Temperatura mais alta combinada com chuvas escassas e eventos extremos impactam produção de agricultores responsáveis boa parte das hortaliças da capital de São Paulo.
A reportagem é de Fellipe Abreu de Alcântara e Luiz Felipe Silva, publicada por Agência Pública, 15-08-2022.
Nas gôndolas dos mercados, a sazonalidade dos alimentos se reflete no bolso. Frutas como abacaxis e melancias enchem as prateleiras no verão, e se reduzem no inverno, com reflexo no preço. Quando toda a safra da temporada rende mal, a inflação dos alimentos é generalizada. E é exatamente isso que estamos prestes a presenciar nos próximos anos — em todos os anos.
Seu Ivo Bernardo da Silva, 68 anos, produz hortaliças desde 2000 em um pedaço de terra de 7,5 mil metros quadrados em Jundiapeba. Lá, mais de 300 famílias dividem espaço no assentamento que virou um distrito do município de Mogi das Cruzes, parte do cinturão agrícola que abastece a capital São Paulo. Há 20 anos, ele carrega consigo um caderninho onde anota diariamente a relação entre o clima e sua capacidade produtiva.
“Eu tenho marcado no meu caderno. A última vez que caiu uma chuva boa foi em 6 agosto de 2012”, relata. “Foi o ano que a gente mais produziu aqui na chácara.” Na última década, a insegurança climática só fez crescer. O episódio mais dramático é de julho do ano passado, quando os produtores acordaram com seus sítios completamente brancos. Uma geada caiu sobre Jundiapeba e destruiu quase toda a safra de hortaliças — foi a mais forte das quatro que atingiram a região nos últimos 20 anos.
No caso de seu Ivo, a perda foi de aproximadamente 60% da produção. “Ano passado eu parei a construção da minha casa porque eu perdi tudo duas vezes”, diz. Dona Maria José Marques da Silva, agricultora de 46 anos nascida no interior de Pernambuco, também relata o mesmo problema. Assim como Maria Fernanda Vieira, outra moradora do assentamento. “Foi excesso de chuva, excesso de gelo, excesso de calor. Foi excesso de tudo”, desabafa a jovem produtora de 29 anos.
O impacto do gelo chegou à capital. A Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, popularmente conhecida como Ceagesp, principal distribuidora de alimentos de São Paulo (movimenta 280 mil toneladas por mês), registrou queda de 27 toneladas de hortaliças oriundas de Mogi das Cruzes, entre os meses de maio e junho de 2021, início da onda de frio.
Os preços de diversos alimentos subiram. Em alguns casos, quase dobraram: o engradado da alface lisa, por exemplo, subiu de R$ 14,18 para R$ 26,39 em 20 dias; e da alface-crespa, de R$ 13,57 para R$ 22,89.
Forma-se assim um efeito dominó na cadeia produtiva de alimentos. O preço sobe primeiro devido à lei de demanda e oferta — que cai quando uma safra vira gelo. No médio prazo, para cobrir o prejuízo dos produtores e reduzir a exposição ao risco de novos eventos climáticos extremos.
Na perspectiva de longo prazo, a atividade agrícola se inviabiliza e as novas gerações de agricultores abandonam o campo, e a terra que gera comida e renda ou vira periferia onde vivem trabalhadores urbanos com baixa oferta de infraestrutura ou solo para monocultura onde empresas plantam commodities cujo destino principal é o porto de Santos. Um quadro presente principalmente na região oeste do Cinturão Verde (onde os principais municípios são Ibiúna, Itapetininga, Piedade do Sul e Sorocaba), onde o Instituto Florestal registra uma gradual transição de propriedades familiares para monocultura.
Mudanças climáticas impactam na dinâmica do campo. (Foto: Fellipe Abreu | Agência Pública)
No livro Serviços Ecossistêmicos e bem estar humano na reserva da Biosfera do Cinturão Verde da cidade de São Paulo, publicado em dezembro de 2020, o mesmo Instituto Florestal, órgão da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo que pesquisa a conservação das matas paulistas, afirma que “a crise econômica no mercado de um produto específico causa o não plantio e o desemprego rural”. E conclui que “essas tendências ameaçam a rede social dos agricultores familiares, o modo de vida rural e a preservação da multifuncionalidade da agricultura”.
Mogi das Cruzes integra a região do alto Tietê, área leste do imenso Cinturão Verde paulista, que ocupa 7,5% do território do estado — sendo metade disso área produtiva. Um território tão grande que é composto de dois biomas (Mata Atlântica e Cerrado), abrange 78 municípios e tem população superior a 16 milhões de pessoas.
Desde 1994, a área é reconhecida pela Unesco como Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA). O órgão das Nações Unidas voltado para a educação, a ciência e a cultura define uma reserva da biosfera como “ecossistemas terrestres, marinhos e costeiros, onde deve-se promover soluções que conciliam a conservação da biodiversidade com seu uso sustentável”.
De seus mais de 2 milhões de hectares, 40% são dominados por vegetação nativa. Cerca de 15% se caracterizam por ocupação urbana e o restante, por produção agrícola.
“É uma região fundamental para o abastecimento da cidade, para a geração de renda local, e é estratégica diante da pressão das mudanças do clima”, resume Manuela Santos, pesquisadora em sistemas alimentares e mestre em ecologia pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP).
Todo o conjunto do Cinturão Verde é responsável pela produção de mais de 70% das hortaliças consumidas no município de São Paulo e 30% de tudo o que é produzido no estado, de acordo com o relatório “Cinturão+Verde”, da Fundação Getulio Vargas (FGV), de maio deste ano. São desenvolvidas ao menos 47 diferentes culturas, sendo as hortaliças folhosas, couves, raízes (como cenoura e beterraba) e cogumelos as principais. A alface é, de longe, a mais presente: 51% dos estabelecimentos se dedicam a seu cultivo e comercialização.
Cerca de dois terços dos estabelecimentos produtivos do Cinturão Verde são de agricultura familiar. Esse mesmo levantamento da FGV estima que sejam, ao todo, 5 mil propriedades: 85% delas têm no máximo 20 hectares, mas empregam 75% da mão de obra e são responsáveis por 60% do valor bruto de produção — um faturamento anual superior a R$ 430 milhões.
Esse conjunto de mata nativa com agricultura familiar garante também um tesouro de biodiversidade e uma reserva natural para a manutenção do microclima local a temperaturas adequadas para a vida humana e para a lavoura — um investimento para o conforto térmico das mais de 25 milhões de pessoas que vivem dentro do cinturão. Áreas nativas de florestas, campos, cerrado, restinga e mangue compõem 17,5% de toda a vegetação do estado.
O Instituto Florestal lista 11 serviços ecossistêmicos garantidos pela manutenção do Cinturão Verde — ou seja, benefícios gerados pelos ecossistemas para a recuperação das condições ambientais e melhora da qualidade de vida das pessoas. Entre eles estão:
Mogi das Cruzes é um dos oito municípios que mais colaboram para a produção agrícola da região do alto Tietê, junto de Suzano, Poá, Ferraz de Vasconcelos, Itaquaquecetuba, Biritiba Mirim, Guararema e Salesópolis. Somados, são responsáveis por 275 mil toneladas de hortaliças, mais da metade de tudo que o Cinturão Verde produz.
Mogi das Cruzes tem papel fundamental na produção agrícola da região do alto Tietê. (Foto: Fellipe Abreu | Agência Pública)
O Censo Agropecuário de 2017 informa que o município, onde se localiza o distrito de Jundiapeba, é o líder em área cultivada e em quantidade de alimentos. Com foco em hortaliças, são mais de 7.600 mil hectares que geram quase 112 mil toneladas. A venda e a distribuição dos produtos são responsáveis por 94% da receita das famílias que vivem em áreas rurais da cidade.
São números que dão a dimensão do que significa o suor que seu Ivo, dona Maria e tantos outros despejam todo dia sobre a terra onde trabalham. “Sou analfabeta, então acho melhor trabalhar na roça. É o que eu sei fazer”, diz a agricultora.
Há mais de uma década, Valdecir Ribeiro, 55 anos, cultiva hortaliças e tira daí o sustento de sua família. Seis anos atrás, no entanto, uma chuva torrencial destruiu tudo: perdeu a colheita e as mudas e teve que dispensar os oito funcionários que mantinha à época.
“O nosso problema aqui é água, porque na seca falta água e na chuva tem excesso de água, né?”, resume Valdecir, que há cerca de dois anos fundou a Cooperativa dos Produtores Agrícolas Solidários do Alto Tietê, da qual é o atual presidente.
A bacia do alto Tietê já sofre de forma inequívoca as consequências das mudanças climáticas, reforça o levantamento feito pelo Instituto Florestal.
No caso das chuvas, a precipitação anual total registra aumentos discretos na região, com maior incidência de eventos de chuva intensa. Por outro lado, a precipitação anual total abaixo de 10 milímetros (ou seja, chuvas moderadas que colaboram para a produção agrícola, aquelas de que seu Ivo sente falta), está em queda consistente na última década. O resultado é o aumento na frequência de dias secos intensos, embora com mais eventos de chuvas intensas.
“Agora mesmo, a gente já está com problema com água”, lamenta Valdecir. E a preocupação é justificada: ele relata que o volume de água de seu poço artesiano já caiu 30% durante o período de inverno e que, por isso, seu maquinário de irrigação hoje demora mais de uma hora para dar conta da lavoura — em condições normais, leva menos de 20 minutos.
“Quer dizer, se continuar desse jeito [sem chuvas], em outubro vamos passar dificuldade com essa seca”, conclui.
A temperatura máxima média também aumentou ao longo da última década, assim como a maior temperatura máxima diária — com aumento crescente em direção ao leste da bacia do alto Tietê. A temperatura mínima diária também aumentou em todos os indicadores analisados, o que significa que dias frios estão ficando menos frios — o número de dias cuja mínima esteve abaixo de 10° C também está em queda acentuada.
Como consequência de dias mais quentes e menor frequência de chuvas, a análise dos resultados observa o crescimento do déficit hídrico climatológico e “redução significativa” de excedente hídrico, com potencial aumento de risco para o abastecimento da população local.
“Agora a gente tem medo de plantar, medo de perder tudo”, desabafa dona Maria, que cultiva hortaliças em um terreno de 3 mil metros quadrados. O clima de apreensão é total entre os produtores de Jundiapeba — e não há época do ano em que estejam imunes ao novo regime climático.
O plantio e a colheita das hortaliças ocorrem geralmente quatro vezes ao ano, seja na mesma área, seja em sistema rotativo. São vários os fatores que influenciam a tomada de decisão sobre qual será a cultura que receberá mais investimento a cada ciclo.
Tipos de alface e folhas em geral têm predominância no campo devido à facilidade com a qual são distribuídos para intermediários, mercados e feiras na capital. Especialmente durante o verão e toda a época de calor, quando o consumo de saladas aumenta. A mesma lógica se aplica a raízes, como cenoura e beterraba, cujo pico de demanda se dá no calor. No entanto, todas elas são culturas mais bem adaptadas a temperaturas amenas e a chuvas moderadas.
O ciclo das hortaliças tem, portanto, seu ápice no meio do ano — é o momento em que estão mais bonitas e rendem mais. A procura cai, mas a produtividade compensa e garante a manutenção da renda familiar e de reinvestimento dos agricultores.
A intensificação dos eventos climáticos extremos compromete o planejamento produtivo e qualquer chance de previsibilidade para o negócio. O relatório “Mudanças climáticas e eventos extremos no Brasil”, produzido pela Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), informa que há aproximadamente duas décadas a temperatura média no estado de São Paulo durante o mês de setembro (quando há baixa incidência de chuvas) chegou a ficar mais de 4°C acima da média histórica — gerando prejuízos que podem chegar à casa dos centenas de milhões de dólares nas produções agrícola e pecuária.
O outro extremo também assusta os agricultores. Quando ocorrem ondas de frio intenso, sobretudo se acompanhadas de geada, no outono e inverno, hortaliças folhosas incorrem em perda total. A primavera e o verão, quando as temperaturas sobem, são também a época das grandes chuvas e enchentes — novamente, com risco de zerar a produção. “O problema não é um evento extremo específico, mas esse ciclo de chuvas intensas seguidas de período mais seco. Eles [os produtores] não têm tempo para se recuperar de uma perda”, explica a pesquisadora Manuela Santos. De acordo com o Instituto Florestal, a frequência de chuvas intensas na região metropolitana de São Paulo é três vezes maior que no resto do estado.
Ainda em 2007, quando os impactos das mudanças climáticas eram menos evidentes na região, o cientista americano Robert De La Peña e a cientista britânica Jacqueline Hughes publicaram o paper “Improving vegetable productivity in a variable and changing climate”, em que já indicavam que “fenômenos como dias e noites quentes, ocorrência de geadas, secas intensas e duradouras, chuvas intensas, vendavais, entre outros, devem tornar-se mais comuns”. Quando projetam as condições climatológicas para o Brasil em 2100, concluem que a “futura produção de alface deve sofrer grande prejuízo”.
A lista de potenciais danos aos cultivos apontada no artigo é extensa: formação de plântulas (fase embrionária das hortaliças) anormais, morte das sementes, perda de uniformidade nos estandes de lavoura (o que leva à baixa produtividade), queima das bordas das folhas (esta em decorrência da deficiência de cálcio e boro, impossibilitando o consumo), florescimento precoce, acúmulo de látex e produção de folhas amargas, entre outros.
Globalmente, são dos pequenos sítios de agricultura familiar que vem grande parte de nossa comida. A ONU estima que sua participação no mercado de alimentos varia entre 40% e 85% no conjunto de países da Ásia, África e América Latina.
O mesmo relatório das Nações Unidas relaciona a importância da produção local e familiar de alimentos com três aspectos fundamentais para o desenvolvimento sustentável: promove maior biodiversidade, tem menos impacto ambiental e é mais resiliente às mudanças climáticas.
Pequenos agricultores garantem a alimentação da população brasileira. (Foto: Fellipe Abreu | Agência Pública)
No entanto, os pequenos produtores vêm enfrentando mais dificuldades para se manter no campo. O acesso à terra está sendo limitado pela especulação fundiária e/ou pela expansão das áreas urbanas — com efeitos antagônicos: parte se deve ao empobrecimento de um contingente da população que faz avançar o processo de favelização em direção ao interior; parte se deve à valorização de áreas verdes cujos terrenos são comercializados por incorporadoras e viram condomínios fechados.
Somam-se a isso as restrições ao crédito e a serviços financeiros em geral, a dificuldade em operacionalizar a distribuição dos alimentos sem a figura do atravessador e a baixa produtividade em comparação a monoculturas e plantações cujos proprietários investem em sementes geneticamente modificadas e fertilizantes de alto desempenho.
Os riscos provocados pela crise climática são a gota d’água para muitos. “Vem uma chuva e você fica com as dívidas todas”, se queixa Valdecir. A insegurança diante de um clima cada vez mais instável, afirma o presidente da cooperativa, é o principal motivo para que os jovens abandonem o trabalho rural. “Aqui, você vale só a sua produção. Choveu demais, você perde tudo.”
Dona Maria relata que seu filho desistiu de trabalhar no campo depois de ter enfrentado perdas recorrentes na produção. Hoje, aos 25 anos, Ronaldo trabalha em uma atividade urbana no centro da cidade, vizinha de Suzano, ainda que more numa casa construída no mesmo terreno onde a mãe lida com sua lavoura.
A permanência na terra é, também, questão social. A ecóloga Anita Valente da Costa, do Fundo Agroecológico, relata que no extremo sul de São Paulo, nas áreas rurais do bairro de Parelheiros — que também integra o Cinturão Verde —, mais da metade dos agricultores não conseguem sequer acessar um salário mínimo. E ficam à mercê da especulação imobiliária. “Quando vem uma onda de valorização para as terras, para eles vale a pena vender, porque não conseguem viver da agricultura”, afirma.
O caso de Parelheiros é um exemplo do que pode ocorrer em todo o Cinturão Verde. Anita explica que, lá, as pressões causadas pela urbanização descontrolada e pelos empreendimentos privados fazem com que cada vez mais “terras agricultáveis tenham o uso mudado” — sendo um dos usos o problema da ocupação ilegal, com riscos até para a segurança dos moradores.
A propriedade de dona Maria se localiza na área conhecida como “baixada”. O motivo é autoexplicativo: trata-se de uma região mais baixa em relação ao distrito de Jundiapeba, à margem sul do rio Jundiaí.
Quando há precipitação de chuva intensa, é para lá que a água escoa e se acumula. Dentro de sua própria casa se veem nas paredes e armários marcas que vão do chão a até aproximadamente 50 centímetros de altura, resultado da lama que entra durante esses eventos.
“Fica um cheiro muito ruim”, conta a agricultora. “E tem risco até de pegar doença, aquela doença do rato lá que não lembro nome”, diz, referindo-se à leptospirose, doença infecciosa causada por contato com uma bactéria presente na urina de animais, principalmente ratos.
O medo se justifica de vários modos. Primeiro porque, de fato, as tempestades com precipitação de água acima do normal aumentam constantemente. Mas os principais motivos estão relacionados à ação humana direta.
À margem oposta do rio Jundiaí não há um centímetro sequer de terra livre para plantio. Construções ilegais dos mais diversos tipos e materiais — há desde barracos simples de madeira até casas de alvenaria com três andares — se distribuem entre a parte alta e a porção alagada do rio.
A profusão de casas e prédios irregulares entupiu e tornou inócuas as valetas que foram instaladas para drenar o excesso de chuvas e preservar o solo dos agricultores, como dona Maria. E o rio, principal fonte de água para os plantios, passou a ser banheiro público: sem rede de esgoto, os dejetos expelidos pelas novas moradias são despejados em seu curso.
Construções disputam espaço com áreas para plantio. (Foto: Fellipe Abreu | Agência Pública)
Em 2012, o Banco Mundial publicou um estudo sobre os riscos de desastre em relação à habitação irregular na cidade de São Paulo. O resultado aponta que até o fim do século pouco mais de 10% da população mais pobre da metrópole pode ocupar zonas com risco de deslizamento de terra e inundações. E ainda mais grave: nas comunidades periféricas, já nas próximas décadas, mais de 5% das áreas de favelas estão “extremamente propensas” a eventos extremos destrutivos. A orientação do estudo é expressa: as medidas de adaptação mais urgentes devem ocorrer nas áreas mais vulneráveis.
Os prejuízos ambientais são evidentes, mas as consequências socioeconômicas são tão graves quanto. Menos água de qualidade significa menos capacidade produtiva. Ou seja, menos produção de alimentos, aumento de preços aos compradores e redução de renda aos agricultores. O crescimento demográfico resulta ainda em conflitos sociais: Jundiapeba é conhecida, hoje, como o bairro mais perigoso de Mogi das Cruzes, sendo os furtos a residências o crime mais comum. “Ah, já entraram na minha casa várias vezes. Das vizinhas tudo, aqui. E aí levam o que encontram mesmo, dinheiro, eletrodomésticos… O que der, levam”, relata dona Maria.
A economista Yara Carvalho, que já foi presidente da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo e é efetiva do Instituto de Economia Agrícola da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios, explica que, tradicionalmente, em todo o Cinturão Verde a agricultura teve o papel de embarreirar “a ocupação desordenada e a expansão urbana de baixa qualidade”. E exerce a dupla função de ser uma espécie de controle térmico natural na metrópole. As bacias hidrográficas, a vegetação e o solo não impermeabilizado pelo asfalto são essenciais para mitigar eventos climáticos mais extremos. “É um fator de adaptação para o clima”, resume Yara.
E a região do alto Tietê é especialmente importante para o controle da poluição na capital. “Se perdermos essas áreas verdes, o problema será grande aqui em São Paulo”, conclui a economista.
Hoje, enquanto você lê esta reportagem, há mais de 800 milhões de pessoas subnutridas no mundo e 2 bilhões de pessoas em situação de insegurança alimentar.
Se é um número grande demais para dimensionar, pense no Brasil. Estima-se que a população brasileira esteja em 216,5 milhões. De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, mais da metade sofre de algum nível de insegurança alimentar: 59 milhões em situação leve, 31 milhões em moderada e 33 milhões em situação de fome. Somente na capital paulista, 620 mil famílias vivem em situação de extrema pobreza e não podem se alimentar direito.
Isso ocorre no terceiro país que mais produz alimentos no planeta, 9% do total, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). O anuário da FAO informa que a soma de toda comida produzida no mundo seja de 3,8 bilhões de toneladas ao ano. A fome, ainda que suas causas sejam multifatoriais, é resultado de um amplo problema distributivo. Mas estamos caminhando para que seja, também, um problema produtivo.
O mesmo documento da FAO aponta para uma redução de produtividade e qualidade nutricional das safras. O resultado seria uma fome crônica capaz de ampliar as desigualdades sociais e atingir exatamente aqueles que têm menos capacidade de adaptação.
Em um documento publicado em 2021, o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) alerta que o problema é para agora: pelo menos um terço da produção atual de alimentos já está em risco por causa do aquecimento global. No caso do Brasil, se o aumento da temperatura até o fim do século for de 3 °C, o prejuízo para a produção agrícola do país será de pelo menos 6%. No caso de haver um acréscimo de 4 °C, a produção média de hortaliças e leguminosas pode cair até 30%.
Um cenário de tragédia alimentar, mas também nutricional.
A alface é, de longe, a hortaliça mais produzida no Cinturão Verde, quase um quarto de todos os alimentos cultivados. Tradicionalmente, sempre foi um bom negócio para os agricultores: tem ciclo rápido de aproximadamente 45 dias até a colheita e alta demanda na capital. A mesma lógica se repete em todo o país. No setor de folhosas, a alface é a líder. Cerca de 110 mil estabelecimentos trabalham com o cultivo, o que gera anualmente pelo menos 670 mil toneladas.
Ela é também uma das culturas que mais sofrem o impacto das mudanças climáticas. Se chove muito, apodrece. Se o calor é intenso, queima. Quando se misturam chuva e sol, pode cozinhar por dentro. Sua fragilidade diante do clima é proporcional à sua qualidade nutricional — é basicamente formada de água e fibras alimentares.
Especialistas como Manuela Santos e o geógrafo Arpad Spalding, que já coordenou um projeto municipal de agricultura familiar em Parelheiros, citam que a transição para culturas de mais fácil adaptação e de maior valor nutricional precisa ser acelerada. E, ainda assim, a perda de qualidade nutricional aponta para a irreversibilidade. “Chuvas intensas atrapalham a terra, a planta e a qualidade do solo”, explica Spalding. “E quando tem muita água no solo, a planta não consegue absorver os nutrientes.”
O cardápio de opções para reformular o modelo produtivo é enorme. São cerca de 6 mil espécies de plantas comestíveis, mas a produção global de alimentos se limita a menos de 200, e apenas nove delas respondem por dois terços dos alimentos que vêm do campo.
A concentração de terra para cultivos de monocultura é o motor principal do processo de homogeneização do agro para menos de uma dezena de grãos que integram a cadeia global de suprimentos como commodities. Desse modo, fecha-se o ciclo vicioso no qual as mudanças climáticas acentuam a desigualdade social e econômica no campo. Processo que leva à perda de biodiversidade, compromete o solo e a água (a agricultura responde pelo consumo de 70% da água doce do mundo) e libera muito mais carbono para a atmosfera do que sistemas produtivos mais complexos (sistemas alimentares respondem por até 35% das emissões de gases do efeito estufa).
A rotina é a mesma todos os dias: depois do café da manhã, seu Ivo calça as botas e vai ao quintal observar o crescimento dos seus cultivos. Na caminhada, tudo vê e tudo ouve. A observação da natureza é a regra número 1 de sua técnica agrícola. Foi assim que aprendeu a ler o movimento migratório das aves e a arquitetura dos formigueiros para prever a chegada ou não de uma tempestade.
Essa mesma observação atenta levou o agricultor a dispensar o uso de venenos, investir “apenas no natural” e promover o uso rotativo do solo. A sabedoria intuitiva de seu Ivo coincide com as técnicas mais eficazes para aumentar a produtividade sem custos adicionais e para proteger a horta dos eventos climáticos extremos.
No entanto, seu Ivo é exceção. Via de regra, explica Spalding, os agricultores têm acesso limitado a técnicas e métodos de baixa complexidade e custo. Ele lista “tecnologias básicas que melhoram a produção e a vida do agricultor”: microtúnel, instalação de estufa pequena, sistema de irrigação e sistema de plantio direto.
“Precisamos urgentemente de um programa de assistência técnica que ensine esse conjunto de ações que são muito importantes para melhorar a nossa resiliência diante da mudança do clima”, afirma Spalding. De acordo com a Política Nacional de Mudanças Climáticas, resiliência climática é um conjunto de iniciativas e estratégias que permitem a adaptação, nos sistemas naturais ou criados pelos homens, a um novo ambiente, em resposta à mudança do clima atual ou esperada.
No caso de Jundiapeba, a FGV tem uma parceria com as cooperativas locais para apresentar soluções. O plantio direto, que consiste em cobrir o solo com vegetação para protegê-lo de chuva e sol intensos, já faz parte do dia a dia de muitos produtores.
Um modelo celebrado por muitos especialistas é o agroflorestal. Nele, cabe ao agricultor replicar em sua terra as características da floresta nativa, com árvores e plantas não necessariamente produtivas. Ao atingir o equilíbrio do microambiente, a resistência a eventos extremos cresce: o solo absorve mais a água da chuva, a copa das árvores protege mais contra altas temperaturas e a barreira natural que se forma limita a ação de ventos e geadas.
Além de assistência técnica, faltam políticas públicas do início ao fim do ciclo produtivo. “Precisa de política pública para melhorar a produtividade e para garantir adaptação ao clima”, afirma Spalding. A começar pelo crédito: sem linhas de financiamento especiais, poucos agricultores familiares se arriscam a trabalhar culturas de ciclo mais longo e a explorar técnicas com resultados de médio e longo prazo.
Do plantio à colheita, os agricultores dormem e acordam apenas torcendo para que não chova demais nem de menos. Bancos e seguradoras não protegem ciclos curtos de hortaliças; portanto, a cada safra perdida, a capacidade de reinvestimento fica praticamente zerada.
Por fim, na venda e distribuição, uma vez expostos a todos os riscos mencionados acima, os agricultores muitas vezes se submetem a atravessadores que pagam valores baixos e assumem a revenda para mercados na capital. Soma-se a isso a falta de serviços bancários e atuariais, privados ou públicos, que ofereçam seguros às safras.
A organização em cooperativas é um modo de reduzir a dependência econômica de intermediários ou grandes redes de mercado. Yara Carvalho e Manuela Santos apontam também a necessidade de políticas públicas para a compra de alimentos produzidos localmente: dá segurança ao agricultor e dá ao Estado a possibilidade de direcionar a produção para atender às necessidades alimentares e nutricionais em escolas, hospitais e quaisquer outros equipamentos públicos.
Ou, como resume seu Ivo em uma frase: “Aí eu perco aqui na roça, você perde aí no mercado e o governo perde porque não arrecada imposto. O mundo exige uma mudança”.
* Nutrientes hortaliças verdes (brócolis, alface, rúcula): “As hortaliças verdes apresentam uma série de nutrientes: pró-vitamina A, luteína, vitamina B2, vitamina B5, vitamina B9, vitamina C, vitamina K, cálcio, ferro, magnésio e potássio. No geral, elas auxiliam no crescimento e na manutenção da pele, ossos, cabelos e visão; contribuem para os sistemas digestório, nervoso, imunológico e sexual; e reduzem o colesterol e o risco de doenças cardiovasculares”. (Embrapa Hortaliças — 2012);
* Ricas em vitaminas, minerais, fibras e antioxidantes, todas as hortaliças (com exceção de tubérculos e raízes) são compostas majoritariamente por água. Por isso, além de fornecer compostos úteis para a realização de uma série de reações orgânicas, elas também auxiliam na hidratação do corpo, que é constituído aproximadamente por 70% de água. Devido aos nutrientes que possuem, o consumo diário de hortaliças é extremamente benéfico para a saúde. A única vitamina que as hortaliças não possuem é a B12, que está presente somente em alimentos de origem animal como carne, leite e derivados. (Embrapa Hortaliças — 2012).
Essa reportagem é resultado das Microbolsas Alimentação e Mudanças Climáticas realizada pela Agência Pública, Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e a Cátedra Josué de Castro. A 14ª edição do concurso selecionou jornalistas para investigar os diferentes aspectos desse tema no Brasil.