25 Outubro 2022
"Apoiar a soberania alimentar significa colocar-se contra as práticas iníquas e danosas da praticadas pela agroindústria (monocultura, uso intensivo de produtos químicos sintéticos, alimentos ultraprocessados), bem como por boa parte da distribuição em larga escala; colocando no centro, em vez disso, o direito ao alimento saudável e nutritivo para todos, juntamente com os direitos humanos fundamentais e a saúde do planeta", escreve Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (Giunti e Slow Food Editore), no qual relata suas conversas com o Papa Francisco sobre a "ecologia integral” e o destino do planeta, em artigo publicado por La Stampa, 24-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nas últimas horas fala-se muito em soberania alimentar, já que os dois termos foram colocados lado a lado no novo ministério com a palavra "agricultura". Isso só pode me agradar porque a soberania alimentar é a base do trabalho do Slow Food há trinta anos. Por isso que gostaria de esclarecer sua gênese e significado profundo; trata-se de um conceito importante, essencial para o futuro da humanidade e que não deve ser confundido nem com soberanismo nem com autarquia.
Em primeiro lugar, é uma expressão que surge e evolui da experiência e análise crítica de grupos de agricultores à luz dos efeitos causados pelas mudanças nas políticas agrícolas durante os últimos vinte anos do século passado. Corria o ano de 1986 e a elite da política internacional reunida em Genebra decidiu, numa sessão plenária da Organização Mundial do Comércio, incluir a produção primária no Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e do Comércio.
A partir desse momento, também as escolhas relativas à produção e comercialização de alimentos, meio ambiente, acesso à terra e à cultura ligada à vida nos campos, estariam sujeitas às regras neoliberais do mercado internacional. Como contrarresposta, em nível global começaram a se formar movimentos de base do mundo camponês com o objetivo de defender o verdadeiro valor dos alimentos não como uma mercadoria a ser comercializada, mas como um direito humano a ser garantido e protegido.
Nascido na sociedade civil, esse conceito passou a fazer parte do vocabulário institucional internacional em 1996, quando algumas organizações internacionais reunidas na FAO em Roma lhe conferiram uma definição exaustiva. O princípio fundamental é a autodeterminação dos povos na escolha de suas políticas agrícolas para que estejam em sintonia com o tecido ecológico, econômico e social e garantam o acesso a alimentos saudáveis, nutritivos e culturalmente apropriados.
Ao longo dos anos, o conceito de soberania alimentar foi testemunhado por milhões de agricultores em todos os continentes. A organização Via Campesina fez dele a bandeira de sua luta. Nossa própria rede Terra Madre, que se reuniu em Turim há apenas um mês, é uma expressão viva disso: em defesa da biodiversidade e da dignidade dos povos. O Estado do Equador a consagra na constituição (Art. 281) como uma obrigação do Estado, e as Nações Unidas a identificam como uma pré-condição necessária para alcançar o objetivo estratégico "Fome Zero" da Agenda 2030.
Apoiar a soberania alimentar significa colocar-se contra as práticas iníquas e danosas da praticadas pela agroindústria (monocultura, uso intensivo de produtos químicos sintéticos, alimentos ultraprocessados), bem como por boa parte da distribuição em larga escala; colocando no centro, em vez disso, o direito ao alimento saudável e nutritivo para todos, juntamente com os direitos humanos fundamentais e a saúde do planeta. Significa reconhecer o papel fundamental dos pequenos produtores de todos os tipos, pequenos agricultores e agricultores familiares, com mulheres (principais guardiãs da soberania alimentar das famílias no mundo) e jovens (dos quais dependerá a alimentação do futuro), em primeiro plano.
Também é reivindicar a importância das práticas agroecológicas, com maior facilidade de acesso a terra, água e sementes; contra a monocultura e as práticas extrativistas. Além de afirmar a importância de fortalecer os sistemas alimentares enraizados no território em relação às cadeias de abastecimento globais que se mostraram em toda a sua vulnerabilidade, primeiro com o Covid-19 e depois com o conflito na Ucrânia.
Se aplicada corretamente, a soberania alimentar cria uma tensão positiva entre dimensão local e global e permite que os povos sejam verdadeiramente livres na escolha do que produzir e consumir, colocando no centro o bem-estar das pessoas e do planeta. Acrescento: é tão importante e transversal que não deveria ser privilégio do ministério das políticas agrícolas. Deveria fazer parte, por exemplo, do ministério do meio ambiente que administra os recursos naturais defendendo a biodiversidade e os ecossistemas.
Do ministério para as políticas sociais porque hoje a fome não é sinônimo de indisponibilidade de alimentos, mas de falta de recursos para ter acesso a eles. Assim como aquele da saúde, porque a má nutrição é a causa crescente de doenças graves como diabetes, problemas cardiovasculares, obesidade e tumores. A soberania alimentar, portanto, não quer ser nem um conceito nostálgico e antiquado (o café de chicória não voltará a ser o único disponível), nem um fechamento em relação ao mundo exterior (continuaremos a comer bananas e abacaxis). Nesta fase é essencial compreender os verdadeiros significados das palavras, caso contrário será muito difícil pegar em falta aqueles que propositalmente poderiam fazer um uso diferente delas.
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Soberania alimentar, permite que os povos sejam livres: o desafio é aplicá-la corretamente. Artigo de Carlo Petrini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU