15 Agosto 2022
“Não é sinal de uma democracia saudável quando o FBI executa um mandado de busca na casa do nosso antigo magistrado! A bananificação da democracia estadunidense começou quando você-sabe-quem desceu aquela escada rolante espalhafatosa em 2015 na torre que leva seu nome e anunciou sua candidatura à presidência. Desde aquele momento até agora, Donald Trump tem sido o ator mais conspícuo e a ameaça mais perniciosa à democracia estadunidense”, escreve o jornalista estadunidense Michael Sean Winters, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 12-08-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
De acordo com os Republicanos, os Estados Unidos da América são agora uma república das bananas.
“O ataque em Mar-a-Lago é outra escalada no armamento das agências federais contra os oponentes políticos do Regime, enquanto pessoas como o caçador Biden são tratadas com luvas de pelica... República das Bananas”, tuitou o governador da Flórida Ron DeSantis depois que o FBI executou um mandado de busca e apreensão em Mar-a-Lago, na propriedade do ex-presidente Donald Trump.
“Isso é coisa de país do Terceiro Mundo. Precisamos de respostas JÁ. O FBI deve explicar o que eles estavam fazendo hoje e por quê”, tuitou o senador Rick Scott, da Flórida, que lidera a operação de campanha do Partido Republicano para o Senado.
“Usar o poder do governo para perseguir oponentes políticos é algo que vimos muitas vezes nas ditaduras marxistas do terceiro mundo”, tuitou o senador Marco Rubio, também Republicano da Flórida. “Mas nunca na América”.
O próprio ex-presidente, impedido de acessar o Twitter, foi a uma plataforma de mídia social diferente para reclamar de ter sido forçado a prestar depoimento à procuradora-geral de Nova York, Letitia James, que está investigando suas práticas comerciais. Trump desabafou que estava indo para Nova York “para uma continuação da maior caça às bruxas da história dos EUA! Minha grande empresa e eu estamos sendo atacados de todos os lados. República das Bananas!”.
Agora, acontece que eu gosto de bananas. Às vezes, quando está calor, eu como banana, iogurte e um bom pão para o almoço. Se eu fizer pernil ao estilo porto-riquenho, fritarei uma banana em um pouco de manteiga e suco de limão como acompanhamento. Banana Split então é uma explosão.
Brincadeiras à parte, esses Republicanos têm razão. Não é sinal de uma democracia saudável quando o FBI executa um mandado de busca na casa do nosso antigo magistrado! Mas eles diagnosticam mal a doença. A bananificação da democracia estadunidense começou quando você-sabe-quem desceu aquela escada rolante espalhafatosa em 2015 na torre que leva seu nome e anunciou sua candidatura à presidência. Desde aquele momento até agora, Donald Trump tem sido o ator mais conspícuo e a ameaça mais perniciosa à democracia estadunidense.
O xingamento coletivo do Partido Republicano poderia ter sido mais crível se o país não tivesse sido tratado nas últimas semanas com uma série de ex-funcionários do governo Trump testemunhando perante o comitê do Congresso para investigar o ataque de 06 de janeiro ao Capitólio dos EUA. Vários testemunhos revelaram que praticamente todos na Ala Oeste, incluindo os filhos do ex-presidente, estavam tentando descobrir como impedir que Trump organizasse um golpe. É realmente um exagero acreditar que ele se recusou a entregar documentos em clara violação da lei?
Autoridades Republicanas podem não conseguir escapar da indignação performática no Twitter, mas quando estão sob juramento ou conversando entre si, admitem que ele é uma ameaça à democracia, que seu narcisismo não conhece limites e que seu desrespeito às normas legais e democráticas foi um dado. Na verdade, as mesmas pessoas que reclamaram da operação de busca e apreensão do FBI foram as que testemunharam em primeira mão que as normas constitucionais eram para Trump o que as regras do Marquês de Queensbury são para a luta livre profissional.
Por uma questão política, por 24 horas depois que o FBI executou o mandado de busca, eu temi que o incidente beneficiasse o Partido Republicano nas eleições de meio de mandato, aumentando a participação entre os eleitores Republicanos indignados. A manutenção de registros do governo, mesmo de documentos sigilosos, não é o tipo de crime que a maioria das pessoas pode sequer imaginar. Autoridades em Washington e arquivistas em todos os lugares entendem, mas fora isso, a maioria das pessoas diz “Mé”. É como uma violação das regras de financiamento de campanha: se você nunca teve que arrecadar dinheiro para uma campanha, uma violação nessa área parece opaca.
Em seguida, Trump deu seu depoimento e usou a Quinta Emenda da Constituição dos EUA (que garante o direito de um réu ou acusado não produzir provas contra si, portanto de também permanecer em silêncio). De repente, a metáfora para entender Trump mudou de “Wrestlemania” para reprises de “Law & Order”. O homem que disse “a máfia usa a Quinta Emenda. Se você é inocente, por que está usando a Quinta Emenda?”, utilizou a Quinta Emenda. Era como se Franz Kafka tivesse voltado dos mortos para anunciar que todos os últimos sete anos da vida política estadunidense haviam sido roteirizados por ele. O teatro do absurdo atingiu sua apoteose e só os seguidores verdadeiramente cultuais do ex-presidente podem ficar por aqui.
A EWTN, sem surpresa, se classificou entre esses “seguidores verdadeiramente cultuais” ao convidar Amber Athey, editora do The Spectator, para analisar a situação. Athey também é membro do Steamboat Institute, um falso think tank que trabalha para promover a indústria de combustíveis fósseis. O apresentador do “News Nightly” da EWTN, Tracy Sabol, perguntou a Athey sobre “o ataque” enquanto fotos de Mar-a-Lago à noite se espalhavam pela tela. A busca começou ao meio-dia, mas suponho que as imagens noturnas ajudaram na narrativa de que era “um ataque”.
Eles repetiram os pontos de discussão de Trump na hora. “Isso foi pura intimidação política”, afirmou Athey, sem um pingo de evidência. Ela também deturpou a questão da desclassificação, afirmando erroneamente que, se Trump tivesse desclassificado os documentos em questão, “eles seriam perfeitamente permitidos em Mar-a-Lago”. Mas os documentos não precisam ser classificados para estarem sujeitos à Lei de Registros Presidenciais.
Athey acrescentou que “talvez fosse uma expedição de pesca”, uma afirmação que poderia ser facilmente comprovada ou não vendo o mandado. O FBI não publica os mandados que executa, mas era legalmente obrigado a fornecer uma cópia ao ex-presidente. Ele poderia liberá-lo a qualquer momento para que todos pudéssemos verificar o alcance da busca. O fato de ele não ter feito isso fala muito.
Para não ficar para trás, Raymond Arroyo, da EWTN, aparecendo em “Outnumbered” da Fox News, disse isso sobre a busca do FBI. “É como a Gestapo!”. Não, Raymond, não é.
Acontece que gosto da Quinta Emenda quase tanto quanto gosto de bananas. Sua disposição contra a autoincriminação estava enraizada em reformas legais anteriores na Inglaterra, relacionadas ao desejo de eliminar o uso da tortura para induzir confissões. É uma das dinâmicas alarmantes de nosso próprio tempo que os liberais contemporâneos possam desprezar as disposições de nosso tecido constitucional, uma desconsideração enraizada na ignorância da história de tais disposições. Aqueles que se preocupam mais com os resultados do que com os procedimentos estão fazendo o trabalho do diabo, seja de direita ou de esquerda, e esquecem que essas disposições constitucionais foram e são parte da arquitetura política que permitiu que nossa civilização iniciasse os processos de emancipação cívica generalizada e diminuição da justiça “a força faz o direito”. Esses processos ainda são um trabalho em andamento, e nós, humanos, não alcançaremos a justiça perfeita deste lado do eschaton, mas o progresso foi feito.
Donald J. Trump ameaça esse progresso civilizacional mais do que qualquer ser humano em minha vida. Eu sei disso e você sabe disso. Os Republicanos no Capitólio sabem disso. Tracy Sabol e Amber Athey eles sabem disso. Aqueles que ainda se apegam ao culto a Trump o fazem conscientemente, e perante a barra da opinião pública, em oposição à barra da corte, não podem mais usar a Quinta Emenda.
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EUA. Busca e apreensão em Mar-a-Lago destaca o confronto kafkiano de Trump com o Estado de Direito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU