WikiFavelas: O presente do futuro dos jovens periféricos

Estátua da ex-vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018 | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

08 Outubro 2022


Dicionário Marielle Franco mostra os dramas e anseios das crias da quebrada. A escola é espaço de disputa – e mobilização. “Tirar venda dos olhos” vai além de luta por políticas públicas: alia sonhos coletivos e novas lógicas solidárias.

 

A reportagem é publicada por Dicionário de Favelas Marielle Franco e reproduzida por Outras Palavras, 05-10-2022. 

 

Nascido e produzido por jovens militantes das periferias do Rio de Janeiro, o Programa Papo na Laje se apresenta como um programa televisivo interessado nas múltiplas experiências de protagonismo das juventudes de favelas e periferias do estado. Diante das diferentes linguagens da comunicação popular e comunitária, seus idealizadores promovem encontros entre diferentes atores com distintas inserções sociais para “resenhas” que se transformam em episódios temáticos. Como o nome do programa evidencia, o cenário dessas resenhas é a favela, do topo das lajes das casas de moradores(as). Por isso, toda quinta-feira, às 18 horas, estreia um novo episódio no canal da TV Comunitária do Rio de Janeiro (TVCRio) e no YouTube, e o programa já está em sua segunda temporada de gravações. Dando destaque para a trajetória de cada um(a) dos convidados(as), o programa visa conhecer as ações e os sonhos que os movimentam, além de visibilizar organizações que já atuam nesses territórios, fortalecendo o contato e intercâmbio entre os movimentos sociais em atuação.

 

Segundo seus idealizadores, o Papo na Laje surgiu da convergência de percursos formativos e de vida de alguns sujeitos envolvidos na produção: alguns ligados ao Movimento Sem Terra (MST) e ao Brasil de Fato, e outros que já acumulavam diferentes experiências com juventudes, como a participação no Levante Popular da Juventude e em programas do governo federal, como o ProJovem. Dessa convergência surgiu a vontade de debater não somente as violências praticadas por agentes do Estado que os jovens sofrem nas grandes regiões metropolitanas, mas também as violências ligadas à negação de direitos como o direito ao trabalho, ao lazer, à cultura, à educação e à saúde. Essas são as primeiras preocupações, inquietações e conversas da equipe do projeto.

 

Esse formato televisivo tem muita relação com o próprio objetivo militante do projeto. Nas palavras de Rodrigo Marcelino, um de seus coordenadores:

 

“Por um lado, o MST quer avançar na disputa ideológica, na disputa de narrativas do povo. E nesse campo, as ferramentas do rádio e da TV são dois elementos centrais, inclusive diante da incorporação de novas tecnologias como plataformas de streaming, o YouTube, etc. O objetivo de fazer essa disputa ideológica para a organização popular coloca a necessidade de dominar o ‘fazer rádio’, o ‘fazer televisão’ e toda essa expertise. O projeto envolve a formação de profissionais na linha política de uma visão popular do Brasil e do mundo, de construção de um projeto popular para o Brasil e com disposição para disputar esse projeto no seio da sociedade”.

 

Como pano de fundo da concepção do programa estão as experiências políticas, organizativas e acadêmicas do leito histórico do Movimento Sem Terra (MST), ligadas ao método e relevância da realização do trabalho de base. Ao longo do seu desenvolvimento enquanto movimento social, o MST construiu a convicção de que para organizar o povo em seu território é preciso partir da escuta de suas preocupações e questões. E isso tem a ver com o olhar especial que esse movimento popular do campo tem, hoje, para a cidade.

 

Essa visão mais ampla se manifesta na escolha de sujeitos centrais para se organizar nas cidades. Nessa perspectiva, o Papo na Laje é parte desse esforço de escuta ativa dos jovens, que visa dar passos além no sentido de organizá-los em seus territórios. No seu primeiro episódio, que foi ao ar em novembro de 2021, o tema debatido foi “Ser Jovem Hoje”. O episódio foi gravado na favela Cerro Corá, na zona sul do Rio, bem abaixo do Corcovado e com vista para o Cristo Redentor, com a presença dos convidados Palloma Soares e Patrick Pereira e apresentação de Juliana França.

 

Trata-se de uma roda de conversa que transcorre no ambiente dos participantes, uma laje de favela, de maneira informal e com o estabelecimento de grande proximidade e convergência entre eles. Tal informalidade não esconde a riqueza dos discursos, a profundidade das vivências e dos projetos político-culturais, o comprometimento e a responsabilidade com a transformação social que implementam no seu cotidiano. A possibilidade de falar sobre temas como juventudes, territórios, politização, ação coletiva e sonhos se dá em um espaço e tempo nos quais a “língua que não é bonita” se mostra potente e insurgente.

 

É pensando, justamente, na retórica dessas narrativas, que a equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco se propôs a analisar alguns dos temas tratados neste primeiro episódio. Para tanto, nos baseamos em uma análise que buscasse não só destacar os principais pontos em seus discursos, mas também a postura, a aproximação e a argumentação mobilizada por cada um(a) dos(as) convidados(as). Pretendemos, aqui, tratar um pouco dessa conversa a partir de um olhar para:

 

1) as juventudes;

2) os territórios;

3) a militância;

4) a ação coletiva; e

5) os sonhos e o futuro presentificado.

 

(Introdução: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco)

 

Ser jovem hoje” – episódio nº 1: assista ao vídeo!

 

 

Juventudes: fazendo a gira girar

 

Participantes do debate: Juliana França, Palloma Soares e Patrick Pereira.

 

A reflexão sobre ser jovem hoje traz, neste episódio, várias das facetas das juventudes da atualidade. Juventudes mesmo, no plural. Para além de uma marcação geracional, que carregaria, em si, certas percepções de mundo, “ser jovem hoje” é também interagir com as continuidades e descontinuidades do passado, do presente e do futuro. É ser criança, ser adulto e ser velho. É, portanto, aprender com as lideranças e também com as “crias”, porque o futuro, na verdade, é o agora. E nós transitamos pelo tempo e pelo espaço. É isso que faz a gira girar!

 

A conversa realizada entre três jovens de uma mesma geração transcende o espaço temporal. É a partir de experiências compartilhadas como vivência favelada e os caminhos que se encontram e circulam neste percurso – que também é de potência, de luta e de construção de futuro – que as juventudes são construídas. É ser jovem e ser mãe. É ser jovem e ser do movimento estudantil. É ser jovem e ser trabalhador(a). Neste sentido, tanto as crianças são parte da construção, quanto os “velhos-jovens”, que são referência de luta e de organização comunitária. Até mesmo porque, para esses jovens, o olhar de quem vive no território é que faz a diferença, independente das gerações.

 

Com especial atenção para o protagonismo das juventudes durante a pandemia, assumindo as redes do território desde a entrega de cestas básicas à comunicação comunitária, o que é reivindicado por eles(as) é que são as juventudes que têm construído soluções de uma maneira mais democrática, pois, quando existem, as políticas públicas para favelas e periferias não contemplam as especificidades de cada território, e muitas vezes não atendem àquelas pessoas que reconhecidamente têm maior necessidade. O senso comunitário e a solidariedade que é mantida em torno dos territórios é o que faz a política acontecer. Afinal, são os jovens que sempre estiveram à frente dos grandes movimentos sociais no Brasil e fora dele. Nas favelas e periferias, o protagonismo atual é das juventudes.

 

Territórios: quem vive faz a diferença

 

A construção da identidade dos jovens está fortemente imbricada com o pertencimento ao território, como uma comunidade de sentidos, nucleada pelo conceito de cria. Cria é quem vive a favela, enfrenta cotidianamente seus problemas, busca soluções individuais e coletivas para superá-los, estabelece uma teia de relações com outros moradores, sabe como os demais vivem o dia a dia, conhece as potências e inovações que emergem nos múltiplos coletivos e nos becos.

 

O conceito de cria articula a identidade pessoal com a memória coletiva, com as relações sociais, com os recursos existentes em um dado território, com as necessidades e com as potencialidades, com os dramas comuns com as organizações coletivas. É um conceito nucleador e mediador, que dá sentido aos sentimentos coletivamente compartilhados. São aqueles que falam e entendem a sua língua, de pessoas que não aprenderam a falar bonito e nem a ouvir bonito. A língua aparece como parte do processo de dominação na escola tradicional e como possibilidade de comunicação e aprendizagem quando os professores populares falam como os jovens das favelas.

 

Porém, a noção de território explode os limites geográficos quando ela é tratada a partir das identidades construídas ao longo das trajetórias de luta, das opções políticas e das contingências vivenciadas por cada um, em um processo que se constrói junto, mas não tem fim: Território Direitos Humanos, Território Artista de Periferia, Território Mãe Militante.

 

Enquanto o território físico e social, encapsulado pelo conceito de cria, demarca a separação entre o interior e o exterior, entre o dentro e o fora, entre o nativo e o estrangeiro, o território como identidade construída politicamente rompe barreiras físicas e sociais, cria novas possibilidades, redes de relações que englobam aqueles que juntos querem transformar a realidade.

 

A transversalidade cria/não cria diferencia os moradores daquelas pessoas que falam da favela mas não vivem a favela. Também inclui o Estado e suas políticas públicas que tratam de forma homogênea situações singulares, assim como mercado que vampiriza as inovações produzidas nas favelas, sem que haja retorno financeiro para os moradores. Já o território construído politicamente permite aos jovens favelados circular por outros espaços e criar novas inserções sociais, bem como trazer projetos para dentro da favela. Por fim, a articulação entre o território que delimita e o que explode os limites físicos possibilita entender as relações de desigualdade e exclusão a partir da chave do racismo estrutural e a possibilidade de mudança e fabulação de uma nova realidade a partir da construção do comum.

 

Militância: tirar a venda dos olhos

 

A reflexão sobre ser jovem hoje também aparece atravessada pelo processo de tomada de consciência sobre a complexidade da realidade que os cerca, e que na imagem trazida por eles é representada pela “retirada de uma venda dos olhos”. Tal processo é experienciado – em oposição à ideia de racionalizado – nos primeiros contatos com os movimentos sociais que acessam as juventudes, em especial os grêmios escolares e movimentos estudantis.

 

Tal experiência é relatada como uma espécie de choque que provoca um ímpeto de mobilização ao redor. Fala-se abertamente sobre a preocupação em contagiar e expandir essa experiência para as pessoas que vivem ao redor sem ter “noção do que se passa”, ou seja, sem desenvolver uma capacidade analítica que permita a construção de uma visão crítica sobre como processos sociais mais complexos – de natureza econômica, racial e política – estruturam e atravessam o dia a dia das populações faveladas e periféricas.

 

Nota-se também que a escola é o espaço preferencial desse despertar de consciência dos jovens sobre os problemas sociais, mas não de um ponto de vista moral ou estritamente didático: do ponto de vista do seu potencial agregador, de reunião das juventudes num mesmo espaço de socialização, que está longe de ser indisputado. Em oposição aos professores tradicionais que repassam a responsabilidade da formação ao interesse do próprio indivíduo, em sua fala, os jovens destacam a importância dos esforços de aproximação e de “tradução” da realidade realizados pelos educadores do campo popular. Numa perspectiva que endossa a concepção freiriana de educação, enfatiza-se a importância da utilização de múltiplas linguagens e de recursos artísticos variados no processo de ensino-aprendizagem que têm marcado iniciativas no campo popular tais como os pré-vestibulares sociais. E apontam que o diferencial entre esses espaços é precisamente o fato de que os educadores populares vêm do território, têm a mesma origem dos educandos e, portanto, tendem a apresentar maior sensibilidade às dificuldades que se apresentam ali, preocupando-se com a adaptação das linguagens utilizadas nesse processo.

 

Diante disso, torna-se evidente que os movimentos sociais desempenham um papel fundamental nesse processo de tomada de consciência política e social, que é, em si, tão doloroso quanto empolgante. Nas palavras repetidas por eles: “tão libertador quanto desesperador”, pois, diante do momento de tensão que o país vem passando, enxergar a realidade é um sofrimento que vem acompanhado de um forte senso de responsabilidade. O diálogo evidencia claramente a ideia de que “a militância é uma caminhada que não acaba mais” pois, uma vez retirada a venda dos olhos, a juventude percebe que sempre esteve à frente dos grandes movimentos da história e se pergunta o que é possível fazer pela sua própria comunidade e pelas próximas gerações.

 

Ação coletiva: a gente fazendo pela gente

 

O discurso dos jovens neste episódio explicita a noção de que os moradores contam com a solidariedade, a organização e a responsabilidade diante das situações que os afligem. Na ausência das políticas públicas tiveram que enfrentar a pandemia com ações coletivas a partir de sua organização e do seu conhecimento da realidade.

 

É no cruzamento entre a política pública (praticamente ausente, que, quando ocorre, se faz de forma homogênea e inefetiva) com a ação filantrópica (que se supõe salvadora, mas que não sabe “quem é quem”) que se fortalece a identidade de cria. Cria é aquele que conhece as pessoas em suas singularidades, sabe quem precisa e do que precisa, e por isso pode desenvolver uma ação coletiva que atende às necessidades, respeita as diferenças e é respeitado pelos moradores que não tentam obter vantagens. Sua ação coletiva pode ser traduzida como o olho no olho: sabe que não adianta só distribuir cesta básica para uma senhorinha que não tem como carregar o peso, tem que levar a cesta até a casa dela.

 

Ao invés da filantropia que vem de fora com a pretensão de ser salvadora, surgem lideranças locais que iniciam ações capazes de revitalizar espaços públicos, incentivar a leitura, mobilizar as crianças em aulas de esporte. É o cuidado de quem se preocupa com o outro, o comum do pobre que se preocupa com o pobre, o nós por nós. Essa noção vai além da própria ação porque se fundamenta em um conjunto muito sólido de valores construídos a partir de uma vivência comum, uma experiência compartilhada na qual as pessoas se sentem dependentes dos demais e também responsáveis por eles. Não se trata de uma visão ingênua, já que percebem que muitas pessoas não têm noção das razões que os levam a viver assim, têm a venda nos olhos. No entanto, são capazes de se solidarizar com os demais.

 

A segmentação entre o que é dentro e fora – cria e não cria – delimita a separação entre a ação dos moradores da ação estatal e também a ação filantrópica. Isso não quer dizer que deixem de buscar melhorias por meio das políticas públicas e de projetos sociais para os moradores no território. Outra clivagem importante é a que se estabelece entre a produção local e sua apropriação pelo mercado. A favela produz arte, moda, música etc., mas o lucro não é apropriado pelos moradores, fica fora da favela. É um circuito que leva a produção para um circuito de consumo externo, no qual eles não detêm o controle. Os jovens da favela não aprenderam a falar em dinheiro.

 

O NÓS POR NÓS, portanto, embora potente, tem limites demarcados.

 

Desigualdade de sonhos: fabulando o futuro

 

Neste primeiro episódio do programa Papo na Laje, os jovens em roda, ao falarem de sonhos, trazem como um dos elementos a “transformação da realidade”. Ou seja, em seus discursos a ação lúdica e imaginativa está integrada à ação concreta. É o sonho como motor de mobilização e realização para a transformação da realidade em que se vive.

 

Mas o sonho aqui apresentado não se limita a uma mera ação individual, mas sim a uma ação que é fruto de um sujeito coletivo. O sonhar só encontra sentido e potência quando partilhado: sonhar junto, em roda, com a sua comunidade. E nesse sentido, o território e seus habitantes são uma das preocupações centrais do sonho coletivo desses jovens, se traduzindo, por exemplo, em “trazer projetos para a comunidade”, na preocupação com as crianças, com seus vizinhos e amigos.

 

Eles consideram que muitos desses conhecidos da sua comunidade possuem uma “venda nos olhos”, que limita a existência à rotina de trabalho, escola e casa, tendo uma ausência de outras perspectivas. E aí a desigualdade dos sonhos surge como uma crítica, porque os sonhos da “zona sul” da cidade, lá no asfalto, são diferentes dos sonhos da favela, onde muitas vezes não são apresentadas oportunidades de uma existência além da rotina ordinária. Mas para isso, mais uma vez, a solução é o “sonhar junto” para transformar a realidade.

 

O sonho de uma cidade mais acolhedora, onde as crianças possam brincar em segurança nas ruas aparece também nas falas dos jovens. Aliás, as crianças são citadas recorrentemente ao longo do episódio, e em especial quando se fala dos sonhos, como uma representação simbólica desse sonhar e do futuro que se presentifica. E são crianças que também sonham, como o sonho de uma delas partilhado no episódio de, quem sabe um dia, poder saborear, toda semana, estrogonofe e bolo de abacaxi no lanche da escola?

 

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