06 Setembro 2022
"A política internacional é caos, anarquia no pior sentido, a lei do mais forte, uma sucessão de guerras, massacres e tensões. Instituições de louváveis intenções como as Nações Unidas são impotentes: os mais fortes não respeitam as decisões coletivas. Se a política é a arte de conviver, a política internacional ainda precisa nascer".
O artigo é do físico italiano Carlo Rovelli, professor no Centro de Física Teórica da Universidade de Marseille, na França, e diretor do grupo de pesquisa em gravidade quântica do Centro de Física Teórica de Luminy, publicado por la Lettura, 04-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Rovelli ainda sustenta que "o problema do mundo é como transformar o jogo de quem vence num jogo de como colaborar melhor para o bem comum. Não é como vencer as guerras: é como evitá-las".
Carlo Rovelli, entre outros livros traduzidos para o português, a editora Objetiva, 2021, publicou "O abismo vertiginoso: Um mergulho nas ideias e nos efeitos da física quântica". (Nota do Instituto Humanitas Unisinos - IHU)
A família Zhou é uma das dinastias que por mais tempo governou, em uma área muito grande.
Durou quase oito séculos: do XI ao III antes da nossa era. Cobria uma grande área daquela que é hoje a China. No entanto, os Zhou nunca foram um grupo particularmente poderoso e rico: chegaram ao poder liderando uma aliança que se rebelou e derrubou a dinastia anterior e permaneceram no poder graças a um sistema feudal de alianças e gestão dos equilíbrios. Uma das doutrinas políticas mais duradouras e influentes na Ásia remonta a eles: a noção do “mandato do céu”.
Enquanto as dinastias anteriores reinavam por direito divino ou por direito de conquista, como tantos governantes europeus, os Zhou reivindicavam o direito de governar como comandado por uma divindade celestial com base em sua eficácia em garantir a harmonia entre os povos. Isso implicava que esse direito estivesse subordinado ao bem-estar e ao juízo dos governados. Particularmente interessante é o fato de que o mandato do Céu não se destinava apenas a uma região delimitada, mas a tudo o que está “sob o céu”. A expressão chinesa tianxia, literalmente precisamente “sob o céu”, talvez melhor traduzida como “sob um único céu”, refere-se a essa ideia de política como potencialmente inclusiva e não exclusiva. A região de interesse para o “mandato do Céu” no milênio anterior à nossa era, ou seja, não dizia respeito a uma área delimitada por fronteiras, em oposição a inimigos externos, mas implicava a responsabilidade do imperador de se encarregar de alcançar harmonia, ou pelo menos compromisso, com todas as populações no horizonte. Como para muitos grandes impérios do mundo, de Alexandre o Grande a Gengis Khan, dos Habsburgos aos Estados Unidos da América, a grande diversidade cultural não era considerada incompatível com a existência de uma ordem acima das partes.
O declínio da dinastia Zhou, depois de muitos séculos, foi gradual: o sistema feudal lentamente se desagregou, degenerando em um período turbulento, um período, porém de extraordinária fecundidade cultural.
Os grandes livros do pensamento chinês, entre os textos mais importantes da humanidade, Zhuangzi, Confúcio, Mozi, Laozi, Mêncio, datam desse período.
Em 2005, Zhao Tingyang, um dos filósofos políticos atuais mais influentes da China, publicou um volume em seu país (“O Sistema Tianxia: uma filosofia para as instituições mundiais”) lançado no ano passado em inglês como All under Heaven: The Tianxia System for a Possível World Order (University of California Press, 2021), despertando grande interesse e viva discussão tanto na China quanto no Ocidente. Zhao se inspira em alguns aspectos da noção Zhou de tianxia para propor coordenadas para repensar a política internacional hoje. O ponto de partida do livro é a observação de que enquanto a política tem conseguido, de maneiras diferentes mais ou menos boas, resolver o problema da convivência dentro dos Estados, ao contrário, o problema da convivência entre os Estados do planeta não está resolvido: a política internacional é caos, anarquia no pior sentido, a lei do mais forte, uma sucessão de guerras, massacres e tensões. Instituições de louváveis intenções como as Nações Unidas são impotentes: os mais fortes não respeitam as decisões coletivas. Se a política é a arte de conviver, a política internacional ainda precisa nascer.
Zhao argumenta que a ideia de que a soberania deve pertencer apenas aos Estados individuais – o princípio do direito internacional que tradicionalmente se relaciona à Paz de Vestfália que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos e que está inscrito na carta das Nações Unidas - não nos leva para um mundo estável. Pelo contrário, é necessário conceber um novo sujeito político, a humanidade inteira, repensar a política internacional em termos de inclusão, não de exclusão, e simplesmente perceber que colaborar é conveniente quando comparado a estar permanentemente em conflito, como agora está o mundo. O livro apresenta uma análise aguda e profunda, que me impressionou particularmente, das bases teóricas da teoria dos jogos: a teoria matemática usada para modelar o comportamento racional nas escolhas dos agentes que interagem.
A ideia de base é identificar a maximização do ganho individual como o objetivo dos agentes “racionais” revela uma incoerência básica: os agentes reais são eles mesmos o produto de redes colaborativas tanto internas como externas e, como tal, têm um interesse evolutivo de longo prazo, que não é necessariamente a maximização do ganho de curto prazo de um indivíduo. Em termos simples: preferir o conflito à colaboração em vista de ganhos a curto prazo é míope do ponto de vista da razão. No entanto é sobre essa lógica que hoje se move a política internacional. A ideia de tianxia proposta por Zhao, na esteira do confucionismo, é agir para transformar o mundo em um único espaço compatível com as diversidades culturais, mas unificado pelo ideal de uma humanidade civilizada que colabora.
Zhao foi acusado de adoçar e mitificar a realidade da China de Zhou e de tentar substituir o predomínio ideológico e a suposta superioridade moral ocidental por uma suposta superioridade moral e predomínio ideológico oriental. Cair nessas críticas é exatamente cair na lógica do predomínio. O problema do mundo de hoje não é quem terá mais influência no infinito jogo de trocas que é a civilização. O problema atual do mundo é como evitar que o XXI século seja um desastre como foi o XX século: cem milhões de mortos e o planeta devastado pelas duas guerras mundiais, problema que hoje se torna ainda mais dramático pelo insensato arsenal atômico, pronto para ser lançado, difundido também na Itália, sem controle italiano. O problema com o mundo não é quem vencerá militarmente, ideologicamente, politicamente. O problema do mundo é como transformar o jogo de quem vence num jogo de como colaborar melhor para o bem comum. Não é como vencer as guerras: é como evitá-las.
A urgência desse problema é sublinhada por outro livro recente de grande interesse sobre a China. Este escrito por um personagem de indubitável fidelidade ocidental: o ex -primeiro-ministro australiano Kevin Rudd. Rudd é um profundo conhecedor da China: por muito tempo foi embaixador em Pequim, fala mandarim fluentemente e está estreitamente familiarizado com a liderança chinesa. O livro é uma análise profunda e extensa da política chinesa, do Partido Comunista da China e, em particular, das ideias e objetivos do atual líder, Xi Jinping. O título do livro resume a situação, como é vista pelo destacado político australiano: The Avoidable War: The Dangers of a Catastrophic Conflict between the US and Xi Jinping's China (A guerra evitável: os perigos de um catastrófico conflito entre os Estados Unidos e a China de Xi Jinping, em tradução livre, Public Affairs, 2022).
Que estamos naturalmente indo em direção a tal conflito, e que apenas uma virada brusca na política ocidental possa evitá-lo, é a tese de outro livro que recentemente recebeu amplo eco em todo o mundo: Destinati alla guerra. Possono l’America e la Cina sfuggire alla trappola di Tucidide? (Destinado à Guerra. Os Estados Unidos e a China podem escapar da armadilha de Tucídides?, em tradução livre, Fazi, 2018) pelo cientista político estadunidense Graham Allison. Em uma famosa passagem, o historiador grego Tucídides observava que a guerra do Peloponeso entre Esparta e Atenas era quase inevitável, pois quando uma nova potência econômica cresce (Atenas/China) e declina o peso econômico da potência militarmente dominante (Esparta/EUA), a primeira não se contenta mais em ser dominada e a segunda não tolera que alguém não se deixe mais dominar. Nessas condições, somente uma grande sabedoria e visão ampla podem evitar um conflito que todos acabam pagando. A China teme um conflito devido à enorme desproporção militar, mas por muitos anos, desde o fim da Guerra Fria, os documentos estratégicos dos EUA fizeram referência explícita ao fato de que é do interesse dos Estados Unidos engajar inclusive militarmente qualquer potência antes que ela possa crescer a ponto de questionar o domínio militar mundial estadunidense.
Em 1913, mais de 80% da produção mundial de bens concentrava-se na Europa e nos EUA. O domínio econômico ocidental sobre o mundo era recente, mas total. Hoje, a produção de bens no Ocidente se reduziu daqueles 80% para menos de 20% da produção mundial. O domínio do Ocidente agora se alicerça nas armas, não na economia. E numa propaganda ideológica que talvez no Ocidente ainda soe convincente para alguns, mas não mais no resto do planeta. O futuro está nas mãos de uma decisão: o Ocidente deve decidir se está pronto para desencadear o inferno para manter o domínio e continuar aumentando seus privilégios, ou repensar o planeta em termos de colaboração, em vez de competição, polarização, “adversários estratégicos”, “contenção” dos adversários, maus “autocratas”.
O império estadunidense também se sustenta em uma tianxia parcial, um sistema de alianças, do qual a Itália faz parte. Acredito que seja responsabilidade dos Estados satélites como a Itália resistir a serem arrastados para o aventureirismo belicoso contínuo de nosso principal aliado e, em vez disso, empenhar-se para contribuir a lançar as bases de uma política internacional de cooperação em vez de confronto. De um único sujeito político, a humanidade, toda “sob um único céu”. Acredito que é isso que o mundo está pedindo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Nova geopolítica. Um único céu para todos os povos. Artigo de Carlo Rovelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU