem sempre é visível e física, também tem a ver com o estresse diário, o cansaço, o esgotamento, o racismo estrutural e o machismo que me corroem. O neoliberalismo teme a organização coletiva.
Seguindo outras autoras, você também apontou que exigir que o Estado capitalista seja a principal instituição que “proteja as mulheres” não só é contraditório, como também contraproducente. De fato, o Estado é um gerador de várias violências contra as mulheres trabalhadoras, pobres, racializadas...
Quando o Estado gera violência – econômica, cultural, de gênero, racial –, seu papel como protetor não é cumprido. As leis de proteção contra a violência foram conquistadas por meio das lutas. Não costumam ser perfeitas, mas podem se contrapor aos piores abusos. No entanto, o Estado tem se tornado cada vez mais um “anti-Estado”, ou seja, um Estado a serviço dos interesses do neoliberalismo, que ataca as leis sociais e restringe a esfera das leis liberais.
É o próprio Estado que não mais cumpre esse papel de proteção imperfeita, mas que, no entanto, atua como barreira. Era a isso que me referia, sem que signifique exigir que o Estado atue. Busco afirmar que não devemos ficar cegos ao fato de que o Estado está cada vez mais a serviço do neoliberalismo, como demonstra a política brutal contra os refugiados, a criminalização da dissidência política e as acusações de terrorismo contra os protestos.
Esse mesmo discurso de proteção às mulheres tem sido utilizado para justificar intervenções imperialistas, racismo e repressão interna. No caso da França, como isto se expressa?
Na França, a islamofobia se tornou uma prova de adesão aos “valores republicanos”. Parece que é o comprimento de uma saia ou a largura de um lenço na cabeça o que determina a liberdade de uma jovem. É um absurdo.
Sara Farris classificou a cumplicidade entre o feminismo branco burguês, as empresas e a extrema direita como “feminacionalismo”. Definitivamente, existe algo disso na França. Acrescento esta confusão deliberada entre os direitos das mulheres e uma civilização “superior”.
Você argumentou que esse tipo de feminismo punitivo tem muita influência dentro do Partido Socialista Francês. Podemos dizer o mesmo na Espanha, em relação ao PSOE. Como a ideia de “proteção” para algumas mulheres combina com a repressão de muitas outras?
Penso que essa esquerda europeia não fez sua própria descolonização, não refletiu sobre a forma como o racismo impregnou suas ideologias e práticas. Continua acreditando na superioridade de seu pensamento e em sua compreensão do que é a libertação. E continua ignorando profundamente outras teorias da libertação. Considera que as teorias feministas negras, pardas e indígenas são menores comparadas ao que se fez na Europa.
Daí a convicção de que as formas de proteção às mulheres elaboradas pela esquerda institucional são as melhores. As mulheres desses partidos também não sentiram a necessidade de descolonizar suas práticas e ideologias. As mulheres não brancas são vistas como “testemunhas”, suas vozes “atestam” sua opressão, mas não são teóricas. É um feminismo paternalista.
Para terminar, se o feminismo punitivo promove uma lógica de punição e vingança, que alternativas têm sido levantadas nos debates sobre este assunto?
Existem muitas estratégias. Por um lado, a ideia de justiça restaurativa que se concentra na reabilitação dos infratores por meio da reconciliação com as vítimas e a comunidade em geral. Esta é uma abordagem da justiça que busca reparar o dano oferecendo uma oportunidade para que os prejudicados e aqueles que assumem a responsabilidade pelo dano se comuniquem e abordem necessidades, após um delito.
Há também uma ideia de justiça restaurativa que busca reparar, de alguma forma, os danos causados às vítimas em decorrência das violações de direitos humanos cometidas contra elas. Isso significa que, por sua própria natureza, tais medidas devem responder tanto ao contexto em questão quanto à realidade vivida pelas vítimas. E existe uma corrente abolicionista que se atreve a pensar na abolição da prisão e no fim da vigilância policial. Estou mais próxima dessa escola teórica. Defende que o investimento em grande escala nas comunidades mais prejudicadas pela violência policial é mais importante do que o endurecimento das penas e pedir mais prisões.
As reformas que estão sendo feitas em muitos países estão assegurando a punição nos próximos anos e não detiveram o encarceramento em massa de pessoas negras e pardas, que são o alvo da repressão policial. A criação da “segurança”, como defendem Angela Davis e Ruth Wilson Gilmore (as mais conhecidas teóricas desta corrente), exige muito mais do que reformas testadas e fracassadas: exige a abolição.
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“O feminismo punitivo não estabelece uma conexão entre a violência de gênero e a violência sistêmica”. Entrevista com Françoise Vergès - Instituto Humanitas Unisinos - IHU