24 Outubro 2022
"Os saciados não sabem sonhar. Os medrosos temem sonhos e visões. A saciedade e o medo nos levam a multiplicar as defesas, a garantir segurança aos próprios espaços, a fortificar as identidades, a atacar arbitrariamente, a falar duro, a guerras sem fim", afirma o historiador italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, ao abrir mais uma sessão dos Encontros Internacionais de Oração pela Paz, no dia 23-10-2022, em Roma. O encontro se realiza até o dia 25 de outubro e contará também com a presença do Papa Francisco. O discurso inaugural é publicado por Comunidade de Santo Egídio, 23-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo Riccardi, "essa situação leva a imaginar visões de paz com mais audácia. Uma imaginação profética ou poética, enfim, uma visão, é realmente necessária em um tempo limitado por poucas alternativas. Quando mentes e corações se abrem, nascem caminhos para responder ao grito da paz".
Nestes dias se reúnem em Roma líderes e crentes de várias religiões com humanistas leigos, não nos redutos de um laboratório, mas diante dos cenários do mundo, diante da guerra. A guerra, de fato, voltou ao solo europeu com a invasão russa da atormentada Ucrânia e ainda não se vê uma saída. Afinal, esse nosso mundo globalizado, por configuração, pluralidade de atores e poder de armamentos, favorece que as guerras sejam eternizadas sem acabar, como é hoje na Síria, onde há garotos cuja jovem vida só conheceu o tempo de guerra.
É preciso escutar o "grito da paz" que vem de várias partes do mundo! Estes são também dias de oração e espiritualidade. A oração é irmã do grito de dor de quem sofre com a guerra e a pobreza. Em cada clamor e invocação se expressa o pedido de um futuro mais humano.
O encontro destes dias é fruto de uma história que gostaria de evocar brevemente. Viemos de longe. Como Comunidade de Santo Egídio, nascida em 1968 entre jovens, pobres e periferias. Como amigos do diálogo, viemos do grande século que foi o século XX, mas também de uma época de terríveis conflitos. O esquecimento excitado do presente nunca foi nosso. Hannah Arendt escreveu: “memória e profundidade são a mesma coisa, ou melhor, o homem só pode atingir a profundidade através da memória”. A profundidade é um recurso de liberdade diante dos prepotentes simplificadores de nosso tempo, mas em si tão complexo, aliás inexplicável com as simplificações.
As religiões não são fósseis, que a modernidade e o pensamento científico acabarão por enterrar, como acreditava boa parte do pensamento público ocidental. São organismos vivos: reúnem os anseios das comunidades enraizadas nas terras, próximas da dor, da alegria e do suor das pessoas. Vi as orações dos desesperados em lugares desumanos ou nas terríveis jornadas dos refugiados. As religiões não se fecham na bolha como muitas instituições. Em geral, permanecem na terra e entre as casas: a sinagoga, a igreja, a mesquita, o templo. Por isso, se se quer humilhar a alma de um povo, se destroem os lugares sagrados e se violam as mulheres.
Fomos testemunhas de uma virada: o encontro de 1986 em Assis, a pátria de São Francisco. Na época, João Paulo II propôs uma visão: as religiões, não umas contra as outras, mas juntas e rezando pela paz. Uma visão que superava a ignorância mútua e os conflitos entre os crentes. Ainda era a época da guerra fria. João Paulo II olhou além e intuiu que toda religião, quando tende à paz, dá o seu melhor.
Assis em 1986 foi uma visão inspiradora para nós. Uma mensagem que preparava a globalização na perspectiva de um destino comum na diversidade. Tentamos ser fiéis a essa visão. Eu a expresso nas palavras da antropóloga francesa Germaine Tillion, que sobreviveu ao campo de concentração nazista: "Todos parentes, todos diferentes".
Continuamos, por trinta e cinco anos, até aqui, o caminho do diálogo com encontros, conhecimentos, criando uma rede de amizade e na troca, fazendo etapas em várias partes do mundo, reunindo figuras espirituais sábias, em busca da paz, almas inquietas, leigos pensativos. Sempre em comparação com a realidade histórica, humana e política do momento. O diálogo, mesmo quando acontece sobre o Eterno, acontece na história concreta. Nesse sentido, as palavras são importantes, mas os fatos também: por exemplo, a paz nasceu em Moçambique, depois de uma guerra que causou um milhão de mortos, negociada há trinta anos, em 1992, em Roma, em Santo Egídio.
A queda do Muro e a globalização abriam uma época para realizar as esperanças do século XX. Tudo - economia, finanças e mídia - se unificava, inaugurando uma bela época global. Não se cuidou em grande parte de negociar com a globalização vencedora, muitas vezes atribuindo-lhe o papel de providência.
As religiões são “os globalizadores originários”, escreve Miroslav Volf; professam valores universais e acreditam em uma família humana. A globalização continua sendo uma grande oportunidade para aqueles que visam o diálogo. Mas tem que trabalhar nisso! Compartilhamos com convicção o que o senhor, presidente Macron, disse aos Bernardinos em 2018: "Não há nada mais urgente hoje do que aumentar o conhecimento mútuo dos povos, das culturas e das religiões".
De fato, o novo gigante global precisa de uma alma. A alma cresce no diálogo, na amizade, na oração. "Quem é realmente sábio?" – perguntava-se um discípulo do rabino Akivà no segundo século. Ele respondia: "Quem aprende com cada homem". O diálogo e a escuta são a estrutura fundamental das tradições religiosas. Diálogo com Deus: oração; com textos sagrados; diálogo entre todos, também porque, como o poeta russo de origem ucraniana, Yevtushenko escreveu: “não existem no mundo homens não interessantes”. O Papa Francisco, visitando Santo Egídio anos atrás, exclamou com preocupação: "O mundo sufoca sem diálogo".
Algumas comunidades religiosas, no entanto, fecharam-se no separatismo da história comum com autossuficiência. Além disso, os passos das religiões antigas são às vezes cautelosos. Alguns setores religiosos sacralizaram as identidades nacionais. Outros, infelizmente, perderam suas almas com a violência, o terrorismo e o radicalismo, afastando-se da religião, anda que se apresentando como autêntica religião. Este é um drama para todos.
O mundo global trouxe a paz, mas também produziu muita guerra. A geração da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto desapareciam em um mundo dado ao esquecimento. Ao longo dos anos, cresceu a conformação com a ideia de que a guerra é uma companheira natural da história. Foi se apagando aquele patrimônio de tensões herdadas do século XX que tendiam a unir os destinos além das fronteiras. Giorgio La Pira, o iniciador dos diálogos mediterrâneos, chamava-as de “tensões unitivas”: tensões para a paz, ecumenismo, responsabilidade pelos mundos mais pobres, cooperação por uma justiça planetária. Isso está acontecendo hoje, justamente enquanto a crise da terra revela, com evidências indiscutíveis, que temos um único destino: "todos no mesmo barco", disse o Papa Francisco durante a pandemia.
“Todos no mesmo barco”. O maliano Lassana Bathily, testemunha dos eventos terroristas em Paris em 2015 no supermercado kosher, quando pretensos muçulmanos mataram judeus e outros, salvou alguns judeus de terroristas: "Sim, ajudei os judeus", disse. "Somos todos irmãos. Não se trata de judeus, cristãos e muçulmanos, estamos todos no mesmo barco”. Do imigrante maliano ao papa de Roma, a consciência do destino comum percorre os mundos religiosos e as pessoas.
Nessa consciência estão os recursos para uma imaginação alternativa que desenhe uma visão de paz diante de pensamentos gastos e resignados. Sem imaginação alternativa, permanecemos prisioneiros de um presente sem esperança, destinados a sofrer a iniciativa dos outros ou sua prepotência. Utopia? Sonho? A imaginação é uma visão oferecida a todos. Na memória, encontramos elementos e energias para uma visão de paz. Uma política realista precisa de uma visão mais ampla à luz da qual se mover. A esperança começa com a recusa de uma leitura antecipada do presente, sem olhar mais longe. O verdadeiro realismo precisa dessa visão. O senhor, Sr. Presidente Mattarella, disse recentemente em Assis: “Não nos rendemos à lógica da guerra, que consome a razão e a vida das pessoas e empurra para um crescimento intolerável de mortes e devastação. O que empobrece o mundo e corre o risco de levá-lo à destruição”.
Tudo isso, porém, não é tão evidente. Os saciados não sabem sonhar. Os medrosos temem sonhos e visões. A saciedade e o medo nos levam a multiplicar as defesas, a garantir segurança aos próprios espaços, a fortificar as identidades, a atacar arbitrariamente, a falar duro, a guerras sem fim.
Essa situação leva a imaginar visões de paz com mais audácia. Uma imaginação profética ou poética, enfim, uma visão, é realmente necessária em um tempo limitado por poucas alternativas. Quando mentes e corações se abrem, nascem caminhos para responder ao grito da paz. Gostaria de concluir com um poeta, Muhammad Iqbal, conhecido como o “pai espiritual do Paquistão”, com algumas palavra tiradas do poema O Destino de 1923:
“Tenha, pois, a ousadia de crescer, ouse! O espaço não é tão estreito!
Ó homem de Deus! Não é estreito o espaço do reino dos céus!”
Não, o espaço é maior do que acreditamos: a realidade é maior do que as representações dos realistas, dos assustados, dos agressivos.
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‘A situação atual do mundo leva a imaginar visões de paz com mais audácia’. Artigo de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU