A arte de Adélia Carvalho. Uma homenagem de Eduardo Hoornaert

Adélia Carvalho, ao fundo alguns de seus cartões de natais. Imagem: Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (Ceseep)

19 Agosto 2022

 

Faleceu em Recife (Pernambuco, Brasil), no dia 16 de agosto de 2022, a Irmã Adélia Carvalho, brasileira, religiosa salesiana e ‘artista da caminhada’. Ela acompanhou, durante longos anos, trabalhos junto a lideranças populares ligadas à Teologia da Libertação, tanto no Brasil como - por um curto período - no Moçambique.

 

Ilustrou numerosas publicações do Cehila-Popular (uma iniciativa do Centro de Estudos da História da Igreja na América Latina, que funcionou entre 1980 e 2000 aproximadamente), e ajudou a elaborar, igualmente por longos anos, grandes painéis que serviam de quadro de fundo em Cursos de Verão promovidos pelo CESEEP (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular), situado em São Paulo, Brasil. Além dos clássicos ‘cartões de Natal’.

 

Adélia formava parte de um pequeno grupo de desenhistas, pintores e poetas, que se autodenominavam ‘artistas da caminhada’.

 

A homenagem é de Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA)18-08-2022.

 

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Para apresentar a artista Adélia Carvalho, copio aqui seu texto autobiográfico ‘Falando sobre minha trajetória artística’, que ela redigiu em 25 de agosto de 2015, em preparação de um encontro rememorativo do Cehila, realizado em Belo Horizonte.

 

Vai aqui a breve autobiografia:

 

‘Falando sobre minha trajetória artística’, por Adélia Carvalho

 


Cartão de Natal com arte de Adélia Carvalho

 

"Meu nome é Adélia Oliveira de Carvalho. Assino Adélia Carvalho. Sou brasileira, nordestina, natural do Rio Grande do Norte, no município de Santo Antônio, agreste potiguar e bioma caatinga. Nasci em Lagoa das Cobras (25/10/1937), no sítio de meu avô materno. Sou descendente indígena, por parte de minha avó materna, provavelmente da Nação Cariri. Esses indígenas, vindos do sul do Brasil, tempos atrás, andavam em busca da ‘Terra sem Males’. Aqui, nesta região nordestina, se assentaram. Por não entenderem sua língua, os portugueses os chamavam ‘tapuios’, ‘povo calado’.

 

Desde cedo, gostei de me expressar em desenhos e trabalhos manuais. Diante das cores, sombras, relevos, paisagens, imagens, esculturas, o meu instinto é de contemplação e admiração. A natureza é o meu espaço preferido. Na escola, meus desenhos eram admirados por serem bem feitos, com combinações de cores.

 

Aos 22 anos, (24/01/1960), fiz minha consagração religiosa no Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (Salesianas) em Recife – PE, onde resido. Minha caminhada artística, propriamente dita, tem início no noviciado (1958-1959), quando começo a pintar a óleo temas religiosos. Nos anos seguintes ao noviciado, continuo pintando, mas sem orientação. Pintei cenários, murais e quadros. Minha preferência é por figuras humanas. Paisagens e outros elementos aparecem como complemento.

 

Então, sou autodidata, ainda que tenha feito alguns exercícios de trabalhar com modelo vivo (a figura humana), em 1972, no atelier do Prof. Inaldo Medeiros (em memória), na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Não tive condições de continuar. Parei no início do caminho, com esperança de poder, algum dia, estudar regularmente a arte do desenho e da pintura. Sentia-me insegura com o que produzia. Em 1995, a esperança se fez presente quando cheguei a frequentar o atelier do Prof. Maerlant Denis, aqui em Recife, à Rua das Pernambucanas. Logo ele observou que tinha um estilo próprio, tanto nos conteúdos como nas cores. Em menos de um ano, ele me deu um certificado ‘com distinção’.

 

A partir de então, me considerei artista profissional. Meus quadros eram adquiridos com facilidade e eu recebia encomendas. Mas não me sinto qualificada para adotar o nome de artista plástica. Isso me incomoda. Acho que é grande demais para mim. Este sentimento talvez tenha sido motivo de nunca ter feito uma mostra individual, preferindo expor coletivamente, na qualidade de ‘artista da Caminhada’.

 

Em minhas expressões artísticas, gosto de representar temas contemporâneos (sacros/religiosos/místicos e, ao mesmo tempo, de caráter social). Com este viés falo em arte religiosa ‘profanada’, onde o religioso e o profano se misturam, tornando um só motivo. A figura feminina de olhares grandes e profundos, ganha destaque especial.

 

Perante meus trabalhos em exposições, percebo três reações diferentes nas pessoas:

 

1) admiração e contemplação pelas cores vivas e alegres, pelas formas e pela temática;

2) identificação com o estilo e com os temas. Muitos começam a fazer uma leitura do ‘seu mundo’ e do seu derredor;

3) provocação, um certo escândalo, um choque, vendo o religioso e o profano misturados. Isso é bom para mim e me convence de que estou alcançando objetivos concretos.

 

Dizem que meus quadros são considerados obras de arte. Já são conhecidos internacionalmente, têm nome e estilo próprios. Neles eu expresso e revelo meus sentimentos, minha psicologia, mística, espiritualidade e o caminho por onde caminho, enfim, minha personalidade.

 

Sei que a arte, como expressão do belo e como comunicação, tem necessidade de expansão e de buscar leitores de diferentes olhares, de diferentes culturas. Isso levou meus trabalhos a caminharem não apenas pelo Brasil, mas por outros continentes como Europa, Estados Unidos e África (Moçambique). Minha arte também foi tema de dissertações e teses acadêmicas. Ela caminhou e continua caminhando como beleza e profecia de Deus. Fui muito além do que imaginava".

 

Até aqui, o depoimento de Adélia Carvalho sobre sua trajetória até 2015.

 

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Tomo a liberdade de copiar aqui o texto, emitido no dia da morte de Adélia, 16/08/2022, pelo CESEEP.

 

Páscoa de Adélia de Carvalho (16/08/2022)

 


Adélia Carvalho, ao fundo alguns de seus cartões de natais. Imagem: Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (Ceseep)

 

Um passarinho, uma flor e um caju. Nas imagens de pessoas, olhos grandes e expressivos como marca de seus traços na tela, com capacidade de prender o olhar e até a respiração de quem vê cada obra de arte. A tela como forma de comunicação de uma alma leve, generosa e cheia de amor.

 

A voz baixa, o olhar sereno e os passos tranquilos pelos corredores da PUC sempre foram inconfundíveis. O sorriso meigo trazia a luz presente em sua alma e que nela não cabia, então era preciso partilhar.

 

Adélia de Carvalho deixa em nós todas e todos que com ela convivemos, a dor da partida, mas também a alegria pela dádiva da convivência.

 

Ela fica entre nós, pela lembrança de sua pessoa, sempre suave e amorosa e pela vasta obra de arte que deixa como legado.

 

Os cartões de Natal do CESEEP, sempre tiveram sua arte como ilustração e inspiração e, no Curso de Verão, deixou, nesses anos todos, a beleza de cada quadro ou painel, como produção individual ou coletiva.

 

Registre-se aqui a GRATIDÃO imensa por toda a sua generosa contribuição ao Curso de Verão e a cada uma e cada um que com ela conviveu.

 

Deus a acolha em sua glória!

 

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Gostaria de focalizar, por uns instantes, a colaboração de ‘artistas da caminhada’, especificamente de Domingos Sávio e Adélia de Carvalho, nos trabalhos do Centro de Estudos da História da Igreja na América Latina (Cehila). Copio um texto que escrevi em 2015 a esse respeito:

 

"O Cehila só será plenamente Cehila, quando estiver em diálogo contínuo com a cultura popular. Fomos eclesiásticos, hoje somos universitários. Um dia, seremos ‘populares’? Isso dependerá de nossa capacidade de tocar os instrumentos culturais do povo e de fazer com que as pessoas do povo reconheçam seu próprio rosto na arte criada pelo Cehila. Como escreveu o teólogo Hans Urs von Balthasar: ‘Deus entre no homem pelos sentidos, pela beleza e pela arte, não por abstrações nem por lógica’. Penso que os ‘artistas da caminhada’ abriram uma senda nessa direção".

 

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No já mencionado Encontro de 2015, em Belo Horizonte, Adélia de Carvalho apresentou sua pintura Ameríndia. Nela representa, por meio de uma proliferação de símbolos, a história de cinco séculos de cristianismo no continente ameríndio e as esperanças que o povo latino-americano nutre. Copio aqui essa pintura, que merece ser vista com atenção.

 


"Ameríndia", arte de Adélia Carvalho

 

Há a verticalidade do tradicional simbolismo cristão medieval: o céu desce à terra. Desce o Cordeiro de Deus; desce, em cima do corpo de Ameríndia, o bico agudo de um pássaro (será o Espírito Santo? É ele que dará vida ao embrião?).

 

Em torno de Ameríndia, tudo é problemático. As bandeiras dos Estados Unidos, da China e do Brasil flutuam no alto; a caravela de Cristo derrama sangue na cabeça do indígena; aparece a favela pobre na periferia da cidade altiva; esgotos e crânios; crianças inocentes morrendo na violência das ruas; o prato de comida vazio; ‘retirantes’ em busca de nova vida na cidade grande; o labor na cana de açúcar dos engenhos.

 

Mas a Ameríndia está grávida. Plumas indígenas, cajus, flores, fogo novo. Vai nascer a criança, um novo mundo aparecerá. Viagens para as estrelas. Uma nova terra e um novo sol.

 

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