29 Outubro 2022
"Marxista crítico, ele mostrou que tomar os meios de produção não bastaria, sem libertar a sociedade do ciclo produtivista/consumista. E criou os fundamentos do ecossocialismo. Morreu há quinze anos. Seu pensamento nunca foi tão atual", escreve Clara Ruault.
Clara Ruault é pesquisadora em filosofia na Escola Superior de Ciências Políticas de Paris. Artigo publicado pela Fondation Jean Jaurès. A tradução é de Maurício Ayer, 28-09-2022.
Figura com pouca cobertura midiática e de múltiplos pseudônimos, André Gorz, falecido há 15 anos, é, no entanto, uma personalidade marcante, capaz de ser objeto de uma história social das ideias no século XX. O título do livro coletivo lançado em 2017 – Le moment Gorz – organizado por Christophe Fourel e Alain Caillé sugere a ideia de um “momento” Gorz¹. O que é isso exatamente? Na segunda parte do livro, na qual nos concentraremos aqui – “Saindo do capitalismo: o roteiro de Gorz” – os autores explicam a contribuição de Gorz em suas próprias trajetórias intelectuais, com o duplo objetivo de mostrar a ancoragem de Gorz nos debates de sua época e, ao mesmo tempo, enfatizar a atualidade de suas proposições. Trata-se, portanto, de mostrar o enraizamento do pensamento de Gorz em um campo intelectual e, na mesma medida, destacar o caráter vivo desse pensamento atual, confrontando-o com concepções e problemas mais contemporâneos.
Le moment Gorz, organizado por Christophe Fourel e Alain Caillé, 2017 | Foto: divulgação
O propósito dos autores é, portanto, a um só tempo, o reconhecimento e a crítica. “Pensar com Gorz e contra Gorz”, diz um deles. Vamos nos deter aqui em dois aspectos marcantes desse pensamento por meio dos quais Gorz realmente inovou: a questão do trabalho e a questão da ecologia política. Abordando esses dois temas sob o prisma da filosofia, da sociologia e da economia, Gorz é mais amplamente um “pensador” e um pensador crítico: crítico em relação à herança marxista para pensar uma sociedade liberta e uma nova relação do homem com a natureza e com a técnica, crítico sobretudo da sociedade industrial avançada regida pela “racionalidade econômica” hegemônica. Mostraremos como essa crítica pode ser desafiada ou atualizada por meio de debates contemporâneos, ora enfatizando a contribuição ora a possível obsolescência do pensamento de Gorz.
Trata-se, antes de tudo, de situar Gorz em relação à herança marxista que ele reivindica. Nas Metamorfoses do trabalho², ele destaca uma semelhança entre sua visão do socialismo e a de Marx: o socialismo deve resolver “a cisão entre trabalho e vida”³. Como entender esta fórmula? Devemos partir da definição de trabalho dada por Gorz que, em acordo com Marx, parte do princípio de que o trabalho, no sentido que lhe é dado pelo seu pensamento crítico, é uma invenção do capitalismo: trata-se aqui de trabalho não como atividade produtora como a do artesão, mas de trabalho-emprego concebido como vetor de integração no espaço social. Dois tipos de racionalidade se opõem aqui: por um lado, temos a atividade regulada pela “norma do suficiente” – atividade do tipo artesanal, baseada em uma regulação individual e coletiva dos objetivos produtivos de acordo com as necessidades – e, por outro lado, a atividade regulada por uma racionalidade econômica que tem por objetivo aumentar o capital. O aumento produtivo torna-se em si o seu próprio fim. O capitalismo faz o trabalho passar de uma racionalidade a outra e, ao mesmo tempo, inventa o trabalho entendido como trabalho-emprego. Por isso mesmo, provoca a cisão entre trabalho e vida, fenômeno que deve ser entendido como a perda do vínculo concreto, vivido e epistêmico entre o trabalhador e sua tarefa, na reificação do gesto técnico em ato serial, pontual. O trabalhador não é mais senhor de seu trabalho; há um distanciamento radical entre ele e o sentido de sua obra.
Gorz, em Metamorfoses do Trabalho, afirma que não basta transformar o projeto político subjacente ao aparato produtivo tecnológico para transformar o trabalho e fazer coincidir trabalho e vida. Ele é fundamentalmente tecnocrítico: é na forma tecnológica de produção que se situa o problema da cisão entre trabalho e vida. Gorz retoma aqui as teses de Habermas – em Teoria do agir comunicacional II – e sua distinção entre “integração funcional” e “integração social”, de modo a distinguir a esfera da autonomia e a esfera da heteronomia. Uma ação é “funcional”, segundo Gorz, quando é heterônoma, ou seja, quando seu fim não é definido, desejado e compreendido pelo indivíduo que a executa, mas sim fixado por um sistema que preexiste ao indivíduo e no qual ele se insere. A invenção do trabalho descrita anteriormente permite a generalização desse tipo de ação no âmbito do trabalho: o trabalho do indivíduo é, a partir da divisão social do trabalho produzida pelo capitalismo industrial, um trabalho funcional; o capital deve “canalizar o comportamento do consumidor […] em direção a um objetivo que ele não precisa entender nem aprovar para realizá-lo” e, desse modo, “funcionalizar as motivações e os interesses individuais para um resultado que lhe permanece alheio”4.
Assim, inicialmente, Gorz se junta a Marx no diagnóstico da cisão entre trabalho e vida no capitalismo, e sobre essa despossessão do sentido do trabalho e da tarefa proporcionada em “uma organização e uma divisão do trabalho por meio das quais a natureza, a quantidade e a intensidade do trabalho a ser prestado seriam ditadas como imposições aderidas à matéria”5. Por essa expressão, Gorz adota uma postura decididamente tecnocrítica, no sentido de que o maquinismo é, segundo ele, caracterizado por uma inversão do vínculo entre a ferramenta e o trabalhador. O trabalhador deixa de usar a ferramenta para maximizar sua força de trabalho e melhorar seus objetivos: ele se coloca a serviço de uma máquina que dita o ritmo, o conteúdo e o significado do trabalho.
Para remediar essa perda de sentido, Marx propõe a reapropriação dos meios de produção pelo proletariado. Ele vê a solução no que Gorz chama de “pan-racionalismo”: no quarto capítulo de Metamorfoses do Trabalho (“Da integração funcional à desintegração social”), Gorz explica que a sociedade socialista proposta por Marx pressupõe que a “definição de objetivos coletivos e a distribuição, assim como a divisão das tarefas que possibilite alcançá-los, seria feita com base no acordo e na decisão coletiva e, então, da auto-organização dos grupos especializados pela mediação dos quais cada um sentiria pertencer tanto à comunidade trabalhadora quanto à sociedade que integrou todos os subgrupos na unidade de um projeto comum. Isto deveria encontrar a sua concretização no Plano”6.É em relação a esse pan-racionalismo, que leva Marx definitivamente a ver na racionalização capitalista dos processos de produção as bases da sociedade socialista, que Gorz se distancia. Por um lado, mostra como a Razão, longe de ser reapropriada coletivamente pelo proletariado para fins emancipatórios, (re)converte-se em um ídolo. Ela não permite ao trabalhador redescobrir um vínculo concreto, vivido, com seu trabalho. É o que aponta Jean-Louis Laville no capítulo “Pensar a mudança social” do livro Le moment Gorz (O momento Gorz): “Em suma, a crença simplista de que a propriedade capitalista impedia o desenvolvimento das forças produtivas tinha como postulado implícito a busca da acumulação e do crescimento econômico”. Gorz identifica, portanto, um nexo de causalidade, que a teoria marxista não consegue desfazer, entre a manutenção do produtivismo e a integração funcional, entre técnica e alienação.
Por outro lado, segundo Gorz, o problema fundamental é a não-neutralidade da técnica nesse processo de despossessão. Nenhuma reapropriação racional dos modos de produção, cujo conteúdo seria elaborado pela ressurreição de uma racionalidade universal comum ao proletariado, é possível. A realização deste projeto se opõe, de fato, à “complexidade e rigidez do aparelho produtivo”, na medida em que o “trabalho fragmentado e rotineiro” ao qual o trabalhador é necessariamente atribuído em um sistema produtivo complexo, se opõe à “visão de conjunto” e à “experiência concreta do sentido da tarefa em que se supõe que ele deveria colaborar voluntariamente”7. Com efeito, no quadro de um sistema produtivo industrial complexo, é necessário tornar “confiável e calculável a funcionalidade de cada uma das engrenagens humanas”. A definição e distribuição das tarefas são determinadas pela “matriz material da megamáquina”. Assim, “o Plano demanda ao trabalhador que considere seu trabalho e sua integração funcional como integração social, fonte de realização individual”, mas essa resolução da cisão não pode, segundo Gorz, ocorrer em grandes sistemas.
A crítica de Gorz estende-se, assim, do aparelho produtivo capitalista à ideia marxista da reapropriação dos meios de produção pelo proletariado, em funcionamento no sistema soviético. Nesse “pan-racionalismo” marxista, trata-se ainda de inserir o trabalho em um sistema produtivo industrial que dita seus próprios objetivos e que separa o trabalhador de sua própria tarefa. Há ainda uma reificação da ação, da relação do homem com o objeto acabado que ele produz e ao serviço do qual ele dedica tempo de trabalho.
Em suma, Gorz se distancia sobretudo dessa incapacidade diagnosticada no marxismo e visível no sistema soviético de reunir trabalho e vida, de trazer o trabalho para fora da esfera da heteronomia (regra de ação fixada de fora por um sistema hegemônico ) para a esfera da autonomia, necessidade e liberdade: “A utopia marxista da coincidência entre trabalho funcional e atividade pessoal é irrealizável na escala dos grandes sistemas”8. A crítica ao capitalismo é, portanto, visível nos fracassos do modelo soviético. Ele contrasta os dois sistemas com uma sociedade socialista baseada na autonomia e na liberdade. Para isso, você tem que se libertar não no trabalho, mas do trabalho. Para Gorz, é impossível fazer do trabalho-emprego outra coisa que não seja trabalho alienado e vetor de alienação: a distância entre o trabalhador e sua tarefa é acompanhada por uma alienação no consumo. Com a sociedade capitalista avançada, passamos, portanto, do modelo do artesão ao modelo do trabalhador-consumidor que busca benefícios compensatórios em seu tempo livre: em suma, o trabalhador se consola de sua alienação no trabalho por outra forma de alienação, a saber, o consumo de bens materiais graças à sua remuneração. Há uma perda do vínculo direto com o que produz em favor de um vínculo heterônomo entre seu trabalho e os bens de consumo. Jean-Pierre Dupuy, no capítulo “Gorz e Illich”, identifica em Gorz como em Ivan Illich o pensamento de um “monopólio radical” do capitalismo sobre os valores que ele destrói. O sistema rarefaz o que nos liga a nós mesmos, aos outros e ao mundo, e torna indispensáveis os substitutos que oferece. O consumo não oferece os meios para sair dele e impõe sua própria necessidade.
É essa irracionalidade da racionalidade econômica própria do sistema capitalista que é descrita e condenada por Illich em seu ensaio principal, A convivencialidade9. Ele desenvolve ali precisamente sua teoria do “monopólio radical”. Por essa expressão, ele designa o fenômeno que consiste em tornar um tipo de produto indispensável à satisfação de certas necessidades básicas como circulação, saúde ou educação: “Nesse caso, um processo de produção industrial exerce controle exclusivo sobre a satisfação de uma necessidade premente, excluindo qualquer recurso, para o efeito, a atividades não industriais. O transporte pode, assim, tomar o monopólio do tráfego. Os carros podem moldar uma cidade, praticamente eliminando as viagens a pé ou de bicicleta, como em Los Angeles”.
É possível vincular essa noção de monopólio radical a toda a tese de Illich desenvolvida em torno da noção de convivencialidade. Ele dá um novo significado a esse termo, pelo qual designa o caráter de uma ferramenta (entendida em sentido amplo como meio institucionalizado para atingir um tipo de fim maximizando sua energia e sua força de trabalho) a serviço do trabalhador. Na sociedade industrial avançada, o oposto de uma sociedade convivial, essa relação é, como vimos acima, invertida. É o homem que serve à máquina que lhe impõe objetivos a priori. É o homem que se coloca a serviço do crescimento do capital e do enriquecimento da classe dominante por sua inserção no processo industrial, ao invés de utilizar os avanços tecnológicos para satisfazer suas necessidades. Assim, voltando ao exemplo do trânsito, o homem não utiliza o automóvel para ganhar velocidade e eliminar distâncias, mas se coloca a serviço da indústria automotiva trabalhando com o objetivo de adquirir um automóvel que lhe permita ultrapassar a expansão urbana e as próprias distâncias se alongavam para desconcentrar as cidades, cheias de carros.
A extensão da esfera da heteronomia, que coloca o sujeito na incapacidade de agir segundo seus próprios desejos e princípios, ao “mundo vivido” dos indivíduos se faz pela captura das necessidades e dos desejos. A noção de mundo vivido, emprestada da fenomenologia, designa o conjunto de interações que ancoram o indivíduo em um ambiente que lhe é próprio, que determinam e forjam seu espaço cotidiano, o conjunto de coisas compreendidas e conhecidas por ele. É, portanto, o mundo em que o indivíduo vive, pensa, se projeta, mas que também delimita a esfera de seus desejos e necessidades. É a destruição desse mundo vivido pela captura de desejos e necessidades determinados “de cima”, em direção a um conjunto de produtos da megamáquina produtiva, que Gorz almeja em sua crítica à sociedade industrial avançada.
O livro O momento Gorz nos dá um exemplo da aplicação das teses de Gorz a fenômenos contemporâneos, como o advento dos “serviços pessoais”. Em seu artigo dedicado a esse assunto10, Florence Jany-Catrice analisa o surgimento massivo dos chamados empregos de “serviço pessoal” como extensão do neoliberalismo a esferas antes não mercantis ou produtivas, através da lógica dos “pools de empregos”. Ela cita o slogan da Agência Nacional de Serviços Humanos (2008): “as necessidades de uns são os empregos de outros”. Esses serviços geralmente correspondem a dois tipos de atividade: assistência a idosos ou vulneráveis e serviços domésticos. Os serviços humanos estão, portanto, nas palavras do autor, “entre a servidão e a solidão”. Produzem por um lado o advento de uma “sociedade de servidores”, e por outro substituem o cuidado pela profissionalização de um setor.
Isso, de fato, vai na direção totalmente oposta à prescrita por Gorz. Os serviços pessoais criam novas necessidades reguladas pela esfera econômica através da criação de novos postos de trabalho, em vez de favorecer a definição coletiva das reais necessidades, e a preservação dos bens comuns que impõem a limitação da lógica da mercadoria. O caminho a seguir seria preservar certas esferas da vida (particularmente o cuidado) da lógica capitalista, e não a ampliação desta. Em seu artigo11, Patrick Petitjean traduz o pensamento de Gorz nestes termos: devemos restringir a esfera da necessidade e redefini-la como a esfera da satisfação das necessidades suficientes socialmente determinadas. É isso que torna Gorz particularmente atento aos fenômenos de autogestão e autoprodução (definição coletiva), mas também à lógica do trabalho voluntário (autolimitação).
É por meio dessa teoria crítica das necessidades que percebemos os vínculos estreitos em Gorz entre a crítica do capitalismo e a ecologia.
Trata-se aqui de ver como o pensamento ecológico de André Gorz é elaborado através de uma série de posicionamentos contra outras versões possíveis da ecologia.
O primeiro risco consiste numa confusão entre ecologia política e ecologia científica. Em seu artigo, Patrick Petitjean mostra tanto a ancoragem quanto a atualidade das observações de Gorz sobre o risco de peritocracia em que incorre o movimento ecológico, que consistiria em conceder ao discurso científico plenos poderes sobre nossa gestão de recursos, falando não em nome de imperativos humanos, mas em nome de imperativos científicos. Devemos reorganizar as estruturas profundas da sociedade onde a peritocracia é uma limitação da exploração dos recursos naturais para as necessidades do sistema. Trata-se, para Gorz, de formular uma crítica ecológica ao capitalismo e, mais precisamente, à sociedade de consumo: a ecologia não deve perder de vista a alienação do indivíduo, não só no trabalho, mas também no superconsumo, um aspecto da superprodução. Lemos, na introdução de Ecologia e Política: “É por isso que devemos nos perguntar com franqueza desde o início: o que queremos? Um capitalismo que se adapta às restrições ecológicas ou uma revolução política, social e cultural que abole as restrições do capitalismo e assim estabelece uma nova relação das pessoas com a coletividade, o meio ambiente e a natureza?"12.
Ainda em Ecologia e política, Gorz põe em evidência a lógica paradoxal, contraproducente para usar as palavras de Ivan Illich, da sociedade de consumo, que cria constantemente novas necessidades, ampliando sempre um pouco mais a esfera da necessidade. Essa lógica da inovação é baseada na frustração (criação de novos desejos) e na desigualdade (diferenciação por classe de acesso a bens materiais). Ele toma emprestado de Illich a seguinte observação: “A inovação alimenta a ilusão de que o novo é melhor […] A lógica do sempre melhor substitui a lógica do bem como elemento estruturante da ação”13. Essa lógica na qual se baseia o crescimento da economia capitalista é considerada contraproducente, pois a superprodução cria falta. No artigo publicado em 1973 e incluído em Ecologia e política, intitulado “A ideologia social do carro”, Gorz retoma a crítica de Illich à função socioeconômica do carro, mostrando que passamos mais tempo ganhando dinheiro suficiente poder adquirir um carro e pagar os custos de manutenção do que ganhamos pela mobilidade que ele nos dá: “a questão é matemática”14. Notamos a atualidade dessa crítica social ao consumo excessivo por meio das políticas de marketing de empresas como a Apple que, em vez de responder às necessidades reais, oferecem regularmente novos modelos de smartphones, despertando a falta e o desejo por meio de novos recursos inesperados. Por outro lado, esse pensamento está enraizado nos debates atuais sobre as derivas contraproducentes das novas tecnologias de informação e comunicação que criam fenômenos de cortes e distanciamentos onde deveriam criar laços sociais por proximidade virtual.
Em uma sociedade verdadeiramente emancipatória e coerente consigo mesma e com seus objetivos, o sistema alienante de superprodução/superconsumo deve dar lugar a uma lógica de preservação do mundo vivido pela autolimitação das necessidades, pela determinação seja coletiva e local, pela comunidade, do que precisa ser produzido. Com essa proposta, Gorz se dirige, segundo Patrick Petitjean, ao público marxista da época e à megamáquina produtivista soviética. Mas podemos mais uma vez sublinhar a atualidade dessa afirmação inserindo-a nos debates que enquadram o difícil advento de um pensamento ecossocialista e a ancoragem à esquerda da ecologia política: como vincular a causa popular e a causa climática? Como, para retomar os slogans frequentemente ouvidos durante as manifestações climáticas, ligar o fim do mundo e o fim do mês?
O ecofascismo ou ecototalitarismo consiste em uma deriva autoritária da peritocracia. Esse risco e a solução proposta por Gorz são analisados no artigo de Geneviève Azam no livro O momento Gorz, intitulado “A aurora de um novo humanista”. Segundo ela, esse ecototalitarismo pode se manifestar de duas maneiras: “Certamente, é verdade que, perante as ameaças de colapso dos ecossistemas, escassez e movimentos de pânico previsíveis, um processo que conduza ao totalitarismo pode galvanizar e se tornar a forma de organização global das sociedades, em nome da natureza a ser preservada e em nome da sobrevivência da humanidade”; mas também pode colocar-se a serviço de um capitalismo sem fôlego. Diante desse risco, Gorz propõe recolocar o homem no centro de uma ecologia humanista antinatureza, lembrando que “a luta ecológica não é um fim em si mesma, é uma etapa”15. Ele se recusa, portanto, a pensar em uma ecologia sem homem, e usar as palavras de Geneviève Azam: “Ele expressa assim uma atenção particular aos eventos concretos e à recusa de uma ecologia abstrata, desenraizada, de especialista e tecnocrática. Mas essa identificação contém também a recusa da defesa da natureza em si mesma, independentemente das expectativas humanas”.
O socialismo, portanto, não está imune ao ecofascismo, devendo, portanto, ser conjugado com um humanismo ecológico e tecnocrítico: “Melhor seria um capitalismo não nuclear do que um socialismo nuclear; porque o primeiro hipoteca o futuro menos pesadamente”16.O homem está no centro do pensamento ecológico de André Gorz, antinatura, antipanteísta, que coloca os direitos humanos acima dos direitos da terra. No entanto, pode ser interessante, como faz Geneviève Azam, pensar os limites desse humanismo na atualidade, mostrando como ele pode ser renovado por um lugar mais importante dado à natureza per se. Para Gorz, “a natureza não é boa para o homem”17 e este tem, portanto, o direito de modificar o ecossistema para sua sobrevivência e seu conforto. No entanto, na sociedade pós-industrial, vítima da atual catástrofe ecológica, o homem percebe que é a modificação desses ecossistemas que muitas vezes torna a vida “radicalmente precária e problemática no planeta”18.
Azam propõe, então, um novo humanismo, pois não é mais possível agir contra a natureza, dados os meios titânicos e devastadores que o homem possui para transformá-la. “Não podemos considerar que o humanismo que André Gorz afirma tenha morrido com a aceitação da energia nuclear, […] que tenha sido mortalmente ferido pela redução do vivente a um recurso privado de toda subjetividade […]?”
O debate sobre a oposição (ou a possível sínteses) entre ecologia humanista/ecologia panteísta é bastante atual, sendo possível substituir o pensamento de André Gorz por (ou em oposição a) pensadores como Bruno Latour e sua ideia de um parlamento das coisas. Em Políticas da natureza, Latour trata de reintroduzir a natureza encarnada pela ciência (os “jalecos brancos”19) no debate democrático. Poderíamos também tentar situar Gorz em relação ao pensamento ecológico herdado da antropologia, como o pensamento de Philippe Descola, que poderia ser descrito como uma ecologia carregada por uma visão renovada do animismo que nos impele a reintroduzir a natureza e os vivos (os “não humanos”) na cultura, na política e, mais amplamente, em nossas relações e em nosso ambiente moral. Podemos notar, assim, como hoje a figura das populações animistas amazônicas tornou-se um emblema em certas manifestações ambientais. Vemos também como certos discursos ecológicos utilizam de forma retórica (mais ou menos deliberadamente) elementos simbólicos da linguagem própria ao animismo: personificação de elementos naturais, referência à alma mater, laços familiares que unem humanos e não humanos etc.
Podemos ver que o risco que paira sobre a filosofia ambiental é a desumanização e despolitização da ecologia, seja através de uma defesa cega dos “direitos” da natureza, da sobrevivência da humanidade ou a do capitalismo.
O objetivo teórico da ecologia política deve ser alcançado através de uma série de superações. A primeira superação é a do individual em direção ao coletivo. É admirável ver como Gorz se opõe à lógica do “gesto” ecológico ou cidadão. Se a privação em relação ao mundo vivido em um capitalismo desumano é bem sentida na escala individual, essa escala deve ser constantemente superada para atingir, antes de tudo, o coletivo. O pensamento de André Gorz é muito mais sensível às formas coletivas de organização da produção do que à ideia de ecorresponsabilidade individual, uma ideia muito atual em relação à qual se pode imaginar imediatamente o posicionamento de Gorz. Ele permite, portanto, pensar contra as formas estritamente individuais, ou mesmo individualistas, de uma ecologia apolítica, ou seja, a ideia de uma atitude ou gesto ecorresponsável, mas também comportamentos alimentares como o veganismo.
Se a emergência ecológica pode ser sentida perfeitamente no nível individual, o comportamento correspondente a essa emergência vivida deve ir além do estágio individual para tender ao coletivo, depois do coletivo em direção ao político.
Como vimos, a defesa da natureza não é um fim em si mesmo para Gorz. Não obstante, a causa ecológica é um elemento entre outros vetores de uma sociedade emancipatória: em seu artigo “Pensando com e contra Gorz”, Bernard Perret distingue na obra de Gorz “uma vontade constante de reconectar a questão ecológica a outras contradições do sistema”20. Assim, “o ecossistema não é apenas o ambiente físico da vida humana, é como base de uma existência autônoma que deve ser defendida”21. A ecologia é política na medida em que é um meio de preservar os recursos – e, por isso mesmo, o mundo vivido – da lógica alienante do superconsumo/superprodução.
Assim, embora a ação coletiva na escala de uma comunidade de produtores/consumidores autônomos seja um bom começo, ela não seria suficiente para transformar profundamente um sistema econômico global. Na era da proliferação do “glocal” (agir local, pensar global), a obra de Gorz nos permite pensar os limites desse modo de ação, sua insuficiência para contrariar a lógica hegemônica do sistema capitalista que desapropria os indivíduos de sua vida ambiente (no sentido amplo, aproximando “mundo vivido” e ambiente natural) por meio de instrumentos alienantes.
André Gorz nos convida, portanto, a pensar que nem toda ecologia é defensável, ao mesmo tempo em que dá ferramentas ao pensamento socialista para permitir uma ancoragem firme e definitiva à esquerda da ecologia política. Gorz se apropria de conceitos filosóficos como trabalho ou mesmo natureza, para produzir um pensamento vivo, nunca fechado ou sistemático, que se presta assim mais à análise do historiador, do sociólogo ou do político do que à do filósofo.
1. Organização de Christophe Fourel e Alain Caillé, Le moment Gorz, Éditions du Bord de l’eau, 2017.
2. André Gorz, Métamorphoses du travail, Folio Essais, 2004.
3. Chapitre 3
4. André Gorz, Ecologica, Galilée, 2008.
5. Ibid.
6. In Métamorphoses du travail, op. cit. p. 58.
7. Ibid., p. 57.
8. Ibid., p. 60.
9. Ivan Illich, La convivialité, Éditions du Seuil, 1973.
10. "Va-t-on vers la fin du travail-emploi? Le cas des services à la personne", in Le moment Gorz, op. cit., p. 219.
11. "Du 'gauchisme' à l’écologie politique", ibid., p. 168.
12. Michel Bosquet (André Gorz), Écologie et politique, Arthaud Poche, 2018.
13. Ibid., p. 61.
14. Ibid., p. 142.
15. Ibid., Introduction.
16. Écologie et liberté, op. cit., p. 36.
17. Écologie et liberté, op. cit.
18. Ibid., p. 245.
19. Bruno Latour, Politiques de la nature, Éditions La Découverte, 1999.
20. p. 256.
21. Ibid.
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O que a esquerda deve a André Gorz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU