Em 2012 recebi as chaves da cidade de Bogotá de seu prefeito. Foi uma imensa honra para mim num momento particularmente difícil da minha vida profissional. Também estiveram presentes no evento, principalmente, o presidente colombiano, Juan Manuel Santos; o presidente espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero; e o procurador do Tribunal Penal Internacional (CPI), Luis Moreno Ocampo, quando deram o sinal verde para minha incorporação como assessor da Missão de Apoio ao Processo de Paz.
O artigo é de Baltasar Garzón, foi Juiz da Central de Instrução do tribunal penal de máxima instância na Espanha, a Audiência Nacional, participou do julgamento de alguns dos delitos de maior relevância que se produziram no seu país como crimes contra a humanidade, terrorismo, terrorismo de Estado, narcotráfico, corrupção política e delinquência econômica, publicado por Página/12, 09-08-2022.
Bogotá, seguindo a terminologia derivada da antiga civilização Muisca, tem vários significados. Resta-me aquela que acho que mais significa: “A senhora da montanha que brilha”. Não sei se você pode imaginar o que significa para alguém tão ligado como eu à luta pelos acordos de paz na Colômbia ter a honra excepcional de receber esse prêmio. O vereador que me entregou tinha um mandato complexo, sendo afastado do cargo após a desprivatização da coleta de lixo e depois reintegrado por decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O prefeito se chamava Gustavo Petro, teve seus melhores sucessos na educação e na saúde e da prefeitura saltou para o cenário nacional, tornando-se referência na esquerda.
Dez anos depois, estou de volta a Bogotá, em circunstâncias diferentes. Vou com minha companheira de vida, Dolores Delgado, à posse de Gustavo Petro, que percorreu um longo caminho deste a época em que esteve na prefeitura. Neste domingo, o revolucionário que fazia parte do Movimento guerrilheiro 19 de abril (M19) assumiu a realidade de ser o primeiro presidente de esquerda da Colômbia. Com ele, Francia Márquez, sua vice-presidente, que vai revolucionar o papel da mulher, do indígena, do afro-americano do invisível em seu país.
Petro e Márquez comemorando os resultados das eleições colombianas (Foto: Reprodução Facebook)
Esta amada nação agora tem um governo progressista. Isso supõe a continuação dos esforços de paz que o anterior governo de Iván Duque omitiu, a implementação de um modelo de desenvolvimento solidário e um impulso para a reativação da América Latina, uma reativação que poderia ser ainda mais potencializada na região se em outubro o pesquisas dão vitória a Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência do Brasil contra o atual presidente de extrema direita Jair Bolsonaro. Prevêem-se tempos de exercício de políticas para os mais vulneráveis, de respeito aos povos originários, de diálogo, de paz. Do cuidado para com a mãe terra. Tempos em que os povos indígenas, camponeses e afrodescendentes recebem o tratamento devido aos seus direitos ancestrais, tantas vezes esquecidos.
Inúmeros chefes de estado e primeiros-ministros de outros países testemunharam o juramento de Petro, incluindo o rei da Espanha. Fora da pompa oficial, o mais emocionante é a esperança dos cidadãos. A Colômbia já se pronunciou com o acordo com as FARC em 2016, com as eleições presidenciais de 2018 em que o atual presidente ficou em segundo lugar e no ambiente que traduziu os protestos dos anos de 2019 e 2021, que denotavam tédio da política conservadora e da corrupção.
O processo de paz na Colômbia foi adiante mesmo quando os narcotraficantes não estavam interessados nele. Documentos desclassificados do Departamento de Estado dos EUA em 2018 indicavam que o senador e presidente da Colômbia de 2002 a 2010, Álvaro Uribe, havia sido acusado várias vezes por diplomatas americanos por supostas ligações com o tráfico de drogas na década de 1990.
A embaixada dos Estados Unidos em Bogotá encaminhou uma lista de políticos colombianos "suspeitos de ligação com o narcotráfico". A lista era dividida em duas seções: "narcopolíticos", que eram "políticos com históricos sólidos" de envolvimento com o narcotráfico, e "possíveis narcopolíticos", suspeitos de ligação com o narcotráfico, embora não fossem verificado. Assim eram as coisas. É com isso que o presidente Petro terá que lidar.
A coalizão progressista terá muita dificuldade em superar todos os obstáculos que enfrentará em áreas como o meio ambiente, em que são necessárias fórmulas mais respeitosas com a natureza e mais combativas com o extrativismo, a mineração ilegal ou a mudança energética, eliminando a dependência sobre carvão e petróleo. Em outras palavras, uma política ambiental ambiciosa para uma transição energética que tire a Colômbia da dependência dos combustíveis fósseis.
Os caminhos que Petro pretende avançar seguirão pelo caminho do acordo, por meio de um pacto nacional que inclui aqueles que não votaram nele. Importante desafio que inclui uma soma de vontades que, hoje, não existe na Colômbia. Em seu executivo há conservadores como Álvaro Leyva, que conhece bem as negociações com a guerrilha, ou Cecilia López, que da pasta da Agricultura terá que desenvolver a essencial reforma agrária. Na ONU colocou um símbolo: Leonor Zabalza, indígena e diplomática. A maioria que ele detém no Congresso lhe permitirá abordar a urgente e necessária reforma tributária que incidirá sobre os maiores contribuintes e aqueles que evadem capital.
O sociólogo e jurista português Boaventura de Sousa Santos destaca em artigo publicado no final de junho que Petro e Francia buscam mobilizar a sociedade colombiana como uma sociedade solidária que reconhece e premia o trabalho de cuidado da mulher, estabelece uma nova relação entre sociedade e natureza que prioriza a defesa da vida sobre os interesses econômicos, promove a transição energética e democratiza o conhecimento ambiental. Acrescenta que "trata-se de passar de uma economia extrativista para uma economia produtiva que reduza a desigualdade na propriedade e uso da terra por meio de uma reforma agrária que dê acesso ao uso da água e transforme o mundo rural colombiano como peça chave da sociedade e justiça ambiental...”.
Sobre o conflito armado, destaca o respeito às vítimas e a necessidade de “estimular uma política de convivência pacífica e de reconciliação”. As marcas da guerra Desaparecidos atrás, porque 60 anos de guerra marcaram a população. Um quarto de milhão de mortos, dezenas de milhares de desaparecidos... A Comissão da Verdade apresentou o relatório final concluído em junho, após três anos de trabalho. O seu presidente, o jesuíta Francisco de Roux, apresentou com confiança e otimismo algumas conclusões que devem servir para um debate aprofundado. Mudar a ideia do inimigo - todos que não estão comigo - das forças de segurança, transformar a mentalidade do exército na proteção das pessoas e das infraestruturas, separar a Polícia Nacional do Ministério da Defesa... Tendo em conta tráfico de drogas, que ocupou "um lugar político, econômico, militar e territorial", intervindo no conflito de ambos os lados.
O relatório pede negociações de paz completas com o ELN, o último grupo guerrilheiro ativo que, por sua vez, se diz disposto a ouvir e seguir em frente. O próprio Petro está disposto a construir pontes. Enquanto este documento vinha à tona, o jornal El País entrevistou o candidato já eleito, que disse: – "Se eu falhar, a escuridão virá e destruirá tudo; eu não posso falhar"
– “A que escuridão você está se referindo?” perguntou o jornalista.
Petro respondeu:
"Lançamos um desafio formidável. Era improvável que eu chegasse vivo ao final do processo eleitoral. E agora, se meu governo estabelecer as condições para a transição, o que se segue é uma nova era. E se falharmos, o que vem a seguir, por lei física, é a reação. E uma reação em que Uribe não é o protagonista. Os ciclos de vida mudam. Há círculos se organizando em torno do fascismo. Não vamos atacá-los, por enquanto, nada disso, mas vamos ter consciência de que isso está acontecendo."
Responsabilidade terrível, não menos aterrorizante que aquele futuro que o governante colombiano vê como uma realidade iminente. As forças do mal tendem a se aliar e a Colômbia não é um país estrangeiro para abrir o inferno e a violência, não extinta, repercute contra qualquer grupo. A prudência pedirá equilíbrio a Petro para fazer justiça sem que prevaleça a impunidade e sem que a violência tome a palavra.
No domingo, 7 de agosto, sob um sol escaldante e diante de milhares de pessoas na emblemática Plaza Bolívar, a posse de Gustavo Petro foi emocionante, vibrante e intensa, com momentos inesperados que marcam a mudança de rumo em que embarca o novo presidente.
Ele deu a ordem: "Como presidente, peço à Casa Militar que traga a espada de Bolívar".
Era a ordem do mandato popular. O ato foi interrompido por 30 minutos até a chegada da espada em uma caixa de vidro, guardada por guardas uniformizados em trajes completos, na presença da senadora María José Pizarro, filha de Carlos Pizarro, líder do M19 assassinado em 1990 por um sicário – com possíveis implicações para o aparelho de Estado e os paramilitares – quando concorreu como candidato presidencial pela Aliança Democrática M19, que momentos antes lhe havia imposto a faixa presidencial.
Então, não só houve uma explosão de alegria, como também as lágrimas abundaram e o canto de "alerta, alerta, alerta que anda, espada de Bolívar para a América Latina" encheu a praça e as gargantas de toda a Colômbia. Cadetes entram com a espada de Bolívar na cerimônia de posse de Gustavo Petro.
No entanto, alguns líderes mostram uma preocupante miopia e descaso histórico por aqueles que forjaram a independência desse povo. Como aconteceu com o presidente cessante, Iván Duque, que, em uma última tentativa agonizante de seu mandato, recusou-se a permitir que o símbolo da união latino-americana fosse incorporado à cerimônia desde o início. Ou outros, que não honram os símbolos e não preveem os efeitos de sua omissão. A partir desse momento, o presidente Petro, de forma alegórica, enviou uma mensagem de firmeza aos comandantes militares e depois uma conciliatória – mas exigente – de irrestrita submissão constitucional.
A enumeração de seus "dez mandamentos" para seu governo especifica uma política progressista que revolucionará seu país e será um exemplo para toda uma região em relação à qual ele pediu unidade, na forma de uma União Européia Latino-Americana que reúne os esforços de tantos homens e mulheres que, da América Latina e de fora, fisicamente, mas dentro de nossos corações, lutam pelo conceito de uma Grande Pátria.
7 de agosto de 2022 será uma data inesquecível. Quando abracei Maria José Pizarro senti toda a força de seu pai, cuja imagem estava estampada em suas costas, e senti que ele estava olhando para nós e aprovando o que estava acontecendo ali.
Governo paritário; defesa dos mais vulneráveis e dos direitos dos povos indígenas, camponeses e afrodescendentes; nova política fiscal, redistribuição de riqueza; nova política agrária; nova política antidrogas, corajosa e complexa; nova política sobre o meio ambiente, exigindo responsabilidades dos países poluidores; paz, no sentido mais amplo da expressão; verdade, justiça, reparação, garantias de não repetição; o diálogo integrador e sem exclusões foram alguns dos pontos que se destacaram.
Foi quando cheguei à praça e ouvi um grupo de jovens que, amontoados na linha de frente, me identificaram enquanto caminhava de mãos dadas com Dolores Delgado – "Juiz Garzón, obrigado por estar aqui, obrigado por se juntar a nós, sim nós podemos!" –, quando sentimos emoção e uma sinergia especial. Sabíamos que algo definitivamente havia mudado na Colômbia. E nós, cada um na nossa esfera, lá estivemos, renunciando assim à indiferença e assumindo o compromisso de contribuir para que, pelo menos desta vez, vença quem sempre perde. E que a frase indelével nestas terras americanas "o povo unido nunca será derrotado" seja uma realidade para sempre.
Em meio a todo esse conjunto de emoções, apertos de mãos, abraços, beijos e aplausos, não pude deixar de lembrar, enquanto se desenrolava o ato solene e jubiloso, algumas frases da música Empezar una vez más
- Começar mais uma vez, dedicada a aqueles que trabalham diariamente pela reparação integral das vítimas do conflito armado:
"...Vamos mudar a realidade
Não deixe isso acontecer novamente construindo um mundo novo
Comece mais uma vez.
Retire o curativo da dor sem esquecer o que aconteceu coragem para transformar
Respirar Começar de novo. construir algo diferente
Depende de nós mesmos
Olhe no espelho e reconheça
Que das minhas cinzas eu possa renascer.”
No mesmo lugar onde me entregou as chaves da cidade de Bogotá em 2012, Gustavo Petro recebeu as chaves da Colômbia em 7 de agosto de 2022. Eles foram dados a eles por pessoas que querem começar algo novo e construir um país melhor, diferente, onde a vida em paz seja possível. Que assim seja.