10 Novembro 2022
“Condições de trabalho precárias, água de má qualidade, longas jornadas de trabalho – sabemos que isso não é bom para a nossa saúde, mas temos realmente escolha? O Catar e os patrões nos usam para construir os estádios e depois nos descartam quando nosso corpo não aguenta mais”. Depoimento de um trabalhador nepalês que trabalhou nas obras da Copa do Mundo no Catar.
“O pai de família me disse com voz endemoniada: ‘Se eu te matar, agora, neste momento, seu país não fará nada por você’”. “Baba estava atrás de mim. Quando pude me levantar para encará-lo, ele jogou água fervente no meu braço. Senti minha pele derreter, sem nenhuma dor. Eu estava com tanta raiva, com tanta adrenalina (...) Eles não cuidaram de mim depois disso. Baba e Mama sentaram-se à mesa da sala. Uma arma estava sobre ela, com duas balas ao lado. O kafeel deu a entender que ele poderia me matar se eu não concordasse em fazer um vídeo atestando que eu tinha queimado o meu braço por acidente”. – Testemunhos de duas mulheres quenianas que voltaram para casa depois de trabalharem como empregadas domésticas na Arábia Saudita. A primeira foi estuprada pelo filho da família para a qual trabalhava.
Através de cerca de sessenta depoimentos – desde o operário que constrói os estádios da Copa do Mundo até a empregada que trabalha nas casas sauditas ou catarenses, passando por agentes de segurança, trabalhadores de restaurantes e até mercenários enviados para a guerra, às vezes à força, na Líbia ou no Iêmen em nome dos Estados do Golfo –, uma obra cativante Les esclaves de l’homme-pétrole (Os escravos do rei do petróleo) [1] dá voz aos escravos modernos cujo trabalho forçado possibilitou a organização da Copa do Mundo no Catar – e sobre o qual se constrói a “prosperidade” de todos os Estados do Golfo.
A entrevista é de Guy Zurkinden, publicada por A L’Encontre, 04-11-2022. A tradução é do Cepat.
Através dessas histórias, Sébastien Castelier e Quentin Müller, jornalistas independentes, traçam os contornos de toda uma região, o Golfo Pérsico, onde “o rei do petróleo (…) está na origem de um comércio de escravos modernos que se tornou possível graças ao silêncio da comunidade internacional e à pobreza e à corrupção de Estados cúmplices da Ásia e da África. Usamos o termo “escravos” porque não é excessivo qualificar dessa maneira um número significativo de trabalhadores asiáticos e africanos do Golfo”.
Situação que não impediu que o conselheiro federal UDC (União Democrática do Centro) Ueli Maurer, o “Ueli o normal”, anunciasse com orgulho que viajará ao Catar para assistir aos jogos da seleção suíça. É verdade que Maurer, que comparou (em 2014) as mulheres a “utensílios de cozinha usados”, deveria se sentir como um peixe na água (ou na areia?) em um Estado em que as mulheres continuam submetidas aos seus tutores masculinos (marido, pais, irmão, avô ou tio em geral) e ficam sujeitos à autorização deste último “para tomar decisões essenciais da vida, como casar, estudar no exterior com bolsa de estudos do governo, ocupar muitos empregos no serviço público, viajar para o exterior até certa idade e receber certos tipos de cuidados de saúde reprodutiva” [2].
Juntando o útil ao agradável, o conselheiro federal UDC talvez também aproveite essa ocasião para discutir com o emir o aumento da participação do fundo soberano do Catar no banco Credit Suisse [3], ou mesmo a futura constituição do banco privado Julius Bär no emirado [4].
Através de sessenta testemunhos, vocês dão voz aos trabalhadores migrantes nos países do Golfo, bem como às suas famílias. O que motivou essa iniciativa?
Muitos documentários e reportagens de qualidade têm demonstrado os abusos sofridos pelos trabalhadores em empresas no Catar. Mas o que temos ouvido muito menos é a voz desses trabalhadores. Era quase impossível conhecer suas motivações, seus sentimentos e sua intimidade. Essas pessoas se viram assim duplamente despossuídas: despossuídas de seus direitos e dignidade no seu trabalho, depois despossuídas de sua palavra na mídia. Por isso, tentamos devolver sua parcela de humanidade a esses trabalhadores, colocando suas histórias no centro do nosso livro.
Este ano vocês visitaram a zona industrial de Doha, a capital do Catar, que abriga 400 mil trabalhadores que trabalham nas obras da Copa do Mundo. O que vocês constaram?
Nesta zona, que serve de dormitório isolado do centro da cidade, os trabalhadores da África e da Ásia (ali não há trabalhadores europeus ou árabes, porque são os trabalhadores africanos ou asiáticos que fazem os trabalhos duros e mal pagos) estão alojados em prédios insalubres. Ocupam quartos superlotados, cheios de poeira e dormem em beliches infestados de pulgas. Muitas vezes, há apenas dois fogões para trezentos trabalhadores. A água é de má qualidade. Um verdadeiro depósito de escravos!
Somam-se a essas condições de vida catastróficas os abusos sofridos por esses trabalhadores: alguns trabalham até nove meses sem um dia de folga, com medo de serem demitidos; outros passam fome porque seus salários não são pagos regularmente todos os meses; as jornadas de trabalho podem chegar a 12 horas, em meio a um calor sufocante; exaustos, os trabalhadores caem no alcoolismo; os acidentes de trabalho são escondidos...
As autoridades do Catar, no entanto, destacam seu progresso social – um argumento que foi retomado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT)…
O Catar diz que melhorou sua legislação trabalhista. É também o único país do Golfo que aboliu a kafala – este sistema que permite ao empregador exercer um poder quase absoluto sobre um trabalhador, proibindo-o de mudar de emprego ou de deixar o país sem o seu consentimento.
O problema é que esses novos direitos permanecem teóricos. Por quê? Porque se um trabalhador decidir reivindicá-los na justiça, as consequências serão imediatas: ele não será mais pago, perderá o emprego e corre o risco de ser expulso. O procedimento jurídico, por outro lado, levará meses, durante os quais o trabalhador não poderá enviar nada para a sua família. Esses trabalhadores migrantes não têm tempo para a justiça. As empresas sabem disso e continuam seus abusos impunemente.
O jornal The Guardian estima em 6.750 o número de trabalhadores que morreram nos canteiros de obras da Copa do Mundo. O que pensa sobre esse número?
Esse número teve o mérito de dar publicidade às más condições de trabalho no Catar e suscitar a indignação internacional pela organização da Copa do Mundo nesta região. Penso, contudo, que ele subestima a magnitude do fenômeno. O jornal britânico não levou em conta as múltiplas mortes de trabalhadores de países africanos ou filipinos. Tampouco levou em conta a trágica realidade de muitos trabalhadores que desenvolvem patologias no Catar devido às desastrosas condições de trabalho, sendo enviados de volta aos seus respectivos países de origem quando adoecem e ali morrem.
Poderíamos também ampliar a perspectiva: quantos trabalhadores migrantes morreram construindo o prestígio do Catar – essas construções e esse urbanismo luxuoso que foram necessários para o emirado conseguir sediar a Copa do Mundo?
O que leva esses migrantes a partir para a Península Arábica, apesar dos riscos?
Uma necessidade vital. Esses trabalhadores vêm de países muito pobres: Nepal, Índia, Bangladesh, Uganda, Quênia, Filipinas, etc. Sem o salário que eles enviam todos os meses dos países do Golfo, suas famílias estariam impedidas de comer todos os dias e seus filhos não poderiam ir à escola. É por esta razão que eles sofreram abusos durante anos na região do Golfo.
E é também por causa dessa dependência que esses trabalhadores se encontram em um equilíbrio de poder extremamente desfavorável em relação ao seu empregador.
Vocês entrevistaram trabalhadoras domésticas. Suas histórias são assustadoras...
Trabalhar de dia e de noite, espancamentos, violações, torturas. Os abusos sofridos pelas trabalhadoras domésticas estão um grau acima de todos os outros. Por uma razão: o inferno por que passam acontece na intimidade dos lares. É aqui que se revela a verdadeira face dessas famílias ricas da Arábia Saudita, Catar, Emirados ou Bahrein, que gozam de quase total impunidade.
O livro de vocês descreve uma “escravidão moderna” que vai muito além do Qatar…
O trabalho forçado dos migrantes é praticado por todos os países do Golfo. Esse sistema persiste desde a criação desses países e sua independência – que data do pós-Segunda Guerra Mundial. A kafala é um legado da escravidão, abolida muito tardiamente na região. Para dar um exemplo: até a década de 1960, as grandes famílias do Catar enviavam seus escravos para trabalharem nas plataformas de petróleo britânicas, depois se apropriavam dos salários pagos por essas empresas.
Costuma-se dizer que o petróleo é a principal riqueza dos países do Golfo. Na realidade, é mais a sua força de trabalho estrangeira. No Catar, há 2,6 milhões de estrangeiros para 300 mil catarianos! Sem seu trabalho, não haveria nada: extração de gás, construções, aeroportos, restaurantes, transporte, nada disso. Sem os migrantes, esses países não existiriam – apesar de todas as suas reservas de petróleo, gás e suas imensas reservas financeiras!
Existem maneiras de combater essa escravidão?
É muito difícil para os trabalhadores migrantes defender seus direitos, devido à sua extrema dependência do empregador. E em vários desses países, especialmente no Catar, os sindicatos são simplesmente proibidos!
Penso que cabe aos países africanos e asiáticos, de onde vêm esses trabalhadores migrantes, agir, unindo-se para reivindicar juntos mais direitos e dignidade para seus cidadãos. Infelizmente, estamos longe disso.
O que acha do debate em torno do boicote à Copa do Mundo?
Como jornalistas, nosso trabalho não é dar ordens. Nosso trabalho foi mostrar como essa Copa foi organizada e, sobretudo, como ela se encaixa em uma dinâmica que domina toda a região do Golfo.
No entanto, penso que é muito importante estar ciente e indignar-se com o que aconteceu em torno desta Copa do Mundo no Catar. Um país começa a ir mal quando sua população deixa de se indignar por coisas sérias. Então cabe às pessoas formarem sua própria opinião.
1. CASTELIER, Sébastien; MÜLLER, Quentin. Les esclaves de l’homme-pétrole. Éditions Marchialy, 2022.
2. Amnesty International: Rapport sur le Qatar 2021.
3. Les Echos, 2 de novembro de 2022.
4. Le Temps, 7 de junho de 2022.
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Catar-Arábia Saudita. “Os reis do petróleo e seus escravos”. Entrevista com Quentin Müller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU